Louis Claude de Saint Martin
O NOVO HOMEM



43

É da índole do espírito das trevas manter o homem na desconfiança dos seus próprios direitos. Ou, se não pode impedi-lo de adquirir algumas vezes o conhecimento, tem o cuidado de envolvê-lo com cores ilusórias, que mantêm esse homem destinado sempre abaixo da sua verdadeira medida e que o levam continuamente a sacrificar a realidade às imagens e aparências. É dessa maneira que conseguiu substituir, quase que em toda a terra, a lei pelas tradições, o espírito pela letra e as luzes da verdade que iluminaram os profetas pelas tenebrosas paixões humanas. O homem, depois do crime, viu-se arrastado pela encosta dessa região terrestre e morta, que só tende a descer e que faz o homem descer com ela, quando ele esquece a sua origem ilustre. O inimigo do homem aumenta diariamente esse peso já tão terrível que fazia Salomão dizer: essa morada terrestre enfraquece o espírito com a multiplicidade dos seus cuidados. (Sabedoria 9:15)

Portanto, pela mais ardente vigilância o homem saberá suportar tantos obstáculos. Pois vai encontrá-la em si mesmo, na tradição que recebeu a sua memória e na lei que recebeu o seu espírito. E se ele se entregar às obras da sua lei e às obras do espírito, a voz da tradição se levantará contra ele e tentará incomodá-lo, fazendo parecerem criminosos as obras da lei e do espírito.

Ele sabe que a sua natureza espiritual e divina o convoca a realizar obras de paz e a trabalhar para o restabelecimento da ordem universal. Ele sabe que essa mesma natureza divina e espiritual que o anima está acima do tempo e é feita para desconhecer o tempo. Assim, todas as vezes que se apresentar a ocasião de cumprir a sua obra, ele a aproveitará, mesmo no dia do sábado terrestre. Mas então essa voz do sábado se levantará contra ele, querendo transformar o seu benefício em uma verdadeira prevaricação. Foi provavelmente para nos descrever esse símbolo do homem e dessa reunião aflitiva que se encontra nele, que o salvador curou em um dia de sábado, no meio da sinagoga, aquele homem que tinha uma mão seca. Porque, com efeito, essa sinagoga representava então a reunião da luz e das trevas onde, de um lado, se agitava a virtude ativa daquele que vinha restituir aos homens de espírito o uso da mão ressequida, e, de outro, a oposição de um povo materialista e grosseiro, que se apoiava na própria letra da sua lei para combater o espírito do verdadeiro objetivo do nosso ser.

Mas não foi somente para nos descrever o símbolo dessa reunião aflitiva que o salvador agiu assim: foi sobretudo para transmitir aos homens cegos, o ensinamento para o qual essa obra de cura não passava da ocasião e do motivo. Da mesma forma que excitou o murmúrio dos judeus ao lhes dizer: "Quem dentre vós que, tendo uma ovelha, se esta cair numa cova no dia de sábado, não a retira do buraco? Ora, um homem não vale mais do que uma ovelha? Logo é lícito fazer bem no dia de sábado".

Ele lhes falará ainda mais vigorosamente acerca das espigas que os seus discípulos, ao passar por um milharal num dia de sábado, haviam colhido e comido: "Não lestes na lei que nos sábados, os sacerdotes no templo violam o sábado e ficam sem pecado? E contudo eu vos digo que aqui está alguém que é maior do que o templo. E que se soubésseis o que quer dizer: eu aprecio mais a misericórdia do que o sacrifício, não teríeis condenado inocentes, porque o Filho do homem é senhor até do próprio sábado".

O Novo Homem, esclarecido pela mesma luz, explicará sem cessar a tradição pela lei, a letra pelo espírito e o espírito pela vontade do supremo criador das coisas. Esse Novo Homem não esquecerá, portanto, que não é da competência do templo prescrever a lei e as formas dos sacrifícios que se devem realizar em seu seio, mas que é próprio do templo receber essa lei e esses sacrifícios, tal como convenha ao príncipe dos pastores, segundo a ordem de Melquisedeck, prescrevê-los. Que a única obrigação desse templo é manter-se sempre na ordem conveniente e sempre pronto para o momento em que aprouver ao príncipe dos pastores vir oferecer o seu incenso.
Ele também tomará a sábia precaução de jamais ousar iniciar por si mesmo as cerimônias santas, sem antes sentir que o templo está pronto, que todas as luzes estão acesas, que o fogo do espírito penetrou seus muros, seus fundamentos, suas colunas, decorando todas as partes do templo da maneira digna do sacrificador que aí deverá pronunciar-se e dos santos mistérios que aí deverão realizar-se.

Perceberá, desse modo, que não apenas o Filho do homem está acima do sábado temporal, mas que o próprio templo tem também esse magnífico privilégio, pois esse templo não é outra coisa senão o Novo Homem, e o Novo Homem partilha de todos os direitos e de todas as propriedades do espírito do Senhor. Reconhecerá então que, da mesma maneira o espírito do Senhor é o chefe e o mestre do Novo Homem, também o Novo Homem se torna, por ele próprio, o chefe e o mestre da lei. Que é próprio do Novo Homem esperar e receber do espírito do Senhor as luzes, a santidade e a vida, assim como é próprio do templo construído pelas mãos humanas esperar e receber do Novo Homem a administração de todas essas coisas; e que desse modo o espírito do Senhor se torna, ao mesmo tempo, o mestre do Novo Homem, o mestre do templo, o mestre do sábado, o mestre da lei, pois ele compreende tudo, dirige tudo, penetra tudo, e somente nele as propriedades das coisas, as suas virtudes, os seus símbolos e seu espírito podem encontrar a sua explicação e o seu verdadeiro cumprimento.

Ele se encontrará, talvez no Novo Homem dos judeus, que lhe perguntarão, como o fizeram outrora os doutores da lei e os fariseus ao salvador: Por que os vossos discípulos violam a tradição dos antigos? Pois eles não lavam as mãos quando fazem a sua refeição. Enquanto não forem capazes de se elevar a essas sublimes regiões do espírito que explicam tudo, ele os fará cair em confusão, contestando a própria conduta deles em pontos da maior importância. E lhes dirá: "E vós por que violais o mandamento de Deus para seguir a vossa tradição? Porque Deus ordenou: honrai o vosso Pai e a vossa mãe, e: aquele que ofender o seu Pai ou a sua mãe seja punido de morte. Contudo, vós dizeis: Qualquer que disser ao seu Pai ou a sua mãe: toda oferta que eu fizer a Deus vos é útil, satisfaz à lei, não está mais obrigado a honrar e ajudar o seu Pai ou a sua mãe. Dessa maneira, tornastes inútil o mandamento de Deus pela vossa tradição. Hipócritas, é o que sois. Isaías profetizou bem acerca de vós quando disse: esse povo está perto de mim em palavras, honra-me com os lábios, mas o seu coração está bem distante de mim... toda planta que não for plantada por meu Pai que está no céu, será arrancada".

Não há verdade mais elevada do que a contida nessas últimas palavras, e que mereça mais atenção do Novo Homem, pois essas palavras compreendem ao mesmo tempo todas as leis, todos os tempos e todo o juízo. Heis por que o Novo Homem fará com elas uma espécie de armadura com a qual quebrará todas as flechas do inimigo. Heis por que começará por amarrar o forte a fim de poder entrar em sua casa e pilhar as suas armas, tendo sempre consciência de que se não se associar continuamente com o espírito, se não se esforçar por nascer continuamente do espírito, se não tiver todos os cuidados para ser plantado pelo espírito, enfim se não estiver com o espírito, estará contra o espírito, e se não se unir ao espírito, se consumirá.

Ele sabe que "todo pecado e toda blasfêmia serão perdoados ao homem, mas que a blasfêmia contra o espírito não será, de modo algum, perdoada. Ele sabe que todo o que falar contra o Filho do homem, isso lhe será perdoado, mas o que falar contra o espírito, não será perdoado nem neste mundo, nem no outro". Ora, ele tomará como blasfêmia contra o espírito não se juntar continuamente com o espírito, pois isso seria como acreditar em outro poder que não o do espírito. Ele tomará como falar contra o espírito não se reunir perpetuamente com o espírito, pois isso seria como acreditar poder viver com uma outra vida que não a do espírito.

Assim, o Novo Homem não somente se absterá de todas as blasfêmias contra o Filho do homem, que poderão ser suscetíveis de perdão - porque elas recaem somente sobre o homem temporal ou sobre o envoltório do espírito - como não deixará substituir em si os mínimos sinais de ofensas, ainda que as mais secundárias e suscetíveis de perdão; estará de tal modo ocupado em se prevenir contra as blasfêmias imperdoáveis, ou em realizar tão bem a atividade do espírito, que em um dia vindouro não se poderá censurá-lo, de não haver estado completamente devotado ao espírito, e não se poderá fazê-lo pagar até a última moeda, ou seja todos os momentos que ele não tiver passado nessa confiança integral e absoluta que o homem deve ter no espírito. É aí então que se verificará este dito terrível: muitos serão chamados, poucos escolhidos. Pois todos os homens nasceram para cumprir essa importante lei.

Ora, quem não temerá diante do pequeno número daqueles considerados como tendo sido fieis, e diante da multidão daqueles que o inimigo desviou desde o princípio e que desviará até o fim, pelas ilusões de todo o gênero e sobretudo fazendo-os sacrificar a lei pela tradição, o espírito pela letra e a realidade pela aparência? Quem não estremecerá, digo eu, ao ver a que pequeno número serão reduzidos aqueles que cumprirão fielmente a vontade do espírito, para que um dia se diga de cada um deles: aquele é o irmão, a irmã e a mãe do espírito.

44

O velho homem caiu sob o jugo de uma morte tríplice, que se designa sob o nome da morte do corpo, morte da alma e morte do espírito, mas que, tendo tido primitivamente, por causa e por princípio, a morte ou a abolição dos seus títulos de pensamento, palavra e realização do Eterno, deve-se considerar sob o nome de morte do seu ser divino, o qual, com efeito, está hoje em dia como que sepultado, se compararmos a sua situação deplorável com o estado glorioso que já desfrutou. É necessário que o Novo Homem tenha por tarefa procurar para si uma tripla ressurreição, ou seja que resgate o seu pensamento, a sua palavra e a sua ação das regiões tenebrosas onde se encontram escravizados; que resgate o seu pensamento, a sua palavra e a sua ação da beira do precipício ao qual o inimigo, diariamente, procura arrastá-los; e que se previna para o futuro contra a morte do seu pensamento, da sua palavra e da sua ação, em todas as circunstâncias em que o inimigo possa ameaçá-los.

Heis um dos aspectos sob os quais podemos considerar a tríplice ressurreição do Novo Homem. E esse ponto de vista é tanto mais real, quanto ele não é mais do que a imagem muito próxima do perigoso destino de toda a posteridade humana. Além do que, ele é o extrato e a imagem reduzida da obra universal que se realiza em escala maior sobre toda essa posteridade do homem.

Pois quanto essa grande obra, compreendendo todos os tempos, todos os domínios e todas gerações da família humana, deve agir desde a origem para arrancar a presa ao inimigo, que já a havia levado para a morada da servidão ou para a tumba. Depois deve agir para resgatar das mãos desse inimigo as vítimas que ele aprisionou diariamente e leva para as suas moradas sombrias. Por fim, agirá ainda no futuro para impedir que esse inimigo venha a se apoderar tão facilmente de novas vítimas ou, ao menos, para impedir que ele venha prendê-las até mesmo dentro do aprisco. E não duvidemos que se encontrem nela o espírito das três épocas das leis de restauração entre os homens, o espírito da tripla manifestação da sabedoria eterna no tempo e o ternário que caracteriza essencialmente todas as operações que foram cumpridas ou simplesmente anunciadas e descritas pelos diversos eleitos que essa sabedoria eterna enviou à terra em ocasiões diferentes, para a libertação dos mortais, para o seu consolo e para a sua instrução.

Por que veríamos nessas fontes de restauração que foram abertas uma via sacerdotal e levítica, uma via espiritual e profética e uma via divina? Por que veríamos, nessa ordem sacerdotal, levitas, pastores e um único grande pastor? Por que veríamos no povo hebreu, que representa para nós toda a família humana, um estágio de escravidão, um estágio de combate e um estágio de vitórias e de triunfos, se todos esses quadros não tivessem por objetivo nos dar uma instrução que engrandece o nosso espírito e que foi aplicável a nós mesmos?

Sim, o Novo Homem pode ter claramente essa tríplice ressurreição, tão necessária para que o nosso ser goze de algum repouso, e tão conforme a essa morte tríplice ou a essa concentração tríplice que experimentamos tão dolorosamente quando queremos por um instante lançar nossos olhares sobre nós próprios, e que nos convence, de maneira triste e demonstrativa, dessa morte tríplice e dessa concentração tríplice nas quais o primeiro homem lançou todas as suas faculdades espirituais e para quais arrastou toda a sua infeliz descendência.

A primeira e a mais penosa dessas três ressurreições que o Novo Homem terá de realizar em si, é arrancar, dentre todas as substâncias falsas que o cercam, as substâncias dos seus pensamentos, das suas vontades e da suas ações, que foram absorvidas e, por assim dizer, amalgamadas com aquelas, como que um verdadeiro sepulcro, onde não apenas não desfrutam o dia e a luz. Como estão condenadas a uma terrível putrefação. Com efeito, é impossível conceber uma realização mais dolorosa que a de separar os diferentes metais que deixamos ligarem-se uns aos outros, pois só há uma fusão integral que pode nos permitir atingir esse ponto. Mas aquilo que parecia acima das forças ordinárias, não está acima das forças do Novo Homem, pois ele é o Filho do espírito e bebeu o medicamento salvador, ou aquele poderoso solvente que Jeremias compara a um martelo que quebra as pedras. (23:29)

A segunda ressurreição será reter, à beira do precipício, os seus pensamentos, as suas vontades e as suas ações, que estariam prestes a cair se ele não empregasse toda a sua vigilância para tirá-lo das mãos que os conduziam ao sepulcro. Mas o mesmo poder do qual se servirá na primeira ressurreição, será igualmente útil a ele na segunda, e ele libertará novas vítimas dos braços da morte.

A terceira ressurreição será aquela que ele realizará desde já sobre aquelas de seus pensamentos, das suas vontades e das suas ações, que no futuro poderiam estar expostos aos ataques do inimigo, o qual tentará corrompê-los a fim de arrastá-los com ele para o abismo, porque não bastará ao Novo Homem incluir as épocas passadas e presentes na manifestação do seu poder e da sua sabedoria. É preciso que ele inclua as épocas que ainda não chegaram, pois esse é o grande privilégio do espírito.
Também trabalhará sem descanso para conseguir que a mão suprema o envolva, o sustente e o proteja, de tal maneira que o inimigo não possa mais exercer sobre ele qualquer poder. Ele chegará a esse ponto quando tiver subjugado tudo o que existe nele e quando puder dizer dele o que o salvador disse à corrupção exterior: eu dominei o mundo.

Mas, para ter dessa tríplice ressurreição uma idéia ainda mais simples, mais aproximada e, por conseqüência, mais fácil de compreender, vamos considerá-la em uma época em que a morte já produziu os seus estragos em todas as faculdades espirituais do homem. Essa imagem estando ao alcance de um número maior, só poderá ser-lhes mais útil.

Com efeito, podemos morrer em nossas obras, se levarmos nossos pensamentos falsos e nossas vontades criminosas até a consumação. Poderíamos morrer em nossas vontades corrompidas, se elas se ligarem aos planos confusos que os nossos pensamentos podem adotar, quando nós mesmos não iríamos realizá-los em nossas obras. Enfim, podemos morrer em nossos pensamentos, se os deixarmos cumprir idéias contrárias a verdade e a glória do espírito, quando nós mesmos não as adotaríamos em nossas vontades e não as deixaríamos transformarem-se em atos.

Heis então a tríplice ressurreição que cada homem deve realizar em si mesmo, se quiser atingir a dignidade do Novo Homem. E não poderemos ter a menor idéia dos nossos direitos primitivos e do nosso verdadeiro renascimento, se não restabelecermos para sempre em nós uma fonte de ações regulares, uma fonte de movimentos verdadeiros e uma fonte de pensamentos; são pois, essas três fontes que derivam juntas da fonte única e eterna do espírito.

O Novo Homem, após se ter convencido dessas verdades, não somente por sua convicção íntima, mas ainda por sua própria experiência, verá, como uma doce surpresa, que o desígnio do salvador era abrir os olhos dos homens para esses deveres indispensáveis e tão saudáveis, quando empregou o seu poder para ressuscitar três mortos dentre o povo de Israel. Pois é uma coisa admirável, não seria demais enfatizar a diferença dos lugares onde cada um desses mortos foi chamado à vida. Lázaro foi ressuscitado no sepulcro, onde estava havia quatro dias, já cheirando mal. O Filho único da viúva de Naim foi ressuscitado no caminho para o sepulcro; a filha de Jairo, chefe da sinagoga, com a idade de doze anos, foi ressuscitada na casa de seu Pai. Como não perceberíamos nessas três ressurreições realizadas pelo salvador a tríplice ressurreição que devemos fazer em nós próprios e que é, ao mesmo tempo, a obra principal e a recompensa do Novo Homem?

Com efeito, esse Lázaro ressuscitado no sepulcro e já livre da putrefação é o modelo dos nossos atos depravados e das prevaricações que levamos até a obra e a consumação, isto é, até a morada da morte e da corrupção, que é simbolizada neste mundo pelos sepulcros materiais. O Filho único da viúva de Naim, ressuscitado no caminho para o sepulcro, é o modelo das nossas vontades criminosas que aderiram aos planos falsos do nosso pensamento, mas que foram detidas na via do sepulcro, isto é, antes de chegar à sua consumação e aos atos iníquos que teriam completado sua corrupção, levando-as à putrefação sepulcral. Por fim, a filha do chefe da sinagoga, ressuscitada em casa, é o modelo da morte que podemos experimentar em nosso pensamento, quando permitimos que ele se infecte por planos criminosos e injuriosos ao espírito da verdade, que não quer que adotemos outros planos a não ser os seus, que se dignou escolher o pensamento do homem para ser o chefe da sinagoga universal, e que deseja que esse pensamento do homem e todos os Filhos que possam resultar dele, espalhem por toda a parte a vida que os anima.

45

Sem dúvida, só após ter sido purificado em todo o seu ser, e haver realizado em si essa tríplice ressurreição, que o Novo Homem fará em si mesmo a eleição da qual falamos anteriormente, ou a eleição das doze virtudes que devem manifestá-lo em toda a extensão dos seus próprios domínios. Antes dessa época ele era tão incapaz de fazer uma eleição semelhante, que não poderia sequer ter concebido essa idéia, e ainda menos executá-la, se o espírito da verdade não tivesse vindo tomar nele o lugar de todas as suas substâncias de mentira. Mais do que nunca ele está consciente do quanto nos expomos quando ousamos caminhar por nós mesmos no percurso espiritual. E é no espírito que o dirige, é no príncipe dos justos, é no salvador que ele aprende de novo a se ligar a essa reserva santa, pois esse próprio salvador ou príncipe dos justos não quis fazer por si a eleição dos seus doze apóstolos, passando toda uma noite em preces antes de escolhê-los (Lucas 6:12)

Não será somente esse mandamento interior de si mesmo que ele submeterá ao movimento do espírito. Em todas as circunstâncias da sua vida ele terá na boca as palavras dos salmos 101:3: Em qualquer dia que eu vos invoque, atendei-me. Ele não quererá uma única virtude que não venha dele, pois sabe o quanto esta seria frágil. Mas abrirá em si todas as substâncias das suas virtudes, a fim de que o espírito venha apoderar-se delas, vivificá-las e governá-las em todas as circunstâncias.

Assim ele pedirá incessantemente ao espírito que venha instalar-se em sua penitência, em sua humildade, em sua coragem, em sua resignação, em sua prece, em sua fé, em seu amor, em suas luzes, em sua esperança, em sua caridade, em todos os afetos puros da sua alma e em todos os movimentos da sua essência espiritual e divina, a fim de que não seja mais vencido nos combates que terá a enfrentar.

Ele verá com que arte os homens evitam os perigos naturais que os ameaçam, com que sabedoria prevêem os males que a sua experiência lhes ensinou e opô-los uns aos outros para se preservar dos estragos que esses elementos poderiam lhes ocasionar, caso os deixassem entregues à força latente e impetuosa que os arrasta incansavelmente as desordens. Porque ele vê o homem dispor sobre esses elementos e temperar, ao seu prazer, o fogo com a água, o frio com o calor, o seco com o úmido, e variar as propriedades nas quais ele se instala, pela aplicação das substâncias diversas que a natureza colocou nas suas mãos com uma prodigiosa abundância.

O Novo Homem não duvidará que o espírito tenha os mesmos poderes nos domínios em que a sua essência e a sua supremacia o chamam para reinar como mestre e soberano. Não duvidará que esse espírito possua, segundo a sua classe, incomparavelmente mais dons, mais previdência e mais sabedoria, os quais não podem ser possuídos pelo homem que está circunscrito à região elementar, qualquer que seja a habilidade que esse homem possa utilizar para isso. Não duvidará que esse espírito tenha à sua disposição um número incontável de propriedades e de substâncias da sua própria natureza, em comparação com as poucas substâncias da nossa matéria, bem como para a produção e a manutenção das obras das nossas mãos.

Pleno dessa convicção salutar, o Novo Homem, quando fraco e fatigado, dirá ao espírito: ponde uma das vossas forças sobre a minha fraqueza e ela a fortificará. Quando estiver abatido e frio, dirá ao espírito: ponde uma das vossas substâncias ardentes sobre minha debilidade, e ela a animará. Quando estiver arrebatado por seu ardor impetuoso, ele dirá ao espírito: ponde uma das vossas substâncias calmas sobre a minha impetuosidade e ela a temperará. Quando estiver nas trevas, dirá ao espírito: ponde umas das vossas substâncias luminosas sobre a minha obscuridade e ela a iluminará. Quando estiver ofuscado pela luz, ele dirá ao espírito: ponde sobre os meus olhos uma das vossas substâncias intermediárias, e eu não temerei mais perder a visão. Quando estiver cercado pelos seus inimigos, ele dirá ao espírito: colocai entre mim e eles um dos vossos escudos, e eu estarei protegido de todos os ataques. Quando se sentir como que suspenso por um fio em cima do abismo, ele dirá ao espírito: estendei para mim uma das vossas mãos, e eu caminharei sobre esses abismos como se fosse sobre a terra mais firme.

Heis de que maneira o Novo Homem se unirá à habilidade do espírito para se curar de todos os seus males, para se reservar de todos os perigos, para prover todas as suas necessidades. Pois não devemos temer repetir uma verdade tão essencial e tão consoladora, a saber, que o espírito se presta mil vezes mais facilmente ao alívio das nossas necessidades espirituais, do que a natureza se presta ao alívio das nossas necessidades materiais, porque ele nos ama e a natureza não nos pode amar, pois ela só pode nos entregar cegamente todas as substâncias que cria, para que nos ocupemos, em seguida, de empregá-las para o nosso benefício, segundo a nossa sabedoria e as nossas luzes. É assim, portanto, que se conduzirá o Novo Homem em relação ao espírito: ele tratará de cativar a sua boa vontade, para que possa, com inteira confiança, dizer-lhe: em qualquer dia que eu vos invoque, atendei-me.

A melhor maneira de chegar a esse final feliz, é poder dizer realmente com confiança ao espírito: em qualquer dia que eu vos invoque, atendei-me, é aproveitar cuidadosamente as substâncias saudáveis que ele nos envia para o alívio das nossas enfermidades. Quanto mais tirarmos proveito delas, mais ele nos prodigalizará com outras, de tal modo que a nossa prece possa, ao fim, transformar-se em uma invocação ativa e perpétua e que, em vez de dizer essa prece, possamos realizá-la e operá-la a todo momento para a nossa preservação e cura contínuas.

Consideremos então esse Novo Homem cercado de todas as substâncias do espírito e aplicando-as, por sua fé efetiva ou por sua prece em atos, a todas as necessidades que pode experimentar em sua obra. Vejamo-lo, em todos os passos ao seu caminho, procurar para si novas graças, novos apoios, novos benefícios e, por essa fidelidade e esse vivo devotamento, identificar-se de tal modo com o espírito, que essas mesmas graças, esses mesmos apoios e esses mesmos benefícios desçam sobre ele de uma maneira natural e gratuita: que ele as receba a todo instante, sem que as procure e sem que, contudo, se surpreenda ao vê-las preencher todas as suas necessidades.

Por essa doce perspectiva, julguemos o que seria para nós esse estado glorioso em que não nos encontramos mais, mas do qual o Novo Homem nos autoriza a crer que podemos ainda perceber os vestígios neste mundo. Porquanto esse Novo Homem deve ser para nós o desenvolvimento e a manifestação do que era o homem primitivo, antes que as conseqüências do crime o tivessem tragado em sua prisão tenebrosa.

Vejamo-lo desenvolver os tesouros que se escondem nele, e dos quais o salvador nos mostrou tantos frutos semeados no campo evangélico. Vejamo-lo no meio de um povo que tem um número aproximado de cinco mil, tendo apenas cinco pães e dois peixes para se alimentar. Ele os fará sentar-se em grupos de cinqüenta em cinqüenta, tomará os cinco pães e os dois peixes, elevará os olhos para o céu, abençoá-los-á, parti-los-á e dá-los-á aos seus discípulos para que os apresentem ao povo. Eles comerão todos e ficarão saciados e levarão doze cestos cheios dos pedaços que sobraram. Uma outra vez, ele tomará sete pães e alguns peixes para quatro mil homens. Todos eles comerão e ficarão saciados e levarão sete cestos cheios dos pedaços que restaram. Uma outra vez ainda, vejamo-lo, com Eliseu, multiplicar vinte pães para mil pessoas, dos quais também haverá sobra.

Todos esses fatos são apenas os testemunhos e os frutos dos dons que o espírito fez germinar no Novo Homem. Apenas anunciam esse alimento espiritual, ativo e físico que esse Novo Homem pode incessantemente multiplicar nele em favor dos diversos povos que habitam as diversas regiões do seu ser. Porque, se estiver unido à fonte da vida, não haverá nenhum lugar nele a que os veios dessa fonte viva não possam chegar e acumular as suas águas fecundas, de tal maneira, que a fertilidade aí se estabeleça e forneça abundantemente a substância a todo o que habitar seus domínios legítimos, de indigente e esfomeado.

Se a inteligência quiser se elevar ainda acima desse Novo Homem e se entregar as leis e aos caminhos que a sabedoria divina utiliza para fazer descer as suas graças e os seus favores sobre os infelizes mortais, ela verá nos fatos relatados acima, primeiramente, o poder supremo aliviando a nossa fome e curando a nossa miséria pelo número da nossa própria miséria. Em segundo lugar, verá esse mesmo poder supremo nos reservar, além disso, o número necessário de fontes abundantes para nos ajudar em nossa regeneração. Enfim, verá esse mesmo poder supremo agindo em seguida, por um número puro, sobre o homem regenerado, devolvendo-nos novamente a posse desse mesmo número puro que foi, outrora, a nossa característica distintiva.

46

A razão pela qual o Novo Homem, reunindo-se à fonte de vida, se toma depositário de tão grandes tesouros, podendo manifestar em si próprio tão grandes e tão saudáveis multiplicações, é que essa fonte de vida o faz descobrir, no fundo do seu ser, sete fontes ativas que, unindo mutuamente suas forças diversas, desenvolvem, umas através das outras, suas propriedades particulares, de uma maneira que não possam mais se interromper, e que torna essas fontes inesgotáveis, pois é a fonte da vida que as anima e as sustenta.

São como bases sacramentais que trazemos em nós próprios, e sobre as quais devemos elevar todo o edifício sacerdotal ao qual o homem foi destinado por sua natureza primitiva e segundo os planos da sua origem. São as sete colunas erguidas por essa pedra inata em nós, sobre a qual o salvador disse que queria construir a sua igreja.

Essa pedra é quadrada e talhada pelo cinzel do espírito e deve servir de base a esse templo divino, destinado a substituir no Novo Homem as tendas que, até então, foram o único abrigo da arca santa ou da verdade. É essa a porta do templo que era quadrada, segundo o profeta Ezequiel (41:21), e que correspondia à fachada do santuário, olhando uma para a outra. É por essa porta que os oráculos do santuário devem se pronunciar ao povo, segundo Isaías (9:8): O Senhor dirigiu a sua palavra a Jacó, e ela caiu em Israel. E saber-lo-á todo o povo de Efraim e os habitantes da Samaria. É por essa mesma porta que devem entrar as nações para vir adorar no templo de Jerusalém, e são essas sete colunas erguidas no templo que tornam esse templo totalmente sólido, para que as nações possam habitar nele em segurança, pois Salomão nos diz (Provérbios 9:1) que a própria sabedoria edificou para si uma casa e levantou sete colunas.

Novo homem, contempla-te, portanto, com respeito. Tu tens, à tua frente, o santuário ou a unidade eterna e divina; tu tens, ao fundo do teu ser, a base fundamental do templo, e encontras em atividade nesse templo as sete fontes sacramentais que, estando vivificadas pela fonte da vida, devem fertilizar para sempre todas as regiões que te compõem. Compete a ti velar incansavelmente para que as águas dessa fonte de vida não se desviem de modo algum do seu curso natural e para que se dirijam, diariamente, aos teus sete canais espirituais. Elas jamais se desviarão por si mesmas, porque, por sua própria inclinação, tendem a encontrar o repouso em ti. Mas se não tiveres o cuidado constante de lhes preparar os caminhos, exatamente em linha reta, essas águas divinas se espalharão em vez de entrarem nos teus sete canais espirituais, e não te trarão benefício algum, pois é essa pedra fundamental do teu templo que elas escolheram como sendo o único mar suficientemente grande para lhes servir de reservatório.

Essa pedra fundamental é realmente a raiz dessas sete fontes sacramentais, que o Novo Homem descobre em si depois de já ter suportado as provas preparatórias e indispensáveis, como aquela em que descobriu esse divino instrutor do qual falamos anteriormente, e que, estando sentado na cadeira anterior a todas as cadeiras temporais, pronunciou diante dele, sobre a verdadeira montanha, os discursos e os ensinamentos que devem servir de guia e de regra ao povo de Israel, se ele quiser conservar os privilégios da sua escolha.

A raiz dessas fontes sacramentais se encontram, então, na pedra fundamental do nosso templo; portanto, trazemos em nós próprios o testemunho e a característica viva que nos devem dizer, à semelhança, do salvador: "Como o Pai tem a vida em si próprio, ele concedeu ao Filho que também tivesse a vida em si próprio, e deu-lhe o poder de exercer o julgamento, porque ele é o Filho do homem..." Também pode dizer como o salvador: "Eu não recebo o testemunho de um homem... Tenho um testemunho maior que o de João... é meu Pai, que me enviou, deu ele próprio um testemunho de mim".

O Novo Homem pode falar dessa maneira, porque ao descobrir em si a pedra fundamental do templo, ele reconhecerá que ela é o fruto, o extrato, o produto e o testemunho da própria unidade, e que se essa pedra fundamental é o testemunho da unidade, que por sua vez é o testemunho dessa pedra fundamental, pois o Filho é o testemunho do Pai, como o Pai é o testemunho do Filho.

É esse duplo testemunho que assegura para sempre a dignidade do Novo Homem e que constitui a base da sua confiança e da sua segurança. É, ao mesmo tempo, o que dá todo o valor e toda a virtude a essas sete fontes sacramentais que derivam dessa pedra fundamental sobre a qual deve ser construída a igreja, como essa pedra fundamental deriva da unidade.
Também a harmonia se faz conhecer nessas fontes, pois elas são a expressão da harmonia que deve reinar na pedra fundamental, à semelhança daquela que reina na unidade. Elas estão todas intimamente ligadas, embora tendo características distintas, e se auxiliam mutuamente de modo algum para eclipsarem umas as outras, mas para facilitar as suas diversas manifestações.

Ora, as suas manifestações, ainda que diversas, tendem contudo a um fim comum e único, que é a propagação e a comunicação da coisa sagrada. Porque um sacramento tem essa reputação, uma vez que ele é o caminho pelo qual as coisas santas e divinas se transmitem aos lugares onde são necessárias para que a morte e o nada desapareçam; e sob essa ligação vemos crescer, diante dos nossos olhos, a dignidade do homem que foi escolhido para ser a pedra fundamental do templo e, além disso, para possuir as sete fontes espirituais pelas quais a Vida Divina quer se transmitir aos lugares áridos e estéreis. Ora, hoje não podemos mais ignorar o que desenvolve nele essas sete fontes sacramentais, pois repetidamente apresentamos o homem como sendo o pensamento, a palavra, a realização do eterno, e como tendo uma necessidade indispensável do auxílio da palavra, para que a palavra lhe seja restituída e ele possa alcançar a dignidade do Novo Homem.

Digamos, então, que o Novo Homem só possui em si essas sete fontes sacramentais, ou esses sete sacramentos, porque recebeu realmente em si o sacramento da palavra, e esse sacramento da palavra fez brotarem nele as sete fontes que, anteriormente, estavam na estagnação e na morte. Mas como o sacramento da palavra não pode atingir as sete fontes sacramentais do Novo Homem, por não ter operado sobre a pedra fundamental do templo, segue-se que essa pedra fundamental do templo deve primeiro ser penetrada e revestida por esse sacramento da palavra, para que as sete fontes que se originarão, dai sejam sempre abundantes, e para que os rios divinos possam enchê-las ininterruptamente e em toda a sua pureza.

Recolhamo-nos diante de Deus, diante desse princípio eterno de toda vida e toda existência, o único a quem se podem oferecer homenagens merecidas, que não cabem a nenhum outro ser. Recolhamos diante dele, em nosso respeito e em nossa admiração, por ter permitido que a alma do homem pudesse partilhar a serenidade da sua existência divina e a administração dos seus tesouros santificantes. Recolhamo-nos, digo eu, em um santo tremor, a fim de que a nossa essência imortal reuna desse modo todos os seus poderes, para não receber em vão esse sacramento que fará correr nela.

Tenhamos incessantemente diante dos olhos o destino tão glorioso do Novo Homem que o sacramento da palavra regenerou. Ele foi sacralizado por essa palavra e, por assim dizer, como um sacramento nele tudo foi sacramentado em seu ser, pois as sete fontes sacramentais que brotaram da sua pedra fundamental compreendem sua região terrestre e corporal, sua região celeste e espiritual e sua região divina.

Após ter sido assim sacramentado em todo o seu ser, ele teve sacramentado todos os objetos que o rodeiam e todos os seres que esperavam que essas fontes sacramentais fossem abertas para receber as águas do rio da vida. E tal é o destino que o homem teria desfrutado se tivesse conservado a sua dignidade primeira. Tal é o destino do qual ele pode recuperar os traços vivos, humilhando-se diante do sacramento da palavra e administrando com sabedoria e com um santo temor os dons que sairão dessas sete fontes sacramentais. Tal é, enfim, o destino que deve ainda se tornar belo para ele, dia vindouro, se souber unir-se para sempre a esse sacramento da palavra, do qual foi feito para ser eternamente sacramentado.

47

Esse sacramento da palavra dá três nomes ao Novo Homem, segundo as três faculdades que nos distinguem. Assim, em sua ação, ele se chamará celeridade da obra; em seu amor ele se chamará unidade dos reflexos do afeto divino; em seu pensamento ele se chamará amanhã perpétua do mais belo dia; e todo o seu ser, desenvolvendo-se assim, fará o inimigo sentir de tal maneira suas forças, que ele tremerá de medo ao saber que o leão desperta e o ameaça de não ter um momento de repouso e de perseguí-lo até que tenha largado a sua presa e que seja queimado pelo fogo da palavra do Novo Homem.

Como a palavra tratou Efraim e Judá? Esses povos que romperam, como Adão, a aliança que haviam feito com ela, e que no seu culto violaram as ordens do Senhor. (Oséias 6:7) Eu os tratei duramente pelos meus profetas e os matei pela palavra da minha boca (disse o Senhor, id. 5) e tornarei clara como o dia a eqüidade dos julgamentos que exercerei sobre eles. Se assim foram tratados os povos prevaricadores, que eram, contudo, o povo escolhido, a justiça não tratará mais severamente ainda o príncipe da iniqüidade e o Pai de todas as abominações sobre a terra? E ao Novo Homem foi destinada a execução desses terríveis julgamentos em todo o seu ser, antes de os exercer sobre as nações que estão fora dele.

Ele permanecerá noite e dia em seu trono, não deixará de modo algum a sala do conselho, cuidando para que os decretos que emanam dele sejam levados apenas por mensageiros fiéis, até as fronteiras das suas possessões e do seu império particular, que esses decretos não sejam recebidos com tremor pelos povos culpados, e que ele tenha somente testemunhos autênticos de que esses decretos produziram o seu efeito e foram executados. A autoridade se enfraquecerá se a obra não se cumprir. O homem deve velar e respirar somente para o triunfo da lei. E se quiser que a autoridade não perca o respeito que lhe é devido, é preciso que ela não ordene nada em vão.

É a fim de que ela não ordene nada em vão que o Novo Homem se unirá aos homens de Deus, para que eles unjam os seus membros com o óleo santo e se preservem de serem mortos pelo inimigo ou empedernidos pela indolência. Rogará ao grande pastor que venha renovar nele as diversas alianças que Deus sempre quer fazer com o homem, e que o homem sempre se esforça para anular. Rogará ao grande pastor que venha a toda hora e a todos os momentos ministrar, no seio da sua alma, o sacramento do renascimento e da revivificação. Pois sem isso, como poderá reunir as porções dispersas do nome do Senhor? Ora, heis como a sabedoria distribuiu os órgãos do Novo Homem, a fim de que ele possa cumprir o seu destino e reunir as porções dispersas do nome do Senhor.

O coração está situado à direita da alma. É ele que deve ajudá-la a pôr todos os inimigos a seus pés. O espírito está à sua esquerda, para adverti-la da aproximação do inimigo. Quando tiver a felicidade de fazer triunfar a lei e de colocar os inimigos a seus pés, então o espírito passa para a direita e da direita vai para a linha da unidade. O salvador, que é o modelo divino do Novo Homem, não foi anunciado por toda a parte como estando à direita de Deus? O espírito está à sua esquerda. Está encarregado de velar contra o inimigo e de anunciar os julgamentos da inteligência eterna, expressões que somente têm lugar no tempo e acerca das quais o homem esclarecido não se pode enganar, porque ele sabe que, acima do tempo, todos os nomes estão em um só nome e exprimem um só ato. Mas no quadro dessa disposição temporal das obras divinas, o Novo Homem vê por que nos é dito que a nossa vida está oculta no salvador. É que o salvador é a vida, e só podemos viver pelo coração; heis mais uma razão pela qual o homem está à direita do Senhor.

Sim, o coração do homem é o seu céu, e a sua alma, é o seu Deus. O Deus não pode morrer, mas o céu pode obscurecer, ele pode se confundir como um livro. O único meio pelo qual o Novo Homem impedirá o seu céu de obscurecer e se confundir como um livro, é fazer-se um coração à imagem de Deus e identificar-se com aquele que está à direita de Deus, tornando-se assim semelhante à vida. Homens de paz, queiramos que esse céu não mais escureça e nem se confunda como um livro. Façamos de nós um coração que se assemelhe à direita de Deus, que combata universalmente, como ela, as desordens; que como ela, por sua própria força, vença a iniqüidade, que, como ela, deixe sair de si mesmo os ramos de todas as virtudes, fazendo brilhar, noite e dia, o candelabro de sete pontas; que, como ela, possa satisfazer a nossa segurança e as necessidades espirituais dos indigentes; enfim, que, como ela, esteja sempre pronto a realizar a obra de Deus, de todas as formas e em todas as ocasiões.

Porque o Novo Homem não pode afirmar, antecipadamente que, à imagem do salvador, ele deve ser entregue às mãos dos homens, que é precioso que sofra muito, que seja rejeitado pelos senadores, pelos príncipes dos pastores e pelos doutores da lei e, enfim, que seja morto e que ressuscite no terceiro dia. Mas esse Novo Homem, devotado ao serviço do seu mestre, vê somente as consolações que o esperam e não se deixa deter pelos males que deve sofrer, pois ele bebeu o medicamento da amargura, e assim o seu coração engendrou nele a compreensão, e a compreensão engendrou nele a palavra que lhe traz uma viva confiança na sua vitória sobre os seus inimigos. Em conseqüência, heis de que maneira ele emprega os diferentes recursos que lhe são dados pelo espírito, e que se encontram nele pelos diversos desenvolvimentos do seu ser.

Ele coloca a constância no oriente, a purificação no ocidente, a confiança ao norte, a audácia santa ao meio-dia, e assim marcha para a sua obra, sempre no meio de virtudes.

Não se deixa enfraquecer pela ternura dos seus irmãos, que o querem deter e impedir de ir a Jerusalém, onde deve sofrer e ser morto. Conhece somente as coisas do céu e se "queixa vivamente aos seus irmãos de que eles não renunciam a si próprios para o seguirem e de que têm somente o gosto pelas coisas da terra. E de que serviria a um homem ganhar todo o mundo e perder a si mesmo? Como poderia redimir-se, quando o Filho do homem viesse na glória do seu Pai, com os seus anjos, para dar a cada um segundo as suas obras?"

Essa também é a diferença dos caminhos por onde os movimentos e as ordens nos chegam. Quando recebemos do alto as ordens ou os conselhos, o quaternário age pela inteligência, pela adesão, pelo zelo e pela obra; quando é a nossa própria alma que se manifesta, ela age pela afeição, pelo julgamento, pela vontade e pela expressão, porque, como nos encontramos nas trevas, é preciso, necessariamente, que submetamos nossos movimentos ao grande juiz - que está sediado na região superior -, para que as sancione. Mas enquanto não tivermos colocado tudo em ordem em nosso ser, só haverá intrusos sentando-se no tribunal; e eles sancionam, seja pela ignorância, seja pela depravação, os planos mais perversos, colocando-nos pelas obras que daí resultam, na situação de não mais poder receber do alto nem as ordens, nem os conselhos. Pois, se um cego conduz outro cego, o que eles podem trazer um ao outro, e não é para crer que ambos caiam na fossa?".

É por isso que o meu coração está pungido por uma ferida que não pode mais ser curada sobre a terra, porque essa ferida é semelhante àquela que afetou o reino da verdade. Também eu não procurarei mais sobre a terra o remédio para a ferida do meu coração. Eu o procurarei no reino da verdade, pois somente ele pode resistir ao inimigo e curar todas as feridas. O próprio reino dos céus chora e está cheio de tristeza, depois que o mal verteu o seu veneno e que o príncipe das trevas sentou-se no tribunal: como poderia o coração do homem não estar em luto e lágrimas, uma vez que o reino dos céus e o coração do homem estão unidos por uma aliança que os torna inseparáveis? É nessa aliança que os torna inseparáveis que se encontra também a única consolação feita para o homem. Porque o choro do reino de Deus, ao penetrar o meu ser, trouxe-lhe o discernimento, como as lágrimas da vinha trazem claridade aos nossos olhos corporais.

Chorai então, videira sagrada, chorai com abundância que recolheremos com cuidado as lágrimas que espalhardes. Fazei com que nosso ser chore convosco, pois se nosso ser deve unir-se a vós nas consolações, também o deve na vossa tristeza. Só vossas lágrimas podem curar a ferida universal, mas são as lágrimas do homem que devem curar suas feridas particulares. Quanto mais ele chorar, mais poderá esperar curar-se da ferida, pois só poderá obter isso pelas suas lágrimas e pelos seus gemidos. Ele não faz mais do que repetir a imagem da vossa obra restauradora. Quanto mais chorais, mais anunciais, como avinha, uma grande colheita, e mais manifestais as virtudes salutares da primavera.

48

O homem de Deus é obrigado a se rebaixar constantemente e a se reduzir, como Elias, à pequenez do Filho da viúva de Sarepta para ressuscitá-lo. É isso o que torna o seu ministério tão laborioso. É preciso que esse homem de Deus esteja sempre em contração, para adequar as virtudes divinas à nossa morada impura e suja. Pois o homem se estabeleceu para ser perpetuamente o órgão dessas virtudes, seja na prece, seja nos ensinamentos, seja nas obras.

Que o Novo Homem não se atemorize por essas fadigas; o tempo de repouso fará com que ele as esqueça. O Novo Homem é um homem de verdade, e o homem de verdade não conhece nenhum obstáculo. Mesmo no meio dos seus trabalhos e das suas provações, tem sempre diante de seus olhos esta passagem de Davi: que toda a terra se regozije em Deus. Servi o Senhor com alegria, entrai e apresentai-vos diante dele em um êxtase santo. Sabei que o Senhor é o verdadeiro Deus, que foi ele quem nos fez e que não fizemos a nós mesmos. Toda a terra do Novo Homem está em segurança, e na alegria, porque ele sente que os seus ossos se tornaram semelhantes aos ossos da vida, e que a virtude da carne celeste e do sangue espiritual penetra e nutre a sua carne e o seu sangue.

Homens impetuosos, vós queríeis conhecer as vontades de Deus nas diferentes situações em que vos encontrais, como se estivésseis unidos a ele, enquanto que nada se pode fazer por vós sem essa santa união. Queríeis estar unidos a Deus, como se estivésseis purificados, enquanto que essa união só pode ser feita após a vossa purificação. Queríeis ser purificados como se tivésseis, feito todos os esforços para isso, enquanto que a vossa purificação não pode ter lugar senão após longos e penosos sacrifícios. Queríeis que esses longos e penosos sacrifícios fossem feitos como se os objetos desses sacrifícios já tivessem desaparecido de vossa frente, enquanto que esses mesmos objetos compõem hoje em dia todas as substâncias do vosso ser.

Começai baixando um véu entre vós e os objetos informes que deformaram vossa visão e vosso discernimento. Esse primeiro passo vos conduzirá aos sacrifícios, os sacrifícios vos trarão a purificação, a purificação vos guiará à união com o princípio ativo do vosso ser, e esse princípio ativo vos revelará, a todo instante, as vontades do vosso Deus. Pois o vosso Deus está ocupado com os seus planos e com os seus desígnios para os homens. E quando ele realmente se une a nós, de uma maneira viva e dinâmica que desenvolve ativamente todas as nossas relações e todas as nossas leis.

Foi-nos dito que Deus era tudo. Mas não é de modo algum na linguagem de uma moral vaga e estéril que podemos compreender essa verdade: e somente a partir dele, por ele e nele que podemos entendê-la. Ai dos homens impetuosos no meio de riquezas tão abundantes! Em vez de unirem-se a essa ação una, abandonam-se diariamente e se deixam seduzir por toda sorte de ações múltiplas e diversas, que os destroem e os decompõem, iludindo-os.

Mas tu, ó sabedoria santa, tu que jamais perdes de vista os teus Filhos, se deixares que eles sejam negligentes e errem, não poderão eles, em conseqüência, adquirir virtudes falsas quando entrarem no caminho reto? Porque podes trazer-lhes, ao mesmo tempo, os frutos do tempo que eles empregaram e os frutos do tempo que perderam, pois tu podes, se quiseres, abolir e apagar para eles a diferença das horas. Mas que esses infelizes não esqueçam jamais sob que condições essa diferença das horas lhes será abolida. Será somente quando cada porção do seu ser tiver se tornado um órgão de dor e de penitência. Porque sem essa aguda transpiração, a corrupção permanecerá neles e lhes corroerá até a medula.

Sábios do século, que considerais que a natureza do homem não pode chegar até o nosso conhecimento, jamais experimentastes o verdadeiro segredo que poderia trazer-vos esse conhecimento. Como podereis querer obtê-lo, então? A própria matéria não sai dos seus invólucros para vir vos oferecer os seus segredos? Seria preciso, portanto, começar por seguir a lição que ela vos dá e libertar-se dos vossos próprios entraves, como ela faz diariamente. Poderíeis, em seguida, comparar os seus frutos com os do vosso ser interior, e essa comparação bastaria para dirigir os vossos julgamentos de maneira mais segura.

Com efeito, podereis obter uma prova positiva de que essa matéria é enganosa e sem valor. É assim quando percorreis as suas vias obscuras e submeteis o vosso espírito às suas leis, parecendo-vos que estais no vazio e como que numa miséria universal. Ao contrário, podereis obter uma prova de que o espírito é tudo. É assim quando o cultivais e vos ligais às suas percepções, parecendo-vos que estais na plenitude e que ele não vos deixa faltar nada.

Assim também a própria lei, tomada em seu sentido integral e essencial, é o caminho que nos conduz à unidade e que por objetivo a unidade, isto é, o gozo da realidade. Porque quando estamos na unidade, temos o sentimento do gozo e não temos mais a idéia da lei. Mas, uma vez que saiamos da unidade, a lei se apodera de nós, e heis que elas são as suas ramificações, se não cuidarmos para prevenir os fins inferiores aos quais ela pode nos fazer descer.

O dever está ao lado da lei, a fadiga ao lado do dever, o desalento ao lado da fadiga e a miséria ao lado do desalento. Na própria ordem dos gozos legítimos deste vale de lágrimas e em tudo o que podemos chamar neste mundo de serenidade e felicidade do espírito, não estamos muito mais em segurança, enquanto a própria unidade não nos dominar, nos dirigir, nos governar. Pois o prazer está ao lado da felicidade, o erro ao lado do prazer o crime ao lado do erro e a morte ao lado do crime.

O homem, retorna em direção à unidade. Só ela te manterá acima de todos os perigos, porque te manterá acima de todas as leis, pela abundância da sua sabedoria e a imensidão da sua luz. Não imita esse tirano cego que submete as nações encurvadas ao seu jugo. Tu vês que o mundo está contente, pois o espírito se oculta nele e não exige nada dele, ao passo que o corpo encontra aí tudo o que precisa. Não esqueça que, na verdadeira ordem, caberia ao espírito, ter tudo o que quisesse, e que o corpo, ao contrário, não poderia ousar elevar a sua voz e pedir qualquer coisa, mas esperar, como um vil escravo, que se quisesse dar a ele tudo o que necessita. Sem isso, o espírito se degrada, na medida em que, se torna o servidor desse escravo. Não estamos nós bastante degradados pelos cuidados forçados que diariamente temos de dispensar a essa forma material que nos envolve, e pela obrigação que nos sujeita, de modo humilhante, a tratar dessa besta de carga? Sangue do homem, profetizado contra a sua injustiça e o seu crime; profetizado como o fardo da sua iniqüidade. Ele paga com juros os seus primeiros desvios, depois que o sangue se tornou a sua vestimenta. Esse sangue lhe foi dado para que afogasse todos os súditos do faraó, após ele próprio tê-lo atravessado sem molhar os pés, como Israel ao cruzar o mar Vermelho. Mas, em vez de se separar, a cada dia, dessa vestimenta que o desonra, ele lhe acrescenta novas marcas de infâncias, que poderão torná-lo um objeto de opróbrio.

Sim, o sangue é o inferno terrestre. Longe de aclamar a tempestade, ele busca somente torná-la mais violenta, a fim de que o homem seja tragado para o fundo do mar. Ele ordena aos quatro ventos do céu que venham agitar incessantemente as ondas desse mar tormentoso, e essas ondas, ao se agitarem elevam-se para revelar as fundações do altar de Baal. Oh! sangue, oh! sangue, cada uma da tuas palavras é uma revelação da impiedade do homem e uma profecia do príncipe da mentira. Heis por que todos os nossos dias se passam na ilusão e no vazio. Heis por que vivemos no meio das espessas trevas do Egito.

Mas se a palavra do Senhor deve um dia revelar os fundamentos do mundo (Salmo 17:16), não pode também ela revelar os fundamentos da alma do homem? E sem isso o Novo Homem poderia ainda ter esperança? Ele dirá então: "Senhor, recordai-vos da sabedoria dos vossos desígnios, desde que haveis dado ao homem a existência. O grande objeto de vossa antiga aliança com ele, poderíeis alguma vez esquecê-lo? Se o sábio se afrouxou diante de vós, foi em vão que ele abriu os olhos para o resto da sua obra. Ele se torna o objeto das lágrimas dos profetas que o comparam aos servidores preguiçosos. Pois não pode mais cantar os cânticos da paz e da felicidade, esses cânticos que os ouvidos de sabedoria gostam de ouvir".

O Novo Homem ouve no fundo de si mesmo esse cântico que agrada o ouvido da sabedoria: "É do alto que virá a minha força, é do alto que espero a luz. A Força do poder do Senhor precipita todos os seus inimigos no abismo, porque o seu poder impede a alma humana de desenvolver o dela, e o poder da alma humana é como um entrincheiramento em torno do exército do Senhor".

Alma humana, enche-te de confiança e considera quais serão os teus benefícios, se te dignares a fazê-los render. O inimigo não é mais do que uma passagem por onde ele pode aproximar-se de ti, e tu podes ainda fechar essa passagem de acordo com a tua vontade. Mas, para ti, teus poderes podem desenvolver-se em todos os sentidos, pois tu és o centro e te manténs no centro universal. Porque era de ti que falava o salvador quando dizia: assim como o meu Pai, da mesma forma aquele que se alimentar de mim vivera por mim. Ora, alimentar-se do salvador é transformar todas as tuas substâncias nas obras e na atividade do seu espírito, fazendo com que esse espírito eterno e divino penetre todas as tuas faculdades, como o sumo dos teus alimentos grosseiros penetram todas as fibras do teu corpo.

49

Não é pela repetição das palavras em sua prece que o Novo Homem chegou a essa união com o espírito; é pelo fogo interior do seu ser, que se inflamou e que espalhou ao redor dele uma luz semelhante àquela da qual se originou. A lei da afinidade realizou o resto. E mesmo esse fogo do seu ser interior só se acendeu pelo sopro suave da sabedoria, que procura apenas levar a cada coisa as suas propriedades.

Quem não sentiu esse sopro suave da sabedoria descer sobre si, jogando por terra todas as matérias estranhas que escondem esse fogo e o impedem de se mostrar em todo o seu esplendor e em toda a regularidade da sua forma, digo eu, quem não viveu essa experiência útil não conhece ainda o verdadeiro caminho.

Com efeito, é nesse caminho que se conhecem as recompensas prometidas ao Homem de Desejo, que se consumiu na vigilância e no zelo em guardar a cidadela que lhe foi confiada; a esse Homem de Desejo que prometeu a si mesmo não se entregar a uma especulação do espírito e da inteligência, sem haver antes consagrado esforços e tempo a alguma obra ativa do espírito. Ele está persuadido de que o homem deve sempre temer por não agir e jamais temer por não saber. É saudável: estar sempre pronto a seguir as ordens do seu mestre: sempre cheio de resignação a todos os acontecimentos aos quais os seus serviços podem conduzi-lo; enfim, sempre feliz por poder se tornar, interiormente, o testemunho consolador de que zelou pela glória desse mestre e de que não faltou, nem atrasou no seu serviço.

E então, o sopro suave dessa sabedoria que desenvolverá no Novo Homem a sua verdadeira prece, que é a ação natural do seu ser. Pois o único fim dessa prece é manter no homem a ordem, a segurança, a moderação. Deve fazer com que o inimigo fique sempre fora de lugar, que o coração do homem esteja sempre saciado das fontes das águas vivas, e que o seu pensamento seja como um centro onde as luzes divinas se reúnem para se refletirem com um brilho ainda maior. Como essas são as faculdades primitivas do homem, se elas chegarem a cumprir o objetivo da sua destinação, o homem estará realmente em sua prece, ou melhor, o homem será de fato a prece e o sacrifício do mais agradável perfume que o senhor possa receber. Mas onde está aquele que verdadeiramente se converteu em uma prece e em um sacrifício do mais agradável perfume para o Senhor?

Deus disse: "O homem será um centro onde se refletirão todos os raios da minha glória. Ele recebeu de mim, em seu corpo, a base de todas as impressões e de todas as suas qualidades de seres sensíveis, assim como recebeu de mim, em seu espírito, a base de todas as impressões e de todas as propriedades superiores. Foi por mim que dispus e coloquei o homem nessa alta categoria. Tive por objetivo a minha própria alegria, a minha própria glória e o progresso dos meus desígnios. E, contudo, o homem desdenhou os meus presentes. Desdenhou trabalhar para a minha glória e para o progresso dos meus desígnios. Como eu deveria tratar esse servidor infiel? Eu o trataria como às nações que tomaram os ídolos por seus deuses. Mil universos acumulados uns sobre os outros não subtrairiam dos meus olhos esses culpados. O seu crime ousa tocar o meu trono, e a minha justiça se lembra ainda do abalo que ele experimentou. Homens negligentes, homens insensíveis a minha glória e ao avanço dos meus desígnios, enchei-vos de zelo pela minha casa até que os muros de Jerusalém estejam totalmente construídos, até que estejais realmente convertidos em uma prece ativa e em um sacrifício de agradável perfume para aquele que vos criou".

Quanto ao Novo Homem, ele realmente se converteu em uma prece ativa, e heis como as suas faculdades recobraram os direitos do seu destino original. Ele disse: "Invocarei Deus em nome do salvador, invocarei o salvador em nome do cumprimento da lei, invocarei o cumprimento da lei em nome da fé, invocarei a fé em nome das minhas obras e da constância das minhas santas resoluções". Heis os quatro rios que o Novo Homem encontrou em si. Também encontrou nele o jardim do Éden, desde que se encheu de confiança e de zelo e que as colheitas se tornaram abundantes. Outrora esses quatro rios formaram um único rio, pois esse jardim do Éden estava ainda em sua fertilidade primitiva. Mas as catástrofes da natureza, ao multiplicar as montanhas e os vales, dividiram as fontes dos rios e multiplicaram as correntes.

Essa multiplicidade pode e deve retardar a obra, mas não deve impedi-la de se realizar. Todos os caminhos da sabedoria são tranqüilos. Ela não limita nossos gozos, a não ser que tenhamos limitado nossas faculdades, a ponto de não podermos hoje, sem perecer, contemplar em todo o seu brilho a luz que nos foi outrora destinada, haja visto nossa desproporção em relação a ela.

Porém essa luz se encontra ainda muito viva e muito abundante, não apenas para suprir nossas necessidades, mas também para encher de delícias aquele que põe nela toda a sua afeição.

É porque o Novo Homem disse com júbilo e na plenitude da sua esperança:
"Quando o fogo do Senhor tiver inflamado o meu coração e queimado as minhas vísceras; quando os homens de Deus tiverem preparado todos os sentidos da minha alma; quando o óleo santo tiver cumprido a minha consagração exterior e interior; então o Senhor entrará em mim, passeará em mim, como outrora passeou no jardim do Éden.
Eu escutarei o meu Deus, verei o meu Deus, conceberei o meu Deus, sentirei o meu Deus. Ele próprio aplainará os caminhos por onde quiser fazer marchar a sua sabedoria; ele disporá o meu coração para aí poder habitar como em um lugar de repouso. E quando eu quiser me nutrir das doçuras da virtude, do império das forças e dos poderes, e da deliciosa contemplação da luz, considerarei o habitante celeste que morará em mim e obterá para mim, ao mesmo tempo, todos esses benefícios".

"Quando o habitante celeste que mora em mim tiver encontrado para mim todos esses benefícios, semearei no campo da vida os germes dessas árvores portentosas. Elas crescerão nas margens desses rios de mentira que inundam a perigosa morada do homem. Elas entrelaçarão suas raízes para sustentar as terras que esses rios banham com suas águas, impedindo que desmoronem e sejam arrastadas pela corrente.

Desenvolverão grandes ramos, que darão sombra às margens dos rios e protegerão do calor do dia o paciente pescador que vier buscar seu alimento com a linha na mão. Esses ramos prestarão um outro serviço ao navegador, que poderá amarrar aí sua embarcação e ter um momento de repouso após uma viagem fatigante. Com um ardor ainda maior, ele se agarrará a esses ramos para se salvar dos freqüentes naufrágios aos quais sua perigosa navegação esta sujeita diariamente. Ele os agarrará em seu temor e os bendirá por tê-lo ajudado a se livrar do abismo que haveria de engoli-lo".

"Esses são os frutos que devo esperar das virtudes do meu pensamento e do meu coração, se eu zelar pela glória e pelo serviço do habitante celeste que habita em mim. São como imãs que colocarei fora de mim e que trarão para cima da terra a minha massa informe, lançando-me em direção à verdadeira mina e servindo-me de bússola nos diversos caminhos da minha jornada. Serão os meus tesouros neste vale de lágrimas, meu coração estará com eles, porque nos foi dito que onde está o nosso tesouro, lá está o nosso coração.

Não saberíamos mais afirmar, não é pela repetição das palavras em sua prece que o Novo Homem conseguirá preencher-se dessas doces esperanças e fazer brotar em si esse discernimento tranqüilo que difunde, ao seu redor a calma e o repouso. É reunindo com cuidado todo o fogo do seu ser interior que ele vê, enfim, elevar-se uma chama pura, viva e ágil, que purifica o ar e o agita docemente, fazendo exalar um vento refrescante. Heis como conseguiu descobrir em si os quatro rios do jardim do Éden, subdivididos nessas sete fontes sacramentais, que são os poderes da sua alma e que jamais poderiam ter recuperado sua atividade natural se a própria alma desse Novo Homem, não se tivesse regenerado e ordenado novamente pelo sacramento da palavra.