Louis Claude de Saint Martin
O NOVO HOMEM



29

Neste trabalho chegamos apenas na segunda idade do Novo Homem, e ainda não abrimos a entrada do reino divino, porque esse Novo Homem ainda está em crescimento e não atingiu a virilidade. Enquanto ele cresce, façamos aqui uma observação essencial acerca do reino profético, a de que os espíritos de Píton não agiram sobre os patriarcas e os profetas, como fizeram em todos os tempos sobre o gênero humano. Abraão, Jacó, Noé, Moisés, Davi, Ezequiel, Jeremias, Daniel seguiram a via natural nas mil circunstâncias da sua vida, onde a luz superior repousava sobre eles. Foram-lhes revelados acontecimentos proféticos mais distantes, freqüentemente mesmo em sonhos, e depois foram atirados à lei dos tempos e às trevas naturais que envolvem toda a família humana.

Quanto à aqueles que se fizeram depositários da lei sacerdotal, tinham o direito de consultar o Senhor e usar o Efod, e o Senhor só respondia a eles. Mas esses privilégios se enfraqueceram pela iniqüidade dos pastores e o reino profético teve curta duração; as nações da terra foram abandonadas para serem engolidas pelas trevas e pelas abominações pitônicas.

Nem mesmo duvidemos que ao fim dos tempos essas abominações se tornem universais, e que quase todas as nações desçam em direção aos espíritos particulares e inferiores que, não estando ligados à grande fonte da luz, dispersaram os homens, cada um para o seu lado. Nascerão inúmeras ciências, seitas, prodígios e fatos maravilhosos, que conflitarão uns com os outros. Esse é o significado do evangelho: Verse-a elevar-se povo contra povo, reino contra reino.
Porque todos esses caminhos serão de divergências e subdivisões. Mas a massa corrompida dessas ciências verá todas essas parcelas se separarem e se dissolverem à medida que se elevarem. E é esse estado de fermentação recíproca e de divisão universal entre essas falsas ciências, e entre esses falsos sábios, que os fará desaparecer e os dissipará, deixando somente reinar a verdade, que salvará o resto do mundo.

Pode-se, por alguns desses sinais, reconhecer que esses tempos já se iniciaram sobre a terra, pelas inúmeras visões, inspirações, associações espirituais que se elevam de todas as partes, devorando umas às outras e precipitando-se à destruição. Pode-se reconhecer, também, que a maior parte desses prodígios afasta o espírito do homem do único caminho simples e interior que pode salvá-lo. Também nos é dito no evangelho que, a despeito de todas essas maravilhosas predicações para o fim dos tempos, não haverá, contudo, fé sobre a terra.

Senhor, a iniqüidade dos homens será muito grande para não aborrecer a tua paciência e para não inflamar a tua justiça. Certamente, há os homens de paz e os eleitos que já chegaram a tua morada santa, e que por suas virtudes e seus louvores te consolam das abominações acumuladas dos outros homens. É através das suas preces que te consolam e detêm o teu braço, esperando que, as medidas estando cumpridas, faças explodir a tua fúria, que será inevitável quando não houver mais fé sobre a terra, pois quando não encontrares mais asilo no coração do homem, tu o destruirás, na tua sabedoria e na tua justiça, como a um velho edifício que não é seguro e no qual tu não poderias habitar.

Mortais, sepultados no sono, levantai-vos e vede o quanto essa fúria será terrível, pois deve compensar e arrebatar o peso das iniquidades que se acumularam durante os séculos, e aprendi, desde já, que sois vós que determinais a medida dos flagelos e das vinganças que deveis, um dia, fazer tombar sobre nós. Aprendei, digo eu, a não blasfemar contra o vosso Deus, porque se acreditais encontrar nele uma justiça e um poder superiores a todas as vossas abominações, por que não acreditai, igualmente, encontrar nele uma tranqüilidade e benefícios superiores às vossas virtudes e aos vossos impulsos mais puros e mais animados pelo fogo do espírito? Se determinais, vós próprios, a medida dos vossos males e dos vossos tormentos, tendes igualmente o direito de determinar a medida das vossas alegrias e das vossas recompensas, e não duvideis que o coração do vosso Deus queira mil vezes mais vos recompensar do que vos punir.

Mas preferistes lançar-vos a caminhos ilusórios e sedutores, preferistes as imagens da verdade em vez da própria verdade. Ainda mais, não tivestes o cuidado de verificar de que direção vinham essas imagens, e acreditastes que deveríeis ornar as vossas habitações com o brilho das suas cores; acreditastes que deveríeis ornar a vós próprios, sem considerar que, desse modo, estaríeis vos comprometendo a observar as leis, os mandamentos e as vontades daquele que vos enviou esses ornamentos.

Heis como as iniquidades são introduzidas sobre a terra, heis como se cumprirão as medidas da abominação, porque cada soberano ou talvez cada usurpador, tentará espalhar abundantemente essas decorações enganosas porém atraentes para aumentar o seu reino e granjear para si a fé e as homenagens daqueles que tiver subjugado com esses encantos.

Através desses caminhos falsos e errôneos, ele leva os homens a ter faculdades apenas para os conhecimentos da ordem inferior, que não passam de aparências mortas e mentirosas. É assim que ele transforma essas luzes turvas e incertas nos únicos elementos do homem e na única medida do seu espírito. Também, que efeito podem operar nos homens, as representações vivas e as alegorias espirituais enviadas pela verdade? Esse efeito é nulo aos seus olhos; relacionam tudo ou com as ciências inferiores, ou com a invenção do historiador, ou não percebem nada.

Ora, por que essas figuras proféticas tão eloqüentes, e essas formas tão pitorescas que o espírito incessantemente toma, têm tão pouco poder sobre o espírito dos homens, senão porque estes perderam totalmente de vista os modelos e as grandes verdades, e estão sepultados em imagens que não exigem qualquer esforço da sua inteligência, nem das suas outras faculdades morais e Divinas?

O Novo Homem já viu brilhar claramente nele a própria luz da sua essência, e não cai em armadilhas semelhantes. Ele dirá, como Davi, (Salmo 15:17 etc.): Bendirei ao Senhor por me haver dado inteligência e porque mesmo durante a noite, meu íntimo me adverte, me ensina. Eu olhava o Senhor e o tinha sempre diante dos meus olhos, porque ele está à minha direita para impedir que eu vacile. É por isso que, o meu coração se alegra e que a minha alma canta cânticos de alegria e que, mais ainda, minha própria carne descansará segura, porque não abandonareis a minha alma no inferno e nem permitireis que o vosso santo experimente a corrupção. Vós me haveis dado o conhecimento dos caminhos da vida, vós me encheis de alegria ao me mostrar a tua imagem. Delícias inefáveis estão eternamente à vossa direita."

Com efeito, o Novo Homem é aquele que guardará zelosamente a palavra do Senhor, com medo de que ele a leve para outro lugar. Trabalhará dia e noite para conservar o calor do espírito no coração e a luz nos tesouros da inteligência. Considerará o corpo do homem como o recipiente de um poderoso metal que mantém a ação do fogo sem se romper e sem se fundir. Ele dirá a si mesmo: "Antes que eu tivesse recebido, de modo perceptível para mim esse nascimento espiritual que me esclarece tão poderosamente sobre a minha verdadeira natureza, o Senhor me cumulava de bens. Como ele poderia me abandonar após me haver dado a existência? Ele me ensinou a distinguir a alegria que desfrutamos nele". Como não viríamos por inteiro para possuí-la? Como nos contentaríamos com a alegria que se liga apenas as imagens, se podemos saborear a alegria ligada à realidade, sobretudo quando as imagens nos são oferecidas como no meio de um abismo, no seio das mais profundas trevas?

Que graça não necessitamos do alto, e que esforço não são necessários para nos manter firmes sobre as bordas do precipício em que caminhamos!

O Novo Homem conhece a necessidade dessa ajuda indispensável, e é porque ele a recebeu que se enche de indulgência e piedade para com os seus infelizes concidadãos, que estão ainda esperando por ela. Ele sabe que só conhecemos Deus, nesse mundo pelos objetos sensíveis. Que quando morremos começamos a conhecê-lo pelo centros espirituais, mas que só por meio de nossa total reintegração o conheceremos por si mesmo. Ele percebe que é essa espera que desencoraja os mortais, levando-os ao deserto pelos caminhos da impaciência. Geme de dor por saber que o caminho de retorno não é assim tão longo como o fazem os homens, com todas as suas doutrinas, que parecem ser apenas receitas de empíricos e charlatães.

Então ele diz ao Senhor: Não deixeis os homens nos caminhos que prejudicam vossa própria obra, que eu tenho um grande desejo de ver cumprida. Vinde em socorro da sua fraqueza, pois apenas vós podeis preservá-los da morte e dar-lhes as forças e todo o apoio que lhes falta. Depois, voltando-se para o inimigo, ele lhe diz: "preciso que corra o sangue do meu espírito para saciar tua sede e te fazer largar tua presa? Aí está: deixa meus irmãos irem em liberdade. Não é somente em meu nome que te falo, é em nome daquele que me trouxe a vida. Mas se não queres crer em meu nome nem no nome daquele que me enviou, crê ao menos na obra que ele realizou em meu ser, cuja realidade não podes negar, pois minha existência é a prova que teu olho não pode ignorar e que não podes deixar de sentir.

30

Um dos mais maravilhosos prodígios que o homem pode perceber é aquele que se passa nele mesmo quando dá qualquer passo no caminho da sua regeneração. O que ele experimenta é como se todas as graças que recebeu se reunissem fortemente, para combater os obstáculos que suas antigas nódoas criaram nele, e aqueles que o próprio inimigo criou e cria todos os dias, sobre essas bases que são suas próprias obras e os fundamentos do seu templo de iniqüidade. O homem sente não apenas que o abençoaram em todas as suas substâncias, mas sobretudo que todas as suas substâncias se tornaram abençoadas, e que ele pode, com o auxílio dessas graças divinas que descem sobre ele, tornar-se um bálsamo benfazejo, espalhando por toda a parte o odor mais agradável.

Também seu desejo e seu zelo crescem com essas doces experiências, sua prece se transforma, por assim dizer, numa fúria santa, e ele quer tomar o céu pela violência. Deus na minha vida, vem então viver em minha vida, a fim de que eu possa fazer reviver a morte, como tu me fizeste reviver quando eu estava morto.

Ah! Os homens só se tocam pela morte, em vez de se tocarem pela vida! Quais eram os desígnios da justiça, quando após o crime dos homens ela os precipitou no abismo terrestre em que vivemos, e onde os colocou um após outro? Era para que se servissem mutuamente dos testemunhos do seu destro e dos sinais da sua miséria. Era para que tivessem constantemente diante dos olhos o triste quadro de horror a que o pecado os havia reduzido. Era para que cada um deles, vendo o seu irmão nas trevas, na inquietude, nas atribulações, nos sofrimentos e nos poderes da morte física e moral, se comovesse e se voltasse para si próprio; e que, reconhecendo humildemente os direitos da justiça que ele queria exercer com tanta constância e severidade, tratasse, através de suas lágrimas e sua penitência, de acalmar-lhes a cólera e temperar-lhes o rigor.

Por esse meio, os homens, após se terem servido mutuamente dos testemunhos do seu desvio e dos sinais de seu estado de expiação, teriam podido, em conseqüência, servir-se uns aos outros dos sinais de melhoria, resignação, encorajamento à prece para aplacar a cólera divina, e sem dúvida chegariam, em seguida servir-se mutuamente dos sinais das graças celestes, do perdão, do consolo e das alegrias tivessem transformado para eles o reino da morte, colocando-os, de algum modo no reino da vida, antes mesmo que tivessem deixado essa região terrestre mista, à qual a unidade parecia ser tão estranha. Não duvidemos, de que eram essas as intenções da sabedoria em relação a posteridade do homem, pois essa sabedoria procura apenas satisfazer toda a terra.

Mas os homens não são, uns para os outros, nem sinais de consolo, nem sinais de melhoria; fazem mesmo todos os esforços para suprimir os testemunhos do seu desvio, e os sinais da sua miséria, que deveriam expor uns aos outros. Tornam-se realidades ativas de imprudência, de orgulho ímpio, de iniqüidade e de corrupção pestilenta.

Na verdade, podemos ver na natureza, o mesmo ar, a mesma fonte de vida se comunicar com todas as plantas; entretanto, umas enchem o ar de bálsamo e perfumes, enquanto outras o corrompem e o contaminam com mau cheiro. Mas é essa imagem penosa que constitui a verdadeira aflição do Novo Homem; ver que esse homem infeliz oferece aos nossos olhos o mesmo quadro, com cores cem vezes mais chocantes e própria para lançarem a desolação em todas as substâncias do espírito.

A Vida Divina penetra as almas como o ar penetra todos os corpos. Penetra as almas para que elas possam germinar e produzir inúmeras flores, dignas de ornar o jardim do Éden. Mas essas mesmas almas, em lugar de encher a atmosfera com o doce aroma das fragrâncias benfazejas, espalha na região do homem apenas os venenos mais penetrantes e mais fétidos.

Choremos de vergonha e de humilhação por estarmos tão longe da nossa pátria, por estarmos constantemente, comprimidos e dilacerados pelo silencio da iniqüidade. O sangue corre de nossos poros, e com medo de que a dor não seja suficientemente viva, dirigimos o gládio para as nossas chagas, e servimos de algozes uns aos outros. Amigos, amigos, limitemo-nos a servir de sacrificadores uns dos outros e nos esforcemos, cada um de nós, a fazer sair, da alma dos nossos irmãos, vítimas puras, que possam ser colocadas sobre o altar dos holocaustos.

Vede esse Novo Homem. Ele permitiu que se passasse nele, pela voz das suas preces, o único antídoto que pode destruir esses animais nocivos dos quais o coração do homem é o covil. Como já, ele raspou, a cada dia, o pus de suas feridas com o pedaço de cerâmica que lhe restava. Assim, o espírito do Senhor veio renovar o seu sangue e trazer-lhe a saúde. Assim, sua alma se tornará, um dia, o trono do Senhor. Do alto do seu assento soberbo, ele surpreenderá as nações pela sua glória, lançará a ira contra os seus inimigos, traçará as leis do seu poder aos inúmeros povos que habitarão em seus domínios, publicará leis de graça para aqueles que quiserem entrar no caminho da verdade, distribuirá prêmios e recompensas àqueles que se dedicarem ao serviço do seu mestre e que viverem somente para a glória da casa do senhor.

Vela então sem cessar, ho! homem de paz, ho! Homem de Desejo, para que o trono se mantenha firme e inabalável, pois se esse trono não estiver em bom estado, tu poderás, pela tua inteligência, retardar a obra e a manifestação das maravilhas e das graças do Senhor. O que seria se esse trono não fosse erigido em nome da verdade? Deus vos diria, como em Amós: (5:20. etc.) "Eu odeio e rejeito as vossas festas, não posso tolerar as vossas reuniões, em vão me oferecereis holocaustos e presentes, pois eu não os receberei; e quando em sacrificardes as vítimas mais gordas, para cumprir vossos votos, não me dignarei a olhá-las. Livrai-me do barulho tumultuoso dos vossos cânticos. Não ouvirei as árias que cantaras ao som da lira. Meus julgamentos cairão sobre vós como água que transborda, e minha justiça como uma torrente impetuosa. Casa de Israel, porventura me oferecestes hóstias e sacrifícios no deserto, durante quarenta anos? Vós levastes o tabernáculo de Moloc, a imagem dos vossos ídolos e a estrela do vosso Deus, que eram trabalhos das vossas mãos. É por isso que farei com que sejam levados para além de Damasco, disse o Senhor cujo nome é Deus dos Exércitos".

O Novo Homem não quer um Deus que seja obra das suas mãos. Heis por que ele não tem outro cuidado, outro desejo que não seja deixar que a mão do Senhor aja sobre ele. Ele a sente penetrar até o interior do seu ser. Ela começa por revelar nele a sensibilidade espiritual por sua aproximação. Transmite a ele um alimento doce e vivificante, que satisfaz seu paladar e exala perfumes deliciosos. Esses são os primeiros sentidos espirituais que nascem no homem, pela mão do espírito.

Em seguida, essa mão benfazeja lhe abre os olhos, para torná-lo testemunha das maravilhas da sua sabedoria e do seu poder. Tem o cuidado de mostrar a ele a juventude de sua aparência e a fraqueza dos seus órgãos. Mas, uma vez que ele abra os olhos para as riquezas da mão divina que lhe proporciona todos esses tesouros, não pode mais desviar sua atenção, e se torna, pelo uso e pelo tempo, capaz de discernir-lhes melhor o valor e a riqueza.

Essa mão divina abre-lhe então o sentido da audição, para convencê-lo de que todos os tesouros não são mudos e silenciosos como os tesouros da terra, e seu ouvido é enfeitiçado pela harmonia dos concertos que ouve, do mesmo modo que pela eloqüência viva, luminosa e persuasiva de todas as línguas que cercam.

Enfim, essa mão divina solta a própria língua desse Novo Homem, a fim de que ele possa provar, àqueles que lhes falam que ele tem prazer em ouvi-los e que não deixa suas palavras escaparem. Desde então, toda a vida desse Novo Homem será um crescimento contínuo e um desenvolvimento de todos os seus sentidos e todas as suas faculdades espirituais, pelos quais testemunhará que o espírito veio até ele e lhe trouxe a sua voz. Tratará de persuadir seus semelhantes de que essa mão do espírito é a única que pode operar todas essas coisas em nossa alma, assim como a natureza é a única que as realiza em todos os sentidos físicos do nosso corpo, e que só prejudicaremos nossa conformação e nossa regularidade, se dificultarmos, o mínimo que seja, essa realização da mão divina. Ensinará também que o dom da palavra é o último dos nossos sentidos espirituais que a mão divina desperta em nossa alma, assim como a palavra material é a última coisa que as crianças desenvolvem.

31

É tempo do Novo Homem começar sua missão. Sua idade terrestre está cumprida. Sua idade celeste vai começar. A primeira lei a que ele vai se submeter ao entrar nessa idade celeste, é o batismo corporal, e é necessário que receba esse batismo da mão do seu guia, para em seguida receber o batismo divino da mão do Criador. É o nosso companheiro fiel que está encarregado de realizar em nós esse batismo corporal, porque sua função é nos defender, nos preservar, nos purificar de tudo o que há de heterogêneo ao nosso redor, a fim de romper a barreira que nos separa de nosso único e universal princípio de reação, que é a divindade.

Contudo, esse batismo que chamamos de corporal não recai sobre a forma exterior do corpo, porque essa forma tem ações de sua ordem para cuidar dela e batizá-la segundo as suas medidas. E mesmo se essa forma não estivesse pura em seus elementos exteriores, o batismo a que nos referimos não poderia ter lugar, porque ele recai sobre os princípios da forma, e não poderia chegar até esses princípios, se a forma exterior lhe oferecesse quaisquer obstáculos, devido às suas nódoas. Ao mesmo tempo, esse batismo se realiza por meio da água que é indicada fisicamente pela água elementar que todo mundo sabe ser o princípio de toda corporificação material.

É sem dúvida uma vergonha e uma humilhação para nós, termos que receber esse batismo corporal regenerador pela mão de uma criatura espiritual, da qual somos destinados, um dia, a ser os mestres e os juizes, pois havemos de julgar os anjos e a própria justiça (I Epistola aos Coríntios, 6:3.). Mas essa é a conseqüência da imensa transposição que se faz no momento do pecado e a misericórdia divina nos concede uma graça infinitamente grande, ao permitir que a mão da criatura espiritual rompa nossos grilhões, para que possamos receber a vida superior e criadora da qual estamos tão prodigiosamente afastados.

Esse anjo fiel, cheio de amor por nós, deseja certamente com muito ardor realizar em nós essa obra salutar, mas o deseja para seu próprio benefício, porque, segundo o que foi dito anteriormente, ele só pode gozar a Vida Divina por nosso intermédio. Não obstante, como todo o seu ser é humildade, ele espera, em sua doce paciência, que os momentos sejam chegados, que as medidas estejam no ponto, e, sobretudo, que lhe seja dada a ordem de cumprir a sua obra. Porque ele se dedicou a obediência, oferecendo-nos, assim, o primeiro exemplo de como nos devemos conduzir perante Deus.

Todos esses movimentos se passaram em São João Batista, quando o salvador veio encontrá-lo perto do Jordão para ser batizado por ele. Ele sabia que aquele que seria enviado deveria ser batizado pelo espírito e pelo fogo. Sabia que não era digno de desamarrar o cordão dos seus sapatos. Não ousava, por humildade, batizar o Senhor. Somente se determinou a isso quando recebeu a ordem do próprio Senhor. E esse São João nos é mostrado no evangelho como caminhando no espírito e na virtude de Elias, ou como sendo o próprio Elias, isto é, o espírito do Senhor. Também era ele o precursor.

Quando esse batismo corporal é realizado em nós pela água do espírito, o Novo Homem sai das águas em que estava mergulhado, e quando põe o pé sobre a terra uma voz do céu se faz ouvir e diz: Este é o meu Filho bem-amado no qual depositei toda a minha afeição. Até então esse Novo Homem era o Filho de Deus, pois fora concebido pelo espírito e por esse mesmo espírito nascera. Mas o seu nome e a sua família divina não haviam sido promulgados, e enquanto essa barreira que devia ceder à água do espírito não tivesse sido rompida, o Novo Homem não poderia receber de seu Pai essa declaração autêntica, em que ele o reconhecia como seu Filho, assegurando-lhe não só a sua existência entre as nações, mas também direitos imutáveis à sua legítima herança.

Só então a divindade começa realmente a nos penetrar, e temos a esperança de ver descer sobre nós os três princípios divinos que virão se estabelecer, para realizar, por sua suprema indissolubilidade, uma união íntima dos três princípios que nos constituem individualmente, união que, a partir desses três princípios, deve formar em nós um único princípio e manifestá-los sempre nessa unidade forte e harmoniosa, em qualquer lugar, em quaisquer circunstâncias, em qualquer obra e em qualquer parte de nós que necessitar deles.

Essa entrada de Deus em nós é o principal desejo e o objetivo essencial da divindade. Temos apenas uma idéia muito vaga dos esforços que ela faz para cumprir esse objetivo. E se há qualquer coisa de lamentável em nossa existência, é sentir, é experimentar que impedimos o acesso dessa divindade, é sentir fisicamente que ela circula em torno de nós, para encontrar um caminho pelo qual possa se introduzir em nosso coração, e que nós, ao contrário, nos esforçamos para lhe estreitar essa via, obrigando-a a se contundir e a sangrar para penetrar em nós e nos trazermos a vida; é sentir que o amor que ela tem por nós lhe torna suportáveis todas essas dores, e que ela nem ao menos lamenta, que não se aborrece de verter lágrimas desde que o fogo da sua caridade supere os obstáculos e triunfe na santa glória do seu amor, enquanto nós, nas nossas trevas abomináveis e nos nossos caminhos plenos de iniqüidade, fechamos os ouvidos às suas solicitações permanecemos insensíveis à sua ternura.

Contudo, ela tem o cuidado de nos chamar, de nos fazer levantar do meio dos mortos, de nos livrar da lama e das doenças nas quais estamos atolados, de nos tornar suficientemente luminosos pelo fogo do seu espírito, para que possamos servir de guias uns dos outros, e de pontes em nossos abismos, e sair juntos por seu poder divino, desse sepulcro no qual não passamos de verdadeiros cadáveres.

Ora, o menor raio da sua palavra é suficiente para operar em nós esse prodígio, para nos encher totalmente de força, de amor e de luz, substituindo esse estado tenebroso e insignificante, próprio da região que habitamos, pelas virtudes e faculdades do caráter. E é o raio dessa palavra que nos esforçamos para expulsar de nós, como se fosse nos trazer a morte.

O Novo Homem não quis seguir esses caminhos errados. Ele foi concebido em Nazaré, viveu entre os nazarenos e, segundo os usos e as leis dos nazarenos, quando chegou a idade, foi levado até o Jordão, que é a fronteira da terra prometida. Lá ele se submeteu humildemente à mão do seu guia e do seu precursor que se abaixou para pegar a água do rio e a espalhou sobre a cabeça e sobre toda a pessoa interior daquele nazareno.

Esse batismo invisível, do qual o batismo visível do salvador nos dá a compreensão, tem um duplo efeito sobre o Novo Homem. O Novo Homem não apenas ouve, como o salvador, estas palavras consoladoras: "Este é o meu Filho bem-amado no qual depositei toda a minha afeição, como também descobre, da mesma forma que o salvador, que na profundeza do seu ser, tinha tesouros escondidos, dos quais não ignorava o valor, mas que não lhes tinham sido ainda revelados, e que só o poderiam ser através desse batismo invisível, que não pode ser administrado senão pela mão do seu guia". Desde o instante em que esse batismo invisível lhe é administrado, a voz divina pode entrar nele como em sua própria forma e penetrar em todas as faculdades divinas que o constituem. E à medida que o penetra assim, em todas as suas faculdades, ele descobre em si mesmo todas as riquezas de que é dotado pela sua natureza divina e o emprego que deve fazer dessas riquezas, para a glória daquele de quem as recebeu.

Essas riquezas consistem, principalmente, em sete canais espirituais que esperam todos a ordenação sacramental, para retomarem a sua atividade e para se tornarem novamente os órgãos da fonte suprema, da qual devem transportar as águas fertilizantes a todas as regiões assoladas pela esterilidade. Esses canais espirituais tem contra si a mais perfeita correspondência, e ainda que cada uma delas tenha uma característica e uma propriedade diferente, um não pode agir sem o concurso dos outros, ou sem que suas relações com os outros não estejam determinadas. É assim que, pela manifestação que a verdade universal nos oferece na harmonia musical, nenhum som pode existir sem que suas relações sejam imediatamente estabelecidas com todos os outros sons.

Esse é o instrumento divino que a fonte superior confiou ao Novo Homem, ou melhor, quis recuperar nele para colocá-lo em condições de celebrar de novo, através de cantos regulares, a glória do seu autor, do seu mestre e do seu Pai. Obra que o homem não pode completar a não ser com o auxílio desse instrumento espiritual, e ligado em todas as suas harmonias, porque como é a unidade que ele deve celebrar, não poderia fazê-lo com exatidão, se não tivesse na mão o representativo dessa unidade.
Obra que jamais teria sido interrompida, se o homem tivesse seguido os planos do seu destino original, mas que, a despeito da interrupção que ela suportou pelo poder cruel que o obstruiu em nós esses preciosos canais, está sempre pronta a reviver e a desenvolver todas as maravilhas das quais é suscetível, desde que o homem se proponha sinceramente a reunir as condições, pelos seus esforços constantes e a sua íntima humildade, de receber o batismo, invisível do seu guia, o único que o pode conduzir às portas da região da vida.

32

Quanto mais o Novo Homem é tocado pela admiração, ao descobrir em si tão grandes maravilhas e um instrumento espiritual tão precioso, mais ele sente a necessidade de se entregar com ardor ao encargo de limpar cada vez mais todos esses canais e de estudar, com uma vigilância infatigável, todos os sons, para que o concerto que devem compor seja de uma harmonia perfeita e para que os planos da fonte suprema não sejam desarranjados uma segunda vez.

É por isso que ele vai se lançar ao deserto. Não somente no deserto material de circunscrições locais e terrenas, mas no deserto do espírito e no deserto de Deus. Ou seja, ao sentir que é pouco digno de aproximar-se desse espírito e desse Deus do qual foi tão afastado por causa do crime, vai se desdobrar para reunir suas forças e suas luzes dispersas, a fim de que, quando tiver alcançado a felicidade de fazê-las retomar sua unidade, possa se oferecer, nas mais justas providências àquele que é a própria providência.

Além disso, ele é conduzido a esse isolamento corajoso por um sentimento de justiça e de eqüidade. É por nós, diz ele, que o crime foi concebido e realizado; é por nós que a subdivisão do nosso ser teve lugar, é por nossa própria vontade que merecemos se separados do nosso princípio; é portanto por nós, por nossa própria vontade, que devemos merecer ser reconduzidos e reunidos a esse princípio. Feliz também, e cem vezes feliz, não somente quem nos advertiu de que essa aproximação nos era possível, mas também quem nos mostrou, ao mesmo tempo, o fim e os meios, pelo dia em que o batismo invisível do nosso fiel companheiro vem se difundir na alma do homem.

É portanto por esse espírito de humildade, de justiça e de coragem que o Novo Homem vai ser impelido para o deserto. Lá, com a luz que recebeu, vai percorrer as mais profundas cavernas do seu ser, e não repousará nem de noite, nem de dia, até que tenha afastado todas as imundícies todos os malfeitores e todos os animais nocivos.
Doutrinas profundas nos ensinaram que nesse deserto ele será tentado, em realidade, da maneira como o foi o primeiro homem no domínio primitivo que lhe foi confiado. Ensinaram-nos que o será em seu corpo, em sua alma e em seu espírito, em razão dos três princípios que nos constituem. Ensinaram-nos que ele só poderá se defender opondo ao seu inimigo a palavra que sai da boca de Deus, como o salvador nos deu o exemplo, respondendo ao tentador com as passagens da escritura. Ensinaram-nos que esse homem em provação deve passar quarenta dias e quarenta noites no deserto para cumprir a retificação desse quaternário que caracteriza a alma humana e que foi desfigurado pelo pecado. Assim, não entraremos aqui nesses grandes assuntos.

Além do mais, é nele, é em sua alma que esse Novo Homem descobrirá todos esses princípios. E só será um Novo Homem se aprender essas verdades superiores pela tradição e se conhecê-las intimamente pela experiência e pelo sentimento. Então trataremos, apenas de não perder de vista o caminho que ele vai seguir nesse deserto.
O primeiro passo é sentir que o ser físico é somente cidadela que ele deve defender; que essa muralha deve não apenas oferecer uma resistência intransponível aos inimigos, como dela própria que ele deve lançar sobre os inimigos os relâmpagos e os raios para impedi-los de se aproximarem, e atemorizá-los pelo terror do seu poder. Mas como reconheceu claramente que sem o batismo invisível que recebeu jamais teria tido a força de empreender obras tão penosas quanto essas que se apresentam a ele, fará com que esse mesmo batismo se estenda sucessivamente sobre todas as porções do seu ser.

Assim, ele invocará o nome do Senhor para que os seus elementos sejam mantidos na medida e na exatidão que lhes convêm, a fim de que a muralha conserve a sua estabilidade. Invocará o nome do Senhor para que os elementos superiores reajam e fortifiquem continuamente essa muralha, preservando-a de toda degradação, para que possa resistir melhor aos seus inimigos. Invocará o nome do Senhor para que o princípio da sua vida corporal contribua sempre com a ação dos seus elementos constitutivos e a reação dos elementos superiores, de modo que a harmonia os torne como que inseparáveis, formando um triângulo poderoso e irresistível, sobre o qual a desordem não possa ter nenhum poder. Nutrirá assim o seu ser elementar, da força, da paciência, da firme constância, de coragem, de elevação sobre os males e os perigos, enquanto sente que esse ser elementar é apenas a muralha da fortaleza, e que o faz pensar com não menos preocupação, na necessidade de preparar a guarda do lugar para a defesa e a segurança.

Vede então esse Novo Homem, no meio da sua solidão, ora errar pelos caminhos afastados, ora sentar-se atormentado pela amargura, e verter torrentes de lágrimas, ora absorver-se na profundidade dos seus pensamentos, sempre a gemer, sempre a desejar, sempre a esperar os momentos de consolo e de triunfo que lhe são anunciados, sempre a orar para que a sua esperança não definhe, não obstante a dureza do deserto, a aspereza do seu alimento e as rudes provas que deve suportar a cada instante. Vede-o, ao mesmo tempo, defender-se por meios simples e sempre tirados do amor e do respeito que tem pelo seu Deus.

Com efeito, todas as vezes que um objeto qualquer se apresenta ao seu pensamento, procurando despertar-lhe desejos, por mais legítimos que estes pareçam ser, antes de se agarrar a esse objeto ele se volta para Deus e diz:
"Eu senti que meu Deus era o princípio de todas as coisas, que não há nada que não tire dele sua força, suas propriedades, suas virtudes e todo o seu valor. Não devo, portanto entregar meu pensamento e meu coração a qualquer objeto, sem procurar saber se o meu Deus não tem o que considerar acerca desse objeto. Porque se ele tiver um lugar para esse objeto, eu seria insensato de não me dedicar exclusivamente a ele, de formar outras alianças que não possuem com ele, pois qualquer outro objeto além dele é apenas secundário e só pode me oferecer alegria passageira e limitada, como o pé a essência particular desse objeto, ao passo que ao fazer uma aliança exclusiva com meu Deus, encontrarei nele todos os objetos secundários que existem fora dele, ainda que por ele, e os encontrarei em uma existência durável, permanente e universal, pois estarão ligados a fonte eterna e imperecível que os criará e os engendrará continuamente, e sem que possam jamais deixar de existir e de me encher de alegrias e delícias.

Por essa resposta simples e tomadas ao espírito da verdadeira fé, ele imperceptivelmente afasta todos os sedutores, que não podem resistir a uma evolução semelhante, e que talvez sejam mais facilmente dispersos por esse meio do que por uma resistência aberta e por combates declarados. À medida que esse Novo Homem fortifica a muralha da cidadela, obtém desenvolvimentos simples e vastos, instrutivos para a administração do interior.

Ele pode perceber as solidas razões disso. Em primeiro lugar, quanto mais essa muralha é fielmente guardada e mantida em suas justas medidas, menos relações e entendimento pode haver entre os inimigos que estão fora e os habitantes mal intencionados que poderão estar no interior do lugar. Talvez mesmo, por não poderem se comunicar com o inimigo, e tocados pelo exemplo dos seus concidadãos que permanecem fiéis, eles próprios se coloquem do lado da boa causa, e assim, todas as forças se reunirão para a saudação comum da força, da prudência, da sabedoria, das luzes e da coragem se multiplicando entre os habitantes, e a cada dia descobrirão novas claridades e novos expedientes para desencorajar os sitiantes e fazê-los desistir, e talvez até para extermininá-los, quando se apresentar a ocasião de combatê-los corpo a corpo.

Em segundo lugar, como todas essas forças e essas luzes não podem se encontrar no Novo Homem, a não ser quando descerem da via superior pelas diversas progressões da sabedoria e pelo uso sagrado que o homem tem a felicidade de fazer dela, é ainda o bom estado da muralha do lugar que pode favorecer e auxiliar a chegada desses recursos. Porque vimos que o nosso Deus era um ser ativo e efetivo; vimos que ele procurava fazer penetrar por todas as partes a sua atividade e a sua efetividade. Mas pela lei das analogias da qual ele é, ao mesmo tempo, o modelo e a fonte, ele só pode unir-se à atividade e à efetividade.

Assim, a atividade divina só poderá se comunicar com o nosso interior, desenvolvendo-se aí de uma maneira útil e real, se tratarmos de acumular em nossos elementos a atividade espiritual e efetiva, invocando o nome do Senhor. Antes que essa atividade divina desça em nós e se estabeleça de uma maneira proveitosa, é preciso que ela possa encontrar aí órgãos ativos e suficientemente cheios de força para corresponder a todos os seus movimentos e realizar, segundo as suas medidas, os planos que ela traçará segundo as medidas dela. Enfim, não seria demais repetir, é preciso que o Novo Homem se sacrifique, se regenere, se espiritualize e mesmo se divinize, para que a ação divina possa baixar com alegria sobre ele, certa de encontrar uma morada que lhe convenha e onde sua glória, seus poderes e todos seus tesouros não sejam condenados a ficar sem frutos ou a ser roubados pelo inimigo.

33

Esse cuidado e essa vigilância sobre nosso ser exterior parecerão tão indispensáveis ao Novo Homem, que ele não terá dificuldade em considerá-los como os principais e, talvez mesmo, como os únicos com que o homem deveria se ocupar neste mundo. Com efeito, é esse ser exterior que está na fronteira, é por meio dele que se devem manifestar a sabedoria, a força e a magnificência dos habitantes do reino. É até ele que vão afluir e chegar todos os resultados das sábias deliberações que devem ser constantes no interior do império. Não deveríamos ter outras funções senão as de velar e de colaborar para a exata execução dessas sábias deliberações, porque somos apenas os agentes do Estado, e não os seus legisladores. Poderemos desempenhar muito bem nossas funções, sem a menor inquietude acerca das luzes e da sabedoria que não faltarão ao conselho, se não interrompermos a marcha e a execução, pela nossa negligência, para manter nosso posto em bom estado.

A razão pela qual podemos ficar tranqüilos acerca das luzes e da sabedoria do conselho, não pode deixar de descobrir as luzes dele e receber, continuamente, seus decretos e deliberações, como um rio que corre naturalmente em seu leito.

Assim, se deixarmos a via do nosso interior aberta a essa sabedoria e a essas luzes, elas correrão tão infalivelmente em nós como o rio corre nesse leito que lhe está sempre aberto, e como ele não teremos medo de que a fonte possa um dia se esgotar. Nosso crescimento espiritual exterior faz-se-a como o crescimento corporal das plantas, que transformam em casca, ramos, folhas, flores, frutos as essências que lhes são enviadas pelo princípio da sua vida vegetal, sem que tenham necessidade de se preocupar com a maneira como essa seiva radical e criadora fará chegar novas essências, para os novos resultados que estão sempre prontas a realizar, e ficaremos tão inquietos acerca do fluxo da fonte divina em nosso interior quanto elas acerca do fluxo da fonte viva da natureza em seus diversos canais, que são próprios para cumprir os planos dessa natureza. Porque estaremos certos de que a fonte divina tem planos mil vezes mais vastos e mais duráveis e uma abundância incomparavelmente mais inesgotável.

Fonte divina, oh! fonte divina, o que é que torna os teus planos assim tão vastos e a tua abundância assim tão inesgotável? É essa santa analogia que te dignaste estabelecer entre ti e o homem. É porque nos colocaste imediatamente abaixo de ti, que o rio da tua vida escorre em nós, como se fosse arrastado pelo peso das suas águas na inclinação natural que tu próprio deste a ele, ao nos dar a existência. É porque deste ao nosso coração a capacidade de crescer à medida que as águas divinas se acumulam nele, que gostas de fazer descer em nós esse rio sagrado, que é tão eterno quanto tu. E procuras dirigir para nós o curso dessas águas, porque sabes que o coração do homem é o único que as pode receber em toda a sua grandeza, conservá-las em toda a sua eficácia virtual e empregá-las para essa fertilização e para essa vegetação universal que, mesmo antes dos séculos, era o desejo do teu ser e o objetivo da tua existência.

Alma do homem, o homem não pode, de modo algum, descrever as delícias que podem te envolver quando, após haver estabelecido, pela graça superior, uma medida justa, forte, durável e à toda prova em teu ser exterior - que é como a fronteira de estado -, sentes descer em ti essas águas divinas, essas doçuras divinas, essas luzes divinas, essas virtudes divinas que te dão a fé, a vida, o sentimento da vida que elas te trazem e a santa confiança de que participas da imortalidade delas. Mas o homem pode te advertir de que ainda não é chegado o momento de te entregares a essas sublimes alegrias.

Lembra que neste mundo ainda estás no deserto. Lembra que ainda estás no meio dos leões devoradores. Lembra que estás suspenso como por um fio sobre o abismo. Lembra que estás aqui para padecer, para trabalhar, e não para desfrutar. Assim, mantém-te em guarda mesmo contra as delícias dessas junções divinas que, sendo muito antecipadas, poderiam te enganar acerca da tua obra, se as escutasses durante muito tempo e com muita complacência. Antes, temperas com o sentimento da tua enfermidade. Mantém-te sempre pronto a renunciá-las, afim de preparar-te melhor para recebê-las um dia, de uma maneira que não seja perigosa para ti e que te seja inteiramente proveitosa. Enfim, recebe-as com uma mescla de alegria temor e estremecimento, pela infelicidade que tenhas de deixá-las escapar aos perigos que ameaçam todos os tesouros sagrados que descem até este vale de lágrimas. Ocupa-te somente de fazê-las chegar ao seu termo sem acidente e sem avarias, e não consumas com o gozo das tuas satisfações pessoais o tempo que deves empregar para o progresso da obra do teu mestre e para velar contra os depredadores das suas riquezas.

Não esqueças de que há duas portas no coração do homem; uma, inferior, que abre ao inimigo o acesso à luz elementar, da qual ele só pode usufruir por esse meio; a outra, superior, que só pode lhe ser comunicada neste mundo por esse canal. Se, em vez de abrires a porta superior para consolar o amigo que está contigo em tua prisão, abrires a porta inferior, dando acesso em ti ao teu adversário, tornaste-as um campo de batalha onde o teu amigo fiel, já em privação por sua caridade por ti, continuará exposto ora a um combate cruel, ora a ataques dilacerantes, quando perceber que também declaras contra ele, e sempre a uma situação lamentável, por causa da horrível vizinhança que lhe proporcionaste e pela infeliz condição em que se encontrará, por tua negligência ou por teus crimes, de ficar próximo de seu inimigo, e do teu, de se achar preso no mesmo recinto, de vê-lo diariamente corromper-te com sua infeção e de ser obrigado a respirar essas influências pestilentas.

Pensa então no que seria, se após ter deixado esse inimigo de toda verdade penetrar em ti, abrisses imediatamente a porta superior do teu ser, e a própria verdade fosse colocada em situação de descer, por causa da sua inclinação natural. Desviemos os olhos desse quadro, ou, ao menos, só o contemplemos quando nos for útil e necessário para invocar em nós uma força maior do que aquela que nos resta, após os danos essa força superior para que se junte àquela desse amigo fiel e à nossa, a fim de que esse triplo poder caia como um raio sobre o depredador e o funesto inimigo que deixamos entrar em nós, para que ela o faça retornar aos abismos, fechando em seguida, de maneira segura, essa porta inferior que jamais deveríamos ter aberto para ele.

Heis, com efeito, qual é a obra do Novo Homem durante a sua estada no deserto: obter do alto uma chave poderosa para prender o inimigo em suas cavernas tenebrosas, separar o puro do impuro, como havia sido recomendado aos hebreus, levar a respiração do ar celeste e divino a esse amigo fiel, a quem o primeiro homem fez respirar continuamente um ar infecto depois do crime, enfim, arrancar das mãos do inimigo as porções dos tesouros divinos e as centelhas da própria verdade que permitimos algumas vezes que fossem roubadas ao abrir imprudentemente a nossa porta superior, sem tomar a preocupação de enxotar o inimigo para os seus abismos e fechar cuidadosamente sobre ele a porta inferior.

Porque esse é o encargo que nos resta cumprir, depois que a fraqueza do homem primitivo deixou a iniqüidade penetrar nossos domínios. Ao comer da árvore da ciência do bem e do mal, reuniu, um ao outro, o seu ser que habitava a luz e o seu adversário que habitava nas trevas. Era essa reunião monstruosa que a sabedoria divina queria impedir, prevenindo-o para não comer dessa árvore da ciência do bem e do mal, que lhe traria a morte. Portanto, é a ruptura de uma associação semelhante que devemos realizar agora, se quisermos estar em condições, de comer os frutos da árvore da vida sem cometer a mais abominável das profanações.

Repito, esse último quadro seria muito aflitivo e muito desesperador para aqueles que não tivessem adquirido os olhos, a idade e a força do Novo Homem, e não poderiam considerar, sem risco, as horríveis prostituições às quais os frutos da árvore da vida foram expostos pela iniqüidade dos mortais; Mas é com a expiação e com a abolição dessas prostituições que o Novo Homem está particularmente ocupado. Heis por que não pode mais gozar um momento de repouso sequer, pois o inimigo não apenas se defende o tempo todo, temendo retornar aos seus abismos, como procura, de todas as formas fazer com que se abra a porta superior do coração do homem, a fim de multiplicar cada vez mais as abominações que terminariam por inundar a terra, como o fizeram antes do dilúvio.

34

Essas ocupações e esses cuidados do Novo Homem são tão urgentes e tão importantes, que ele permanecerá um tempo no deserto ainda para assegurar os fundamentos da sua obra. Se recebeu o nascimento espiritual, se foi alimentado pelo verbo até a idade da sua missão, foi para seu próprio benefício e para sua libertação pessoal.
Atualmente, ele precisa pensar na obra do seu mestre. Ele precisa fechar de tal maneira a porta inferior do coração do homem, após ter expulsado o inimigo, que a porta superior e divina possa se abrir sem inconvenientes e sem temer as horríveis prostituições que esse inimigo constantemente projeta e maquina, de acordo com os meios de que dispõe.

Esse era o espírito das três tentações com as quais atacou o salvador. Sob a aparência da piedade e da fé, buscava apenas fazer com que as virtudes divinas caíssem em seu domínio, para utilizá-las erradamente, a fim de que todos os frutos fossem para o proveito dos seus fins cúpidos e criminosos. Tal era o espírito dessas três tentações, pois, uma vez que esse príncipe das trevas não anda na luz, só pode conhecer a mesma rota errada que vem seguindo desde o princípio, e atacou o salvador como atacara o primeiro homem e como ataca diariamente todos os mortais.

Mas o salvador, ao contrário, conduziu-se em relação a ele como o homem deveria tê-lo feito nos tempos primitivos, como o Novo Homem se conduzirá daqui por diante e como todos os mortais deveriam se conduzir. Ou seja, considerando-se apenas como ministro e servo de Deus, não pode tomar para si a determinação de ceder a qualquer proposta sem a autorização de seu mestre, contentando-se em recitar a lei e as vontades desse mestre, a aquele que o quer seduzir. É preciso que ele entenda, a partir disso, que não pode entregar-se legitimamente ao que lhe é sugerido, e sendo a vontade do seu mestre a sua primeira lei, deve consultá-la antes de agir e segui-la, uma vez que a conheça.

Um observador inteligente talvez encontre na serenidade dessa resposta, e na citação das vontades superiores, um indicador da maneira como o homem deveria ter se conduzido em seu estado de glória e da função que deveria ter exercido em relação ao ser extraviado. Porque a citação da lei da vontade superior teria sido um tipo de instrução que o homem deveria ter dado ao prevaricador, e que poderia tê-lo feito cair em si e ingressar novamente na verdade.

Mas deveria fazer essa citação não como a fez Eva, ao dizer à serpente, já cambaleando e perturbada: Deus ordenou que não comêssemos o fruto da árvore que está no meio do paraíso, e nem a tocássemos, pois ficaríamos em perigo de morrer. Mas com a firme resolução de permanecer fiel ao preceito e de se opor, em conseqüência dessa fidelidade, a todas as tentativas do prevaricador. Heis então, ainda, um dos frutos que o Novo Homem pode dar aos seus irmãos, dadas as inúmeras colheitas que sairão dele quando tiver concluído suas provas e seus combates no deserto.

Esse fruto é a maneira pela qual podemos nos livrar do inimigo, quando ele nos tenta com qualquer proposta insidiosa, com imagens ilusórias e com suas insinuações habituais. Digamos a ele, como o Novo Homem: Eu não sou o meu próprio mestre, sou apenas o servidor de Deus, é a ele que te envio para que julgue os teus planos e as tuas propostas. O inimigo não resistirá a essa linguagem; ou, se ele tiver a intenção de prosseguir nos seus empreendimentos e nas suas tentativas, irá chocar-se a própria lei, que o destruirá e o cobrirá de vergonha e confusão.

Quantos esforços e cuidados serão necessários, até que esse Novo Homem tenha fechado ao inimigo todas as passagens! É preciso que não haja um único ponto em seu ser por onde esse inimigo possa levar a cabo o menor dos seus projetos sedutores, estabelecendo essas falsas alegrias com as quais aprisiona diariamente os mortais. São essas as reuniões de jogos e divertimentos em que Jeremias disse que não se encontrava.

Esse Novo Homem também vos dirá, como Jeremias 15:15: "Senhor, vós que conheceis o fundo do meu coração, lembrai-vos de mim e defendei-me dos que me perseguem... Vossa palavra se tornou o prazer e a alegria do meu coração, porque eu carreguei o nome do vosso profeta, ó senhor, Deus dos exércitos... já não me encontro nas reuniões de jogos e divertimentos... estou retirado e solitário... porque minha dor se tornou constante... Por causa disso o senhor diz: se souberes distinguir o precioso do vil, serás como a boca de Deus. E te levarei à consideração desse povo como um muro de bronze, inabalável. Eles pelejarão contra ti e não levarão nenhuma vantagem, pois estou contigo para te salvar e te livrar... Eu te libertarei das mãos dos perversos e te preservarei do poder dos fortes".

Lembremo-nos de que não há um único ponto no ser do homem sobre o qual essas sublimes palavras não se devam pronunciar, e que a única exigência de Deus é que o homem esteja constantemente atento a elas. Já fomos muito longe para nos admirar com essa maravilhosa misericórdia. A grandeza do homem é um testemunho evidente da grandeza da obra de Deus com relação à infeliz família humana e, reciprocamente, a grandeza da obra de Deus é uma demonstração da grandeza do homem. Essa obra é tal, que seria suficiente contemplá-la e percebê-la para renascer e para nos restabelecer nas regiões santas do amor e da sabedoria, de modo que não somente o mundo das ilusões e das trevas desaparecessem para nós, mas que todos os mundos de luz parecessem se encontrar em nossa alma, como se encontram no pensamento de Deus.

Oh! Novo Homem, tu te tornas respeitável aos teus próprios olhos quando sentes o que realiza para ti o criador das coisas! Ele é o Deus único, tu és o seu Filho. Pode haver alguma coisa que não seja divina na obra que se realiza em ti e nele!? Pode haver alguma coisa que não seja o próprio ato do teu Deus!? Também tu não viverias, e já estarias morto, se não acreditasses naquele que ele enviou a ti.

Ao mesmo tempo, é por essa confiança viva, é por essa fidelidade às vontades do seu mestre, que o Novo Homem vai restituir ao seu ser a atividade que lhe é própria. Ele sente que nada no sangue do salvador como num mar abundante que envolve todo o universo. Sente os germes, produzidos pelos simples poderes secundários. Sente que os frutos provenientes desse sangue não são insignificantes e sujeitos à ação do tempo, e fica admirado de encontrá-los nele em viva atividade, mesmo quando parecia ter perdido de vista a sua existência. Sente que sua atividade se transmite ao seu próprio germe e o dispõe a realizar todas as suas virtudes, à imagem e à semelhança daquele que houve por bem escolhê-lo para seu irmão.

Também não há nenhuma dúvida de que esse sangue no qual ele nada restabelece, em todos os pontos do seu ser, a vida que lhes falta é a força e a segurança de que necessitam para conservar intacto o interior do lugar e escapar à fúria dos que o atacam e o perseguem. Porque, se o seu ser é a síntese universal de tudo o que existe nos dois mundos, é preciso que ele recupere todas as dimensões que lhe pertencem nessa relação, e que, assim, os dois mundos que estão nele retomem suas relações, sua justeza e suas propriedades originais.

É esse o sentido de sua verdadeira reconciliação e regeneração; assim, é preciso que esteja reconciliado com os seus princípios e ações elementares, com todas as regiões temporais, com as duas regiões espirituais, celestes e terrestres, com todas as regiões divinas, pois todas essas regiões estão nele e não foram colocadas aí para permanecerem na inércia e na morte.

O primeiro homem deixou que os sete domínios fossem devastados pelo crime, colocando-nos na necessidade de trabalhar, como ele, para reabilitá-los em nós, antes de trabalhar para reabilitá-los ao redor de nós. O agente supremo dá o seu auxílio ao primeiro homem, desde o instante do crime, para ajudá-lo a se regenerar em suas leis e em suas medidas particulares. É por isso que viu renascer nele esses sete canais que o tornariam, primitivamente, o instrumento ativo, da divindade; é por isso que se retirou para o deserto, afim de se afastar totalmente do que não tinha relação com os seus elementos primitivos. Enfim, é por isso que, cheio de confiança naquele que não o perdeu de vista, e em todos os germes da regularidade, da força, da justeza, das luzes, da sabedoria, do poder e das verdades que essa mão suprema semeou nele, vai abandonar o seu deserto, espalhando para fora os frutos que, graças a todo poder, soube produzir pela cultura cuidadosa e vigilante.

35

Como esse Novo Homem, aparentemente, teve relações tão perfeitas e direitos tão ativos sobre a natureza, a ponto de poder alterar as substâncias que a compõem, dando-lhes propriedades tão poderosas, em comparação com as que elas anunciavam antes que ele aparecesse? É que ele já havia celebrado as bodas de Canaã. É que ele já havia transformado a água em vinho, já havia revivificado nele as seis urnas, isto é, as seis ações elementares que compõem a circunferência visível de tudo o que é matéria, e por essa revivificação deu acesso nele ao princípio central e setenário que lhe dá o movimento e a vida, podendo transmiti-la por seu intermédio a todos os que não o receberam e ainda estão no domínio da morte e da inação. É que, ao permitir acesso a esse princípio central e setenário, ele devolveu a sua forma corporal e propriedade original, que lhe pertence por natureza, de ser superior a todas as formas do universo e de provar a sua superioridade. É que, ao devolver a sua forma corporal a sua propriedade original, pôde provar, a todas as outras formas, que seu destino primitivo foi, com efeito, produzir resultados semelhantes e semelhantes regenerações em todas as formas da natureza que estivessem submetidas ao seu poder.

Heis por que nada se compara à imprudência daquele que tenta fazer quaisquer empreendimentos nessa ordem de coisas superiores, sem começar por devolver a sua forma as propriedades essenciais das quais ela deveria ser o depositário e o órgão. Mas se ele chega a devolver à sua forma as suas propriedades originais, não há resultados que ele não possa alcançar, pois sua forma esta acima de todas as formas da natureza.

O que seria então se o Novo Homem estivesse regenerado em todo o seu ser? Ele faria muito mais coisas que o próprio salvador, porque o salvador não fez mais do que semear os germes da obra, e o Novo Homem pode fazer a colheita, que amadurece a cada dia. O salvador ressuscitou mortos individuais, e o Novo Homem poderá ressuscitar tribos inteiras. O salvador acalmou as águas de um lago, e o Novo Homem poderá acalmar as águas do oceano. O salvador restituiu a visão a alguns cegos, e o Novo Homem poderá abrir os olhos de todos os que o rodeiam. O salvador libertou os homens limitados corporalmente pelos grilhões do inimigo, e o Novo Homem poderá romper, ao mesmo tempo, todas as cadeias de todos os homens de desejo.

Ao operar todas essas maravilhas, ele dirá: Senhor, é ao vosso nome que toda a glória é devida, porque fostes humilhado para elevar o homem; não fizestes mais do que voar ligeiramente diante dele, como a águia voa diante dos seus Filhotes para ensiná-los a voar e a exercer as suas forças, e quisestes que ele se tornasse, através de vossos ensinamentos, tão grande como deveria ter sido, se não tivesse abandonado o antigo posto que havíeis confiado a ele. Quisestes operar diante do homem em vosso estado de rebaixamento e de humilhação, a fim de que, seguindo fielmente o vosso exemplo e os vossos mandamentos, ele pudesse chegar a operar em vossa glória, e é por isso que prometeu a vós que faria coisas maiores do que vós. Mas por maiores que sejam as obras que realizará, não poderá deixar de celebrar ainda mais os vossos louvores, pois fostes vós que o regenerastes, e só por vós ele adquiriu o poder de operar em vós.

Esse foi o espírito de sabedoria e de humildade que ditou a resposta do salvador a sua mãe, quando ela lhe disse: Eles não tem vinho nenhum. Porque, ao responder a ela: Mulher o que há de comum entre mim e vós? A minha hora ainda não chegou, ele contemplava o grande poder pelo qual deveria um dia abrir a fonte das águas vivas no céu e ver o fruto novo da vinha do reino do seu Pai. Mas como os homens não estão ainda preparados a partilhar divinamente esses benefícios, visto que ainda se encontram sob o jugo das aparências, ele declara que a sua hora ainda não chegou e limita-se a deixar que sua ação opere, perante eles, sobre as substâncias elementares. Operação suficientemente tocante para enchê-los de assombro e de respeito pelo seu autor, enquanto que a sublime operação divina da qual ela é a imagem escapou dos seus olhares e tornou-se totalmente inútil para eles.

Essa operação se tornou ao mesmo tempo um tipo instrutivo, para aqueles cuja compreensão tinha adquirido alguns desenvolvimentos. Não somente anunciava a renovação da natureza, como fez nascer ao mordomo uma observação significativa, quando disse ao esposo: todo homem serve primeiro o bom vinho, e depois que se bebeu bastante, serve o vinho inferior. Mas para vós, vós reservastes até agora o bom vinho.

O significado dessa resposta pode, com efeito, mostrar a diferença do reino da matéria e do reino do espírito, porque o reino da matéria sempre se degenera, pois seu princípio, seus meios e seu fim, tudo está contido nela e termina no nada. Ao passo que o espírito cresce continuamente, prometendo ao homem sempre novas alegrias. Ora, essa diferença estava claramente indicada, pois o próprio salvador agira diretamente e espiritualmente sobre a água com a qual fizera encher as urnas. Além disso, o sentido da observação do mordomo mostra, com clareza ainda maior, a característica e o fim da lei antiga e o espírito da nova lei que o amor divino veio trazer à terra.

Porque, sendo circunscrita nas medidas do tempo e proporcional ao estado terrestre da família humana, essa lei antiga deveria ter um fim, e produzira a saciedade quando as necessidades espirituais do homem tivessem acalçando um desenvolvimento maior ao passo que a nova lei, colocando novamente o homem na linha da vida, deveria trazer-lhe alegria sempre crescentes, como o infinito, e os tesouros mais doces e abundantes. Ora, só o salvador poderia produzir o vinho bom ao fim do repasto. E essa obra foi ocasião de uma grande alegria na região superior e divina, porque o grande mundo não pode deixar de nivelar-se quando o pequeno mundo assume suas próprias medidas, já que o restabelecimento das semelhanças é o principal desejo desse grande mundo.

Vejamos aqui uma segunda razão pela qual o Novo Homem adquiriu tantos direitos e propriedades tão poderosas e tão maravilhosas. É que durante a estada dele no deserto, aprendeu a conhecer o nome do inimigo que o perseguia; conheceu sua região, suas faculdades, seu poder, as causas afastadas ou próximas que o colocaram próximo dele, o nome e a autoridade dos chefes sob os quais esse inimigo tem suas relações, suas correspondências, os planos gerais e particulares que lhe são traçadas, e os meios que emprega a cada dia para atingir seus fins desastrosos. Quanto mais o Novo Homem se aprofunda nas descobertas sobre o motivo e a marcha desse malfeitor, mais adquire condições de frustrar seus planos e de fazer falharem todas as suas armadilhas, porque como o espírito do homem não pode permanecer no nada e no vazio de ação, não pode mais afastar de si a influência falsa, sem que a influência verdadeira o preencha.

O Novo Homem também recebeu no deserto o conhecimento do nome daquele que o protege e o acompanha em seu caminho de provações e combates; conheceu não apenas o nome daquele que o protege, como o posto que ocupa na hierarquia celeste, suas relações, suas correspondências, os vastos desígnios que a sabedoria lhe confiou para a direção do seu discípulo e os motivos sagrados pelos quais essa sabedoria o enviou para perto dele.

O fruto que esse Novo Homem colheu de todas essas descobertas, é haver deixado penetrar em si uma espécie de impetuosidade espiritual que se apoderou de sua coragem, de seu amor, de sua palavra, de seu pensamento, e que não é mais do que a correspondente dessa impetuosidade divina com a qual a ação superior procura se precipitar sobre nós para tomar o lugar das trevas e da morte.

Mas ele só colheu tal fruto depois de haver experimentado uma sensação, ao mesmo tempo, bastante lamentável e consoladora. Pois, como contemplar com indiferença o quadro das infelicidades do homem e dos recursos que lhe são oferecidos contra essas infelicidades? Também, o Novo Homem, tocado ora por uma, ora por outra dessas duas forças opostas, chegou, pela comparação, a sentir sua dignidade e sua nobreza. Após haver estremecido diante das misérias do homem, estremeceu perante sua grandeza, que não o teria deixado ser tão infeliz se ele não tivesse tido tantos meios de se tornar culpado. E, reciprocamente, após haver estremecido diante da grandeza do homem, estremeceu diante das suas misérias. E é pelo choque de todas essas sensações violentas que a alma do Novo Homem se pôs a descoberto, que o princípio superior pôde operar nela um contato poderoso que a revivificou e que a penetrou com essa ativa e santa impetuosidade que é a verdadeira característica da vida.