A divina forma humana.
Louis Claude de Saint Martin
Podemos aqui
descobrir a fonte natural de todas aquelas representações
antropomórficas das quais o mundo está cheio. Se os escultores
representam todas as virtudes terrestres e celestes, sob formas humanas,
seja masculina ou feminina; se os poetas personificam todos os deuses e
deusas do Empíreo, além de todos os poderes da natureza e
dos elementos; se sectos religiosos enchem seus templos com estátuas
humanas, o princípio de origem destas práticas não
é, de forma alguma uma ilusão, assim como são os efeitos.
A forma humana primitiva deve, de fato, mostrar-se e reinar em todas as
regiões. O Homem, sendo a imagem e extrato do centro generativo de
tudo o que é, sua forma é o lugar onde todos os poderes de
cada região vinham exercitar e manifestar suas ações;
em uma palavra, era o ponto de correspondência para todas as propriedades
e virtudes. Assim, toda representação que o Homem faz de si
mesmo, reproduz apenas a figura daquilo que poderia e deveria ser, recolocando-o,
figurativamente, numa posição (medida) na qual ele não
está.
Vamos observar, que, quando os sábios comparam o corpo humano com
o dos animais, o que chamam de anatomia comparativa, nosso corpo real não
entra nesta comparação anatômica, o que de fato nos
ensina que somos como outros animais.
Seria melhor que comparassem nosso corpo superior, que não é
animal, com nosso próprio corpo animal, se quisessem obter nossa
verídica anatomia comparativa; não é suficiente observar
coisas em sua similitudes, é essencial observá-las também
em suas diferenças.
Da comparação de nossa forma atual com a primitiva, podemos
obter resultados úteis sobre a questão de nosso destino original;
mas na falta desta importante comparação, que de fato estaria
ao alcance de poucos, devemos ao menos extrair indícios luminosos
sobre nosso estado anterior, das maravilhosas obras que ainda produzimos
através de nossos órgãos corporais; coisas que apesar
de nossa condição de queda e dos meios artificiais aos quais
estamos restritos, devem abrir nossos olhos às maravilhas naturais
que poderíamos ter engendrado se tivéssemos preservado os
direitos pertencentes a nossa forma primitiva.
Imagens religiosas e suas origens.
O abuso do antropomorfismo religioso que encheu os templos com imagens humanas
rapidamente se transformou em objetos de adoração e idolatria
pelo simples fato de ter surgido do exato movimento do coração
de Deus para a restauração da humanidade, no momento de nossa
queda, quando este coração divino se tornou Homem Espírito.
Como o pacto da restauração é implantado em todos os
homens através de sucessivas gerações, eles estão
sempre prontos a vê-lo germinar e a olhar os ídolos humanos
como a expressão e o cumprimento deste pacto ou a necessidade que
tanto sentem de cumpri-lo, embora isto seja desordenado. Além do
mais, os homens estão sempre prontos a formar para si próprios,
tanto interna como externamente, modelos perceptíveis de acordo com
a obra a ser realizada por eles.
Assim, a necessidade de ter um Homem-Deus por perto e a prontidão
em acreditar segundo seu desejo, tem sido a origem dos ídolos humanos
e sua adoração. Depois disso, ficou fácil operar, através
da fraude, sobre a fraqueza e a ignorância a fim de propagar a superstição,
seja de forma absurda ou até criminosa; é sempre necessário,
até mesmo neste caso, excluir a origem espiritual ativa do antropomorfismo,
como mostramos acima.
A obra da perfeita regeneração após a morte; o poder
do
inimigo; a Virgem na alma.
Nada senão a renovação de nosso ser, aqui embaixo,
pode produzir ao Homem, o que ele procura em vão em suas superstições
e ídolos; esta própria renovação é apenas
uma preparação para a perfeita regeneração,
que, como vimos, só ocorre com a separação de nossos
princípios corporais ou o derramamento de nosso sangue. Além
do mais, após a morte somos removidos para o grande ternário,
ou o triângulo universal, que se estende do Primeiro Ser à
Natureza; cada uma das três ações extraem para si todos
nossos princípios constituintes: divino, espiritual e elementar,
para restabelecê-los, se formos puro, e restaurar a liberdade à
nossa alma, para que acenda novamente à sua fonte. Isto é
o que Cristo permite que seja feito a si mesmo, fisicamente, através
de sua morte e sepultamento.
Mas, se não formos puro, o inimigo que não se opõe
a separação das partes corporais, que pertence à forma,
se opõe à renovação dos princípios sobre
os quais havia obtido o comando e os retém todos ao seu domínio,
para o grande detrimento da alma desafortunada que se tornou sua vítima.
Podemos auxiliar a renovação de nossos princípios apenas
enquanto possuirmos uma Virgem Eterna renascida em nossas almas, pela qual
o Filho do Homem pode habitar a carne, com todas as suas virtudes e poderes;
alcançar o renascimento desta Virgem Eterna em nós é
reviver o corpo primitivo ou o puro elemento. Aqui, vemos escrito no Homem
todas as leis dos sacrifícios simbólicos dos quais o Homem
é realmente o objetivo, mesmo quando ele parece ser apenas um órgão
ou instrumento.
O Homem é o microcosmo onde o sacrifício é oferecido.
O Homem sendo uma miniatura dos mundos físico e divino, é
certo que seu corpo contém as essências de tudo o que há
na Natureza, assim como sua alma contém as essências de tudo
o que há na Divindade. Assim, deve haver neste corpo uma correspondência
com cada substância do universo, conseqüentemente, tanto com
animais puros como impuros e com tudo compreendido nos sacrifícios;
embora, não possamos discernir tais essências em nós,
podemos acreditar em suas correspondências externas, através
das figuras e formas perceptíveis que apresentam em nossas mentes,
também através de símbolos e imagens que assumem os
bons e maus espíritos, diariamente e fisicamente para a nossa instrução
ou provação. Contudo não é necessário,
na ocasião do sacrifício, conhecermos tudo isto fisicamente
para que nossa intenção seja pura, viva e para que estes primeiros
passos da lei material se complete em nós; é suficiente que,
pela retidão de nosso senso espiritual natural, permitamos que o
princípio da verdade que nos anima aja, pois Ele tem sob si sacrificadores
que irão sacrificar conosco os animais puros, oferenda que nos será
útil, e separar de nós os animais impuros, que não
devem participar dos sacrifícios. Esta é a lei que atua em
nós e, por assim dizer, nos é desconhecida; ela requer de
nós a pureza legítima ordenada ao povo judeu, mas não
requer mais conhecimento do que tinha o povo quando abordou os sacrifícios;
esta é a lei de nossa infância, que nos conduzirá com
segurança à lei pura de nossa maturidade.
Não duvidemos que o sacrifício destes animais puros em nós
abra um caminho de correspondências salutares, como ocorreu aos hebreus
quando celebraram seus sacrifícios externos.
O efeito seria ainda mais certo e positivo, para cada homem individualmente,
se não fôssemos continuamente perturbados por povos estranhos
que aceitamos no sacrifício e pelos animais impuros que permitimos
estar sob a faca do sacrificador, pois eles nos abrem correspondências
invertidas; tudo deve atuar nos princípios do Homem, enquanto que
na lei simbólica hebraica tudo atuou externamente.
Mas esta obra preliminar, estando além das forças do Homem,
em sua infância, irá ter o ramo de conhecimento de seus mestres
temporais como guia do Homem, dirigindo a obra em seu interior; os mestres
devem responder por este Homem, quando ele chegar na próxima época.
A jornada individual rumo a Canaã. Os Dez Mandamentos.
Quando o Homem, devidamente preparado, chega a esta época, a lei
espiritual dentro dele associa-se com o que é perceptível,
até tomar completamente o seu lugar. Esta lei espiritual se anuncia
através de uma incrível iluminação, como ocorreu
aos hebreus no Monte Sinai; ela proclama conosco, em alta voz, o primeiro
mandamento: "Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair do Egito, da
casa da servidão. Não terás outros deuses diante de
minha face".
Esta voz ressoa por todo nosso ser: ela não só faz com que
todos os falsos deuses fujam pelo terror de suas palavras, mas também
destrui todos os povos estranhos e os sentimentos idólatras que temos
vivido entre os Caldeus, até sermos chamados à terra de Canaã.
Posteriormente, proclama todos os outros preceitos do Decálogo, que
nada mais são do que uma necessária seqüência do
primeiro. Como esta lei, terrível ainda que salutar, será
proclamada somente quando já estivermos fora da terra do Egito, desfrutando
da liberdade e engajados na lei do Espírito, deste momento em diante
seremos responsáveis por nossa própria conduta sob a luz da
lei espiritual. Portanto somos felizes ao "gravar esta lei em nossos
corações e ao escrevê-la nos umbrais de nossas portas"
(Deut. VI 9).
A sujeição espiritual individual, o sacrifício e a
libertação
levam à era profética individual.
Neste estado, a lei do sacrifício ainda nos é, sem dúvida,
necessária; mas nós mesmos somos os Levitas e sacrificadores,
uma vez que temos acesso ao altar e devemos, de acordo com a regra levítica,
sacrificar ao Senhor, diariamente, vítimas de sua própria
escolha, oferecendo aquelas de aroma agradável a Ele.
Devemos oferecer este sacrifício para o nosso próprio progresso
no campo das correspondências, pois ao fazermos um uso santo de nossos
princípios constituintes, nos reunimos às influências
restauradoras (ações) da mesma natureza destes princípios.
Devemos, mais ainda, fazê-lo de forma contínua a fim de nos
adaptarmos ao espírito que se estabeleceu em nós, porque o
ato deste espírito jamais deve ser interrompido, mas sempre reforçado.
Este alto empreendimento que podemos chamar de a primeira idade da lei do
Espírito, está consagrado; este dever é tão
imperativo que se falharmos, rapidamente cairemos no domínio de diferentes
tipos de escravidão, análogas às nossas faltas; porém
quando oprimidos pelo jugo dos déspotas, choramos ao Deus Todo-Poderoso,
e Ele envia os libertadores para nos colocar novamente no caminho certo.
Os auxílios que Ele envia estão fundamentados na centelha
de vida e na luz semeada em nós na medida em que invocamos a lei
espiritual; esta nunca é totalmente extinta por nossas faltas, mas
se fermenta ainda mais sob confinamento e sob as tormentas dos diferentes
tipos de escravidão, emitindo alguns raios que a Divindade reconhece
como pertencentes a Si, o que O induz a descer e auxiliar Suas miseráveis
criaturas.
Ele, assim, procedeu com os hebreus, quando chegou a hora da libertação
do Egito; não se pode esquecer que eles eram os filhos da promessa
e carregavam consigo o espírito da eleição de seu pai;
assim Ele procedeu com eles diante dos Juizes, quando representaram o Homem
emancipado ou sob a lei da liberdade. É desta forma que sob uma quase
ininterrupta alternação de quedas e recuperações
chegamos à segunda idade do espírito, a profética.
Quando a idade profética individual é alcançada completamente,
o espírito do Homem queima com ele a fim de propagar a Verdade,
dá-se o início da Misericórdia.
Foi dito ao pai dos Judeus que todas as nações deveriam ser
abençoadas nele. Ora, até a idade profética, o povo
hebreu viveu bem separado das outras nações; a única
relação que mantiveram com elas foi de luta; a lei proibiu
que se aliassem com estranhos e ordenou que praticassem os rituais e cerimônias
dos quais eram depositários, para seu próprio progresso; esta
é uma representação do que devemos fazer durante nossa
primeira idade ou lei espiritual, quando devemos nos separar de tudo aquilo
que possa impedir nosso crescimento ou a aquisição de dádivas
necessárias; que as nações possam, algum dia, ser abençoadas
em nós.
Contudo, quando a idade profética chegou, os germens da Misericórdia
foram primeiramente semeados em Israel, assim como a instituição
dos sacrifícios havia plantado neles os primeiros germens do Espírito.
Este povo que, até a idade profética, só pensou em
si e desprezou todos os outros povos, começou, através da
alma de seus profetas, a se sentir entusiasmado pelo retorno de outras nações
à verdade.
Os profetas se tornaram oprimidos e aflitos por todos os males que afligiram,
não só Israel, mas todas as nações pecadoras
à sua volta. Eles foram enviados a declarar a ira do Senhor em Nineveh,
Egito, Babilônia e na ilha dos Gentis.
A razão para isto é simples, era o momento em que as promessas
da aliança com Abraão começaram a ser cumpridas; mas
como os hebreus estavam mais adiantados com relação ao cumprimento
destas promessas do que as outras nações, foram os primeiros
a sentir as dores da Misericórdia, enquanto que os outros recebiam,
até então, apenas advertências. Assim, quando o homem
individual passa a primeira idade espiritual, também começa
a sofrer pelas trevas de seus semelhantes e é pressionado pelo desejo
de trazê-los à verdade.
Neste novo estágio, o Homem continua, sem dúvida, a observar
a lei dos sacrifícios, que não pode ser inteiramente realizada
até que derrame seu sangue; mas se acerca dele uma forte influência
(ação) que em conjunto com a ação da primeira
idade espiritual tomam o domínio sobre ele e o guia, é a própria
Ação divina que está começando a aparecer no
mundo: ela ainda deixa o Homem livre, pois é apenas uma lei iniciatória
e um alerta.
Vemos muitos profetas resistirem às ordens que lhe são dadas;
vemos homens, na sua segunda idade espiritual que não usam adequadamente
os auxílios que lhes são oferecidos; é por esta razão
que muitos eleitos nunca chegam à plenitude de sua eleição.
Não é menos verdade, contudo, que nesta segunda idade espiritual,
ou em outros termos, esta primeira idade divina, o verdadeiro espírito
de sacrifício que originalmente tinha como único objetivo
a caridade e a felicidade dos outros, começa a ser cumprido.
O Espírito divino, descendendo sobre os profetas e pousando sobre
eles o peso das nações, aliviou parte do peso que oprimia
estas nações, que se tornaram capazes de melhor receber os
primeiros raios de luz que as levariam ao caminho certo; em resumo, foram
capazes, através das dores e angústias dos profetas, de ver
se realizar sobre eles o que fora realizado perceptivamente por meios de
sacrifícios materiais.
O homem individual, chegando a esta segunda idade espiritual, tem o mesmo
emprego; podemos dizer que é só então que se inicia
a idade da maturidade, ou verdadeiro Ministério Espiritual do Homem;
é só então que ele realmente começa a ser útil
aos seus irmãos, visto que, na idade anterior, ele era útil
apenas à Natureza e a si próprio.