Sobre a lamentável e miserável queda do homem

Jacob Boehme



1. Para descrever claramente a encarnação de Jesus Cristo, é necessário expor-lhes as causas pelas quais Deus tornou-se homem. Não se trata de algo sem importância ou de pouco valor como consideram os Judeus e os Turcos, e mesmo entre os Cristãos, fica meio que sem sentido; não pode ser senão uma causa importante, o que colocou o Deus imutável em movimento. Guarde bem isso, iremos expor-lhes as causas.

2. Adão era um homem e uma imagem de Deus, uma completa semelhança de Deus, embora Deus não seja imagem. Ele é o reino e o poder, também a glória e a eternidade, tudo em tudo. Mas a profundidade infundada desejou manifestar-se em similitudes; de fato, tal manifestação ocorreu da eternidade, na sabedoria de Deus, como numa imagem virginal, que contudo não era uma genetrix, mas um espelho da Divindade e da eternidade, como se apresenta no fundamento e no não fundamento, um olho da glória de Deus. De acordo com este mesmo olho, foi criado ali os tronos dos príncipes como anjos e por fim, o homem, que tinha novamente o trono em si; ele foi criado da magia eterna, da Essência de Deus, do nada para algo, do espírito para o corpo. Como a magia eterna o gerou de si mesma, no olho das maravilhas e sabedoria de Deus, da mesma forma ele poderia e deveria gerar de si mesmo um outro homem, de forma mágica, sem a dilaceração de seu corpo; pois o homem foi concebido no desejo ardente de Deus, sendo gerado e trazido à luz pelo desejo de Deus. Consequentemente, ele possuía o mesmo desejo ardente em si, para sua própria fecundação. Pois, a tintura de Vênus é a matriz, e se torna fecunda com a substância, como com o súlfur no fogo, o qual ainda obtém à substância na água de Vênus. A tintura do fogo oferece a alma; a tintura da luz oferece o espírito; a água ou a substância oferece o corpo; o Mercúrio ou o centrum naturae oferece a roda das essências e a grande vida no fogo e água, celeste e terrestre; o Sal, celeste e terrestre, mantém tudo isso no ser, pois ele (o Sal) é o Fiat.

3. O homem tem em si a constelação externa, que é a sua roda das essências do mundo exterior e a causa da fundação afetiva (Gemüth); mas ele tem também a constelação interna, do centro das essências ígneas e, no segundo princípio, aquela das essências divinas de luz-flamejante. Ele tinha toda a magia do Ser de todas as coisas em si. A possibilidade estava nele: ele era capaz de criar de forma mágica, pois amava a si mesmo, desejando, de seu centro, a semelhança. Tendo sido concebido do desejo de Deus, e trazido à luz pela genetrix no Fiat, da mesma forma deveria trazer à luz sua hoste angélica ou humana.

4. Mas se tudo deveria ser gerado de um, ou seja, do trono principesco, ou um do outro, não é necessário saber. Basta-nos saber o que somos e qual é o nosso reino. Contudo, acredito, no fundo, no centro, que um surgia do outro; pois o centro celeste, assim como o terrestre tem seus momentos, que estão sempre surgindo, já que a roda das essências em todos os três Princípios está sempre em movimento, revelando continuamente uma maravilha após a outra. Assim foi construída e composta a imagem do homem, na sabedoria de Deus, onde encontram-se inumeráveis maravilhas; estas deveriam ser reveladas pela hoste humana. Sem dúvida, com o curso do tempo, uma maravilha maior seria revelada, mais em um do que no outro, sempre de acordo com as maravilhosas variações da criação celeste e terrestre; de fato, este é o caso atual, onde encontramos uma maior ciência e compreensão em um indivíduo do que em outro. Portanto, concluo que um homem nascia e dava origem a outro, em conexão com as grandes maravilhas e para a alegria e deleite do homem, já que cada homem criaria seu próprio companheiro. Desta forma, a raça humana teria permanecido num processo de nascimento até Deus colocar o terceiro Princípio deste mundo em seu éter novamente, pois este é um globo com começo e fim. Quando o começo atinge o fim, e o que era último for o primeiro, tudo está consumado. Então o meio será purificado e penetrará novamente aquilo onde encontrava-se antes dos tempos deste mundo, exceto as maravilhas que persistem na sabedoria de Deus, na grande magia, como uma sombra deste mundo.

5. Visto que Adão era uma imagem tão gloriosa, e além do mais, que estava no lugar de Lúcifer, que havia sido expulso, o demônio invejou sua posição, teve um ciúme violento, estabelecendo seu alvo e sua ânsia continuamente diante de Adão, deslizou com sua ânsia na terrenalidade do fruto, fazendo com que Adão acreditasse que a grande glória residia em sua terrenidade incandescente. Se bem que Adão não o conheceu; pois ele não apareceu em sua forma própria, mas na forma de serpente, como na forma de uma besta argilosa; ele praticou truques simiescos como um tolo, que seduz os pássaros e os captura. Ele havia mais que nada, com seu ímpeto de orgulho, infectado e aniquilado metade do reino terrestre, que tornou-se inteiramente corrompido e vão, ainda que tivesse sido gradualmente libertado da vaidade. E como o demônio sentiu que Adão era um filho de Deus, que possuía glória e poder, ele o perseguiu veementemente. A cólera incandescente de Deus também perseguiu Adão, a fim de se deleitar nesta imagem viva.

6. Como vemos, tudo atraía Adão e desejava possuí-lo. O reino do céu desejava-o para si, pois ele havia sido criado para esse reino. Da mesma forma, o reino terrestre o desejava, pois tinha uma parte nele; o reino terrestre desejava ser seu mestre, já que ele era apenas uma criatura. A cólera feroz lançou suas garras, desejando tornar-se criatura e essencial, a fim de saciar sua grande e aguda fome. Adão então, foi tentado por quarenta dias, tanto quanto o Cristo foi tentado no deserto e Israel, no monte Sinai, quando Deus deu a eles a lei, para ver se aquele povo teria condições de permanecer firme na qualificação do Pai, na lei, diante de Deus; ver se o homem poderia continuar em obediência, de tal forma que poderia colocar sua imaginação em Deus, a fim de que Deus não precisasse se tornar homem: por conta disso, Deus realizou aquelas maravilhas no Egito, para que o homem visse que há um Deus, e que amasse e temesse a Ele. Mas o demônio era um mentiroso e um enganador, Israel foi afastada por ele, construindo um bezerro, ao qual adorou como a um Deus. Não foi mais possível permanecer firme. Portanto, Moisés desceu da montanha com as tábuas onde a lei havia sido escrita e as quebrou, matando os adoradores de bezerro. Com isso, Moisés não deveria conduzir o povo à terra prometida; isto era impossível. Josué teria que fazê-lo e posteriormente Jesus, que na tentação permaneceu firme diante do demônio e da cólera de Deus, aquele que venceu a cólera e despedaçou a morte, como fez Moisés com as tábuas da lei. O primeiro Adão não conseguiu permanecer firme, ainda que estivesse no Paraíso e o reino de Deus estivesse diante de seus olhos. A cólera de Deus encontrava-se muito mais inflamada, atraindo Adão; a cólera encontrava-se muito mais inflamada na terra, por causa da imaginação e vontade poderosa do demônio.

7. A Razão diz: Será que o demônio tinha tanto poder? Sim, caro homem, e o homem também tem; ele pode remover montanhas, se a penetrar fortemente com sua imaginação. O demônio procedeu da grande magia de Deus e era um príncipe ou rei de seu trono. Ele penetrou o forte poder do fogo, com a intenção de ser senhor de todas as hostes celestes. Assim, a magia tornou-se inflamada e a grande turba foi gerada, a qual lutou com Adão para ver se ele era forte o bastante para possuir o reino do demônio e reinar ali, em outra fonte. O espírito da razão de Adão, é verdade, não compreendeu isso; mas as essências mágicas, de onde surgem o desejo e a vontade, satisfizeram uma a outra, até que Adão começasse a imaginar a terrenidade e desejasse obter o fruto terrestre. Assim foi feito. Pois sua imagem pura, que deveria alimentar-se unicamente do Verbo de Deus, tornou-se infectada e obscurecida: a árvore terrestre da tentação cresceu imediatamente, pois assim desejou e permitiu a luxúria de Adão. Ele tinha que ser tentado, para ver se permaneceria firme. Surge então o severo mandamento de Deus, que disse à Adão: "Podes comer de todas as árvores do Jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer" (Ge. 2. 16,17). Quer dizer, morrer para o reino do céu e tornar-se terrestre. Adão conhecia muito bem o mandamento, portanto não comeu, mas imaginou ali e foi tomado prisioneiro de sua imaginação, e totalmente sem vigor, fraco e debilitado, foi vencido; Adão caiu então no sono.

8. Desta forma, ele caiu diante da magia e sua glória foi perdida. Pois adormecer indica morte e subjugação. O reino terrestre o subjugou e desejou governá-lo. O reino sideral desejou possuir Adão e realizar suas maravilhas através dele, pois nenhuma outra criatura havia jamais sido tão elevada quanto o homem, capaz de conter o reino sideral. Portanto, Adão foi atraído e devidamente tentado, para ver se poderia ser senhor e rei das estrelas e elementos. O demônio estava a serviço e também pensou em atrair o homem e trazê-lo sob o seu poder, a fim de que este trono pudesse finalmente permanecer seu reino; pois ele sabia muito bem que se o homem deixasse a vontade de Deus, ele se tornaria terrestre. Sabia também que o abismo do inferno encontrava-se no reino terrestre; portanto, ele tinha muito o que fazer. Pois se Adão tivesse se manifestado magicamente, o Paraíso teria continuado na terra. Isso não interessava ao demônio, ele não gostava do Paraíso e nem o queria em seu reino; pois esse não cheirava a enxofre e fogo, mas a amor e doçura. Então, pensou o demônio: Tu não irás comer desta erva, pois deixarias de ser um senhor no fogo.

9. Assim, a queda de Adão permanece inteiramente na essência terrestre. Ele perdeu a essência celeste, de onde surge o amor Divino, e adquiriu a essência terrestre, de onde surge a cólera, a malícia, o veneno, a doença e a miséria; perdeu também os olhos celestes. Além do mais, não mais podia comer de forma paradisíaca, mas imaginava o fruto proibido, no qual o bem e o mal estavam misturados, como ainda estão hoje em dia, todos os frutos na terra. Assim, os quatro elementos tornaram-se ativos e operaram efetivamente nele, pois sua vontade, através da imaginação, tomou o reino terrestre para habitar o fogo da alma. Desta forma, abandonamos o Espírito de Deus para penetrar o espírito das estrelas e dos elementos; estes o receberam e regozijaram-se nele, pois ali vieram a ser vivos e poderosos. Anteriormente, eram compelidos a serem submissos e contraídos; mas agora haviam obtido o domínio.

10. Com isso, o demônio deve ter rido e zombado de Deus; mas ele não sabia o que estava por trás; ele ainda nada sabia sobre a esmagadora da serpente, que afastaria o seu trono e destruiria seu reino. E assim Adão afundou-se no sono, na magia, pois Deus viu que ele não permaneceria firme. Portanto, disse: "Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda" (Gen. 2. 18). Através da qual pudesse edificar sua descendência e se propagar. Pois ele viu a queda e veio ao seu auxílio de outra forma, já que não desejava que sua imagem perecesse.

11. A Razão pergunta: Por que Deus deixou crescer a árvore pela qual Adão foi tentado? Deve ter sido de Sua vontade que Adão fosse tentado. A Razão irá então atribuir a queda à vontade de Deus, e pensa que Deus quis que Adão caísse. Deus, segundo ela, desejou ter um certo número de individualidades no céu e um certo número no inferno, senão teria evitado o mal e preservado Adão, a fim de que ele continuasse bom e no paraíso. Assim julga o mundo presente. Pois, diz, se Deus não fizesse nada que fosse mal, não haveria nada mal, já que tudo é dele proveniente, e só ele é o criador, quem tudo fez. Seguindo este raciocínio, ele fez o que é mal e o que é bom. A Razão insiste em manter esta posição. Pensa também que se não houvesse nada com que o demônio e também o homem fosse cativado, vindo a ser mal, o demônio teria permanecido um anjo e o homem no Paraíso.

12. Resposta: Sim, cara Razão, agora atingistes o ponto; não podes fracassar se não és cega. Ouça atentamente: Por que falas da luz, já que padeces no fogo? Que deleites não terias, caso não habitasse o fogo. Colocaria minha tenda junto a ti, mas tu habitas o fogo; Eu não posso. Tudo o que tens a fazer é dizer à luz: saia do fogo, então serás esplendida e encantadora. E se a luz te obedecer, encontrarás um grande tesouro. Como irás te regozijar se puderes habitar a luz! Quando o fogo não puder te queimar. Assim tão longe vai a Razão.

13. Mas veja corretamente com os olhos mágicos, compreenda com os olhos divinos e também com os olhos naturais, então isso lhe será mostrado, ou seja, se não fores cega e morta. Observe, digo isso para que compreenda por analogia, visto que a Razão é tola e nada compreende sobre o espírito de Deus. Imagine, então, que eu tivesse o poder de tirar a luz do fogo (o que não pode ser) e ver o que se segue. Reflita! Se eu separar a luz do fogo, (1) a luz perde a sua essência. Através da qual brilha; (2) ela perde a sua vida e se torna desprovida de poder; (3) ela é perseguida e superada pelas trevas, extinta em si mesma e se torna um nada, pois ela é a liberdade eterna e um não fundamento; enquanto brilha, é boa, e quando se extingue é um nada.

14. Observe mais! O que eu ainda conservo do fogo se separar dele a luz e o brilho? Nada, senão um desejo seco e trevas. Ele perde essência e vida, perde o desejo e se torna como um nada. Seu súlfur anterior é morte; consome a si mesmo enquanto existir essência. Quando não mais houver essência, haverá um nada, um não fundamento, onde não permanecerá vestígio algum.

15. Então, cara alma que busca, medite sobre isto: Deus é a luz eterna, sua fonte e poder reside na luz. A luz produz brandura, e da brandura o ser é produzido; esse ser é o ser de Deus, e a fonte da luz é o Espírito de Deus, que é a origem. Não há outro Deus do que este Deus. Na luz está o poder, e o poder é o reino. A luz e o poder possuem apenas uma vontade-amor, que não deseja nada mal; ela, de fato, deseja ser, mas a partir de sua própria essência, ou a partir do amor e da doçura, pois isso é como a luz. Mas, a luz surge do fogo, e sem o fogo ela não seria nada, não haveria essência sem o fogo. O fogo provoca a vida e o movimento e é a natureza, mas tem uma vontade diferente da luz. Pois ele é uma fúria ou voracidade e seu único desejo é consumir. Ele só tira e cresce no orgulho; enquanto que a luz nada tira, mas oferece, sendo assim preservado o fogo. A fonte do fogo é a ferocidade, sua essência é amarga, seu ferrão é hostil e desagradável. Ele é um inimigo em si, e se auto consome; e se a luz não vier em seu auxílio, ele se devora, a fim de se tornar um nada.

16. Portanto, cara alma que busca, reflita sobre isto, e logo irás alcançar o objetivo e a paz. Deus é, desde a eternidade, o poder e a luz, sendo chamado de Deus, de acordo com a luz e de acordo com o poder da luz, de acordo com o espírito da luz e não segundo o espírito do fogo. Pois o espírito do fogo é chamado de sua ira, cólera e não é denominado Deus, mas um fogo consumidor do poder de Deus. O fogo é chamado natureza e a luz não é chamada natureza; é verdade que ela possui a propriedade do fogo, mas transmudada, de cólera em amor, de devoradora e consumidora em realizadora, de inimigo e dor amarga em doce beneficência, desejo amigável e plenitude perpétua; pois o desejo-amor extrai a brandura da luz e é uma virgem fecundada, ou seja, fecundada com a compreensão e sabedoria do poder da Divindade.

17. Assim, estamos altamente qualificados para reconhecer o que é Deus e a natureza, o fundamento e o não fundamento, e também a profundeza da eternidade. Reconhecemos, então, que o fogo eterno é mágico e que é gerado na vontade que deseja. Se o eterno e insondável é mágico, também é mágico o que nasce do eterno, pois a partir do desejo surgiram todas as coisas. O céu e a terra são mágicos, assim como a mente e as essências; se pudéssemos ao menos conhecer a nós mesmos!

18. Ora, o que pode fazer a luz se o fogo captura e absorve algo, quando, contudo, o objeto capturado pelo fogo também é mágico? Se tem uma vida, poder e compreensão da luz, por que então corre para o fogo? O demônio era um anjo e Adão uma imagem de Deus; ambos possuíam o fogo e a luz, e mais que isso, possuíam a compreensão divina em si. Por que o demônio imaginou no fogo e Adão na terra? Eles eram livres. Não foi a luz e o poder de Deus o que atraiu o demônio para o fogo, mas a cólera da natureza. Por que seu espírito consentiu? A Magia fez por ele, aquilo que ele tinha dentro de si. O demônio fez para si o inferno, era isso o que ele tinha. Adão se fez terrestre, é isso o que ele é. Deus não é uma criatura, nem um realizador, mas um Espírito e um Revelador. Com o evento da criação, a posição pode ser considerada e apreendida da seguinte forma: O fogo e a luz despertaram, ao mesmo tempo, no desejo, e desejaram um espelho ou imagem de acordo com a eternidade; o conhecimento real nos diz, que a ferocidade ou a natureza do fogo não é realizadora; ela não tornou nada substancial de si mesma, pois isto não pode ser; mas ela tem feito fonte e espírito. Ora, nenhuma criatura tem sua subsistência apenas na essência. Se uma criatura tiver que existir, deve ser através da substância, assim como pelo poder ou súlfur, deve consistir do sal espiritual; então, do fogo-fonte surge um mercúrio e uma verdadeira vida essencial; além disso ela deve ter brilho, caso se queira encontrar nela inteligência e cognição.

19. Assim, sabemos que toda criatura tem sua subsistência no súlfur, mercúrio e sal espiritual. Mas o espírito por si só não realiza tudo isso; deve haver súlfur, onde há o Fiat, ou seja, a matriz salgada para o centrum naturae, onde o espírito é mantido; é preciso haver substância. Pois onde não há substância, não há forma. Um espirito criaturalizado não é um ser compreensível; ele precisa atrair substância para si, através da imaginação, caso contrário não subsiste.

20. Se o demônio atraiu ferocidade em seu espírito, e o homem a materialidade, o que poderia o amor da essencialidade de Deus fazer com relação a isso? Pois o amor e a brandura de Deus, com a essência divina, estava presente e se ofereceu ao demônio, assim como ao homem. Quem pode acusar a Deus? Que a essência colérica era demasiadamente forte no demônio, a ponto de extinguir a essência-amor: o que Deus pode fazer? Se uma boa árvore for plantada, e mesmo assim morrer, o que pode a terra fazer? Ela concede à árvore, no entanto, seiva e energia. Por que a árvore não as toma para si? Tu poderás dizer: Suas essências são muitos frágeis. Mas o que pode a terra fazer, ou mesmo aquele que plantou a árvore? Sua vontade é apenas que cresça, para sua satisfação, uma boa árvore, e pensa em aproveitar o seu fruto. Se ele soubesse que a árvore fosse perecer, nunca a teria plantado.

21. Temos que reconhecer que os anjos foram criados, não como uma árvore que foi plantada, mas a partir do movimento de Deus, a partir dos dois princípios, ou seja, da luz e das trevas, onde o fogo está oculto. O fogo não queimou no ato da criação e no movimento, como não queima agora, pois ele tem seu princípio próprio. Por que Lúcifer o despertou? A vontade surgiu de seu ser criaturalizado, e não de fora dele. Ele desejava ser o senhor do fogo e da luz; desejou extinguir a luz, e ignorou a brandura; ele desejou ser o senhor-fogo. Vendo que ele desprezou a luz e o seu nascimento na brandura, acabou sendo simplesmente expulso. Desta forma, perdeu o fogo e a luz, tendo que habitar no abismo das trevas. Se ele tivesse o fogo, ele o inflamaria com sua malícia, na imaginação. Além disso, este fogo não queima propriamente para ele, mas somente na fonte essencial feroz, de acordo com as quatro formas no centrum naturae que fornece o fogo em si mesmas. A primeira forma é azeda, dura, áspera e fria; a segunda forma, no centro, é amarga, aguda, hostil; a terceira forma é ansiedade, dor e tormento; e com a ansiedade, como no movimento e na vida, ele (Lúcifer) lançou fogo na dura amargura, entre a dureza e o amargor azedo, a fim de brilhar como um raio de luz, que é a quarta forma. E se não há brandura ou essência da brandura, não se produz a luz, mas unicamente um lampejo; pois a angústia terá a liberdade, mas é muito aguda, e a tem senão como um lampejo, ou seja, fogo, ainda que não possua nenhuma estabilidade ou fundamento. Assim, o demônio deve habitar nas trevas, e tem apenas o lampejo ígneo em si mesmo; além do mais, toda a imagem de sua habitação é como um lampejo ígneo, como se houvesse um trovão: assim a propriedade infernal se apresenta na fonte.

22. Desta mesma forma devemos compreender a árvore da tentação, a qual Adão despertou através de sua imaginação: ele desejou, e a matrix naturae apresentou-lhe aquilo que ele desejava. Deus o proibiu de tocá-la; mas a matrix terrestre teria Adão, pois ela reconheceu nele o poder divino. Isto porque o poder divino havia se tornado terrestre através da inflamação do demônio, embora não estivesse morto, ele buscava ser o que era antes, ou seja, buscava a liberdade, para ficar livre da vaidade; e em Adão estava a liberdade.

23. Foi assim que ela atraiu Adão, a fim de que ele começasse a imaginar; e Adão cobiçou a vontade e o comando de Deus, como encontramos em Paulo: "Pois a carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne" (Gal. 5, 17). A carne de Adão era metade celeste e metade terrestre, e assim o espírito de Adão também havia trazido, pela imaginação, um poder para a terra, e a matrix naturae deu a ele aquilo que ele desejou. Ele havia que ser tentado, para ver se podia permanecer firme, como um anjo no lugar de Lúcifer. Portanto, Deus não o criou meramente como um anjo, a fim de que, se ele caísse e não permanecesse firme, Ele poderia ajudá-lo, para que ele não perecesse na cólera feroz, como Lúcifer. Por causa disso, Adão foi criado da matéria, e seu espírito foi introduzido na matéria, ou seja, num súlfur de água e fogo, para que Deus fosse capaz de gerar nele uma nova vida: como uma bela flor, doce e perfumada, cresce da terra. Este era o objetivo de Deus também porque ele sabia que o homem não ficaria firme. Paulo também diz: "Somos pré ordenados em Cristo Jesus antes da fundação do mundo", ou seja, quando Lúcifer caiu, a fundação do mundo ainda não estava estabelecida, mas o homem já havia sido visto na sabedoria de Deus. Se, contudo, ele haveria de ser criado a partir dos três princípios, já havia perigo, por conta do súlfur inflamado dos materiais. Embora ele houvesse sido criado acima da terra, mesmo assim o súlfur havia sido extraído da matrix da terra, como uma floração da terra, o perigo já existia. Aqui, o doce nome de Jesus introduziu-se formativamente, como um salvador e um regenerador; pois o homem é o maior mistério produzido por Deus. Ele tem a imagem na qual se vê como a Natureza Divina tem, desde a eternidade, se gerado a partir da ferocidade, a partir do fogo, mergulhando, perecendo, num outro princípio, de uma outra fonte. Assim, ele também é resgatado da morte, e cresce da morte num outro princípio, de outra fonte e poder, onde é totalmente libertado da terrenidade.

24. É extremamente benéfico para nós que tenhamos, com relação a parte terrestre, caído a ponto de dividir a terra, se é que ao mesmo tempo, obtenhamos a parte divina. Pois desta forma, fazemos de nós mesmos praticamente puros, voltando ao reino de Deus totalmente perfeitos, apesar de qualquer anelo do demônio. Somos um mistério muito maior do que os anjos. Devemos também superá-los em essência divina. Pois eles são chamas de fogo, iluminados pela luz; mas nós possuímos a grande fonte de brandura e amor que surge na santa essência de Deus.

25. Portanto, comportam-se falsa e erroneamente aqueles que dizem que Deus não quis ter todos os homens no céu. Ele quis que todos fossem salvos; é a própria falta do homem, o que não permite que ele seja salvo; muito embora, muitos tenham uma tendência má, isto não procede de Deus, mas da matrix naturae. Poderias tu acusar à Deus? Mentes; o Espírito de Deus não se extrai de nenhum outro. Expulsa tua fraqueza, penetra a brandura, a verdade, o amor e te entrega à Deus, então serás salvo; foi por isso que Jesus nasceu, porque ele quis salvar. Tu dizes: Estou preso, não posso. Realmente! Tu irás então desejar; assim como o demônio desejou. Se és um cavaleiro, por que não lutas contra o mal? Mas se lutas contra o bem, és um inimigo de Deus. Pensas que Deus irá colocar uma coroa angélica sobre o demônio? Se és um inimigo, não és amigo. Se pretendes ser um amigo, abandona a inimizade e vá até ao Pai, então serás um filho. Onde quer que seja, quem quer que seja que acuse à Deus é um mentiroso e um assassino como o demônio. Tu és, de fato, teu próprio realizador, por que te fazes mal? Embora sejas um material de má espécie, Deus deu a ti seu coração e espírito. Use estes dons para a realização de si mesmo, e farás de ti algo bom. Mas se usas a inveja e o orgulho, e também o prazer da vida terrestre, o que Deus pode fazer? Irá Deus se posicionar junto ao teu orgulho desprezível? Não, esta não é sua fonte. Mas tu dirás: Eu sou uma fonte mal, e não posso, estou preso. Bem, deixe a fonte demoníaca de lado e penetre com tua Vontade-Espírito no amor-espírito de Deus, entrega-te à Sua misericórdia; algum dia, certamente serás libertado da fonte má. Esta nasce da morte. Quando a terra recebe o corpo, ela pode tomar para si a maldade que pertence ao corpo; mas tu és e continuas sendo um espírito na vontade de Deus, em seu amor. Deixe que o mal Adão morra; um novo e bom irá florescer do velho, em ti, como uma bela flor floresce do adubo mal cheiroso. Tenha o cuidado de manter o espírito em Deus. Não há necessidade de grandes preocupações quanto ao corpo mal, que está repleto de maus efeitos. Se ele tiver uma inclinação à fraqueza, não lhe dê o que é bom; não lhe dê a oportunidade de exercitar a lascívia. Mantê-lo em restrição é um bom remédio; Mas abusar da bebida e da comida é afundar-se com o demônio na lama, onde ele se enlameia como um suíno. Ser sóbrio, ter uma vida equilibrada, é um excelente purgatório para o mal ignorante; não dar a ele aquilo que anseia, deixa-lo jejuar freqüentemente, a fim de que não impeça a oração, é extremamente benéfico. Ele recusa, é claro, mas a Compreensão deve ser mestre e senhora, pois contém a imagem de Deus.

26. Na verdade, isto não é nada agradável ao mundo da Razão, na esfera dos prazeres carnais. Mas por não ser agradável, e além disso atrair e beber nada além da sensualidade terrestre e má, a cólera mistura-se a ela, fazendo com que passe com Adão constantemente para fora do Paraíso, e com Lúcifer para o abismo. Lá irás comer e beber aquilo que, na vida presente atraiu voluntariamente para ti. Mas à Deus não deves acusar; senão serás um mentiroso e inimigo da verdade. Deus não habita em nenhum mal, nem há nele qualquer pensamento mal. Ele tem senão uma só fonte, ou seja, a do amor e da alegria; mas sua cólera feroz, ou seja, a natureza, tem muitas fontes. Portanto, que cada um tome cuidado com o que faz. Cada homem é seu próprio Deus e também seu próprio demônio: a fonte para a qual se inclina e para a qual se entrega, é aquela que o impele e o guia: ele se torna seu operário.

27. É uma grande miséria o fato do homem ser tão cego a ponto de não reconhecer o que é Deus, embora ele viva em Deus. Há homens que até mesmo fazem disso assunto proibido, afirmando, que não se deve questionar sobre o que é Deus, ao mesmo tempo que são reconhecidos como mestres de Deus. Estes são mestres do demônio, trabalhando para que ele e seu reino de falsidades hipócritas não seja revelado e conhecido.