Dos exercícios do bom religioso

Tomás de Kempis



1. A vida do bom religioso deve ser adornada de todas as virtudes afim de que tal seja no interior qual aparece exteriormente aos homens. E na verdade, muito mais perfeito deve ser por dentro do que se mostra por fora, porque Deus nos vê e onde quer que estejamos devemos
prestar-lhe profunda reverência e andar na sua presença puros como anjos. Cumpre renovar o nosso propósito e excitar-nos ao fervor cada dia como se fora o primeiro da nossa conversão e dizer: "Ajudai-me, meu Deus e Senhor, nas minhas boas resoluções e no vosso santo serviço,
dai-me que comece hoje deveras porque nada é o que até agora tenho feito."


2. A decisão do nosso propósito é a medida do nosso aproveitamento; e de muita diligência há mister quem deseja progredir no bem. Se o que propõe com firmeza muitas vezes fraqueja, que será do que propõe poucas, ou com menos energia? Contudo somos infiéis às nossas resoluções
e a mais leve omissão nos nossos exercícios dificilmente deixa de causar-nos algum dano. Os justos nos seus propósitos contam mais com a graça de Deus que com a própria sabedoria; e em tudo quanto empreendem nEle põem sempre a sua confiança. Porque "o homem propõe e Deus
dispõe; e não estão nas mãos do homem os seus caminhos" (Jerem. X,23).


3. O exercício habitual que se omite por motivo de piedade ou para o bem de nossos irmãos poderá depois facilmente ser reparado; mas o que se deixa levianamente por tédio ou negligência é culpa séria e de conseqüências funestas. Por mais que nos esforcemos, faltas leves havemos de cometer muitas. Ainda assim deve propor-se sempre alguma coisa determinada principalmente contra o que mais impede o nosso progresso espiritual. Importa examinar e ordenar tanto o nosso exterior quanto o interior porque um e outro contribuem para o nosso aproveitamento.


4. Se te não podes recolher continuamente, recolhe-te de quando em quando; ao menos uma vez ao dia, pela manhã ou à noite. Pela manhã toma as tuas resoluções; à noite, examina as tuas ações, como te houveste hoje em palavras, obras e pensamentos; porque pode ser que nisso
muitas vezes tenhas ofendido a Deus e ao próximo. Arma-te com animo varonil contra as ciladas do demônio; refreia a gula e mais facilmente refrearás todas as inclinações da carne. Nunca estejas ocioso; 1ê ou escreve, reza, medita ou trabalha em alguma coisa útil aos outros.
Os exercícios corporais, porém, convém fazer-se com discrição; nem a todos convêm na mesma medida.


5. O que sai das práticas comuns não deve ostentar-se publicamente; os exercícios particulares é mais seguro fazê-los em segredo. Guarda-te, porém, de ser negligente para os exercícios comuns e pronto para os singulares. Mas satisfeitos inteira e fielmente os deveres prescritos, se
ainda sobrar tempo, recolhe-te em ti conforme te pede a tua devoção. Nem todos podem aplicar-se aos mesmos exercícios, uns convêm mais a este, outros, àquele. É bom também variá-los segundo os tempos; uns mais se apreciam nos dias de festa, outros, nos dias úteis.
Destes necessitamos na hora da tentação, daqueles, no tempo de paz e de sossego. Certos pensamentos agradam-nos quando estamos tristes, outros, quando alegres no Senhor.


6. Nas festas principais cumpre renovar nossos exercícios de piedade e implorar com mais fervor a intercessão dos Santos. De uma solenidade para outra, façamos o propósito de viver, como se tivéramos então que deixar este mundo e entrar na festa da eternidade. Por isso
devemos preparar-nos solicitamente nos tempos festivos, com uma vida mais fervorosa e uma observância mais severa das regras como se em breve houvéramos de receber de Deus o prêmio do nosso trabalho.


7. E se este momento for diferido, tenhamos por certo que ainda não estamos preparados nem somos dignos desta glória imensa que a seu tempo "se há de revelar em nós" (Rom. VIII, 18) e esforcemos por nos dispor melhor para a partida. "Bem-aventurado o servo", diz o evangelista
São Lucas, "a quem o Senhor, quando vier, encontrar vigilante; em verdade vos digo que o constituirá sobre todos os seus bens" (Lucas XII, 43-44).