O Homem que criou Jesus Cristo
Robert Ambelain


Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.

Primeira parte
O grande sonho de Saulo-Paulo
Os ensinamentos engendram a vaidade... Eclesiastes, 5, 6
Paulo, o apóstolo tricéfalo
As lendas dos narradores do tempo passado são lições para o homem de hoje.
As mil e uma noites.

Introdução


Do estudo atento dos Atos dos Apóstolos, das Epístolas de Paulo, dos diversos apócrifos atribuídos a ele, assim como das Homilias Clementinas, as Antigüidades judaicas e a Guerra dos judeus, de Flavio Josefo, em resumo, de todos os textos antigos que nos chegaram sobre ele, desprende-se finalmente uma conclusão, muito desconsoladora para os crentes aos quais lhes apresento: é que o Paulo do Novo Testamento é um personagem simbólico, no qual os escribas anônimos dos séculos IV e V fundiram e amalgamaram literalmente palavras e acontecimentos pertencentes a, pelo menos, três personagens diferentes, dois dos quais foram imaginados a seu desejo, e só um deles foi real.
Na época em que, por ordem de Constantino, e sob a vigilância de altas autoridades da Igreja, como Eusébio da Cesaréia, unificavam-se os textos evangélicos, que quando eram "conforme" se copiavam de novo em série de cinqüenta* exemplares e a seguir eram enviados a todas as igrejas do Império (sem omitir o confisco dos antigos textos, aos que estes tinham substituído), literalmente se "criou" Cristo, deus encarnado para a salvação dos homens.


*[Cinqüenta é o número do Pentecostes (pentékostés). Quer dizer, do Espírito Santo. Nossos falsificadores careciam de complexos...]*
Entretanto, para dar um valor inatacável a esta criação e poder justificá-la, não podiam utilizar "testemunhos apostólicos" habituais. De maneira que se fabricou um personagem novo, mediante a fusão de três personagens antigos. Os textos e os documentos que estes eram, indiscutivelmente, os autores foram refundidos e recompostos. E como eram anteriores aos novos evangelhos "canônicos", contribuíam à este personagem imaginário um reflexo de autenticidade histórica. Nessa época, e ao longo de todos esses séculos, a mão de ferro dos poderes temporários sob as ordens da Igreja, perinde ac cadáver, achava-se sempre disposta a silenciar definitivamente a todo investigador mau pensante.


Por isso é pelo que monsenhor Ricciotti pode nos dizer, com toda lealdade, em seu Saint Paúl, apotre:
a) "As fontes que permitem reconstruir a vida de São Paulo se acham em sua integridade no Novo Testamento; fora deste não se encontra virtualmente nada. Os elementos que podem descobrir em alguns outros documentos não só são pouco numerosos mas também, além disso, extremamente duvidosos." (P. 90).
b) "O ano de nascimento de Paulo não se desprende de nenhum documento..." (P. 149).
c) "Quanto ao ano do martírio de Paulo, os testemunhos antigos são vagos e discordantes [...] Não se sabe nada a respeito do dia de sua morte..." (P. 671).
Também o abade Loisy, sem negar formalmente a existência histórica do personagem, concluiu que não pode saber-se nada válido sobre ele. Bruno Bauer e uma boa parte da escola exegética holandesa vão mais longe, e concluem que se tratava de um personagem imaginário ou simbólico.
Nós, por nossa parte, contentaremo-nos ficando com o homem que nos apresenta o texto dos Atos dos Apóstolos, e passá-lo pela peneira das verificações racionais, deixando às diversas igrejas a responsabilidade da impostura histórica, bem seja total ou parcial, se é que há.
Para começar, pois, permitiremo-nos expor um certo número de questões.
Se Saulo-Paulo é judeu, e segundo os historiadores católicos, nascido "nos primeiros anos da era cristã, se não um pouco antes inclusive..." (cf. monsenhor Ricciotti, Saint Paúl, apotre, P. 149), conta aproximadamente uns trinta e cinco anos de idade quando se produz a morte do diácono Estêvão, no ano 36 de nossa era. Então se concebe perfeitamente que pudesse:
a) encontrar-se ao mando de um corpo de polícia (Atos dos Apóstolos, 8, 3, e 9, 1);
b) obter do pontífice de Israel, neste caso Gamaliel, uma ordem que lhe permitisse operar longe de Jerusalém em missão de busca de cristãos (o problema sobre se esta ação era ou não lícita será discutido em outro lugar);
c) ter aprovado a condenação e execução de Estêvão, em virtude de sua idade e sua função (Atos dos Apóstolos, 8, 1, e 22, 20).
Mas então, no curso desta execução, não pode logicamente ver reduzido seu papel ao de um simples jovem judeu a quem tão somente lhe confia a guarda das vestimentas dos encarregados da lapidação. Porque se é judeu, de uns trinta e cinco anos de idade, há muito que tem a maioridade religiosa e civil em Israel, e portanto deve participar, legalmente, na lapidação, já que se encontra no local (Deuteronômio, 17, 7). Para ele é obrigatório.


Em caso negativo, é que não é judeu, a não ser idumeu, como demonstraremos mais adiante.
Por outra parte, se no ano 36 está ao mando de um corpo especial de polícia às ordens do Sanedrim e do pontífice, e se já conta uns trinta e cinco anos de idade, provavelmente exerceu já tal profissão nos anos 34 e 35, quando teve lugar a detenção de Jesus no Monte das Oliveiras. E neste caso, deve ser indevidamente ele quem se achava ao mando do destacamento de soldados que acompanhou à coorte dos veteranos e à tribuna que a dirigia durante o combate final, depois da ocupação do domínio de lerahmeel, onde entrincheiraram Jesus*. Portanto, conhecia este último, participou de sua captura e lhe corresponde parte da responsabilidade de sua morte. E ele, ou Lucas, seu "secretário", ou o escriba anônimo autor dos Atos dos Apóstolos, mentiu ao fazer acreditar que não o tinha visto antes... É mais, neste caso incluso deve proporcionar o corpo de guarda que teria reclamado Sanedrim para a vigilância da tumba de Jesus, e que foi incapaz de assegurá-la. Assim, Saulo-Paulo não ignorava que o cadáver tinha sido roubado, fato cuja prova contribuímos já na obra citada.
*[Cf. R. AMBELAIN, Jesús o el secreto mortal de los templarios, já citada, p. 239.]
Além disso, o nascimento de Paulo "nos primeiros anos da era cristã, se não um pouco antes inclusive...", implicaria uma mentira mais por parte do autor dos Atos, ou seja, que não é possível que Saulo-Paulo tivesse sido criado com o Menahem e Herodes, o Tetrarca, como declara o texto dos Atos (13, 1)*, já que Herodes Agripa II nasceu no ano 27 de nossa era, e morreu em Roma no ano 100. E no ano 27 Saulo-Paulo teria já vinte e sete anos...
*[Op. cit., pág. 302, para a justificação e a exégesis de tal passagem. Este versículo é muito importante.]
Se agora analisarmos cuidadosamente as Epístolas chamadas "paulinas", delas se desprendem duas facetas diferentes a respeito de seu autor:
- uma delas nos situa em presença de um helenista, de um partidário da Diáspora, que é cidadão romano, fala e escreve em grego, e se mostra como um implacável adversário dos tabus legais do judaísmo, em especial da circuncisão; chama-se Paulo, em grego Paulos;
- a outra face é a de um judeu piedoso e de boa raça, procedente da tribo de Benjamim (antigamente uma das duas tribos militares de Israel), e que se chama Saulo, em grego Saulos.
*[Temos que assinalar que, quando Paulo fala de sua raça, de sua nação, não diz "nossos" nem "os nossos", senão "os judeus". E esta expressão respectiva é a prova de que não era israelita de origem.]
Cada um destes dois homens tem sua doutrina. O primeiro, formado pela cultura grega, vê Cristo como um ser divino, descendido através dos "céus" intermediário adotando forma humana, morto na cruz, ressuscitado em espírito para assegurar a vitória do Espírito (pneuma) sobre a Matéria (hyiee), e assim contribuir aos homens sua liberação espiritual, longe da servidão de "poderes" intermediários e inferiores.
No segundo traduzem-se as tradições nazarenas e ebionitas; vê Jesus um homem de carne e osso, nascido de uma mulher da estirpe de David, submetido à Lei, morto na cruz, ressuscitado em carne, e logo deificado.
O "terceiro homem" será um mago, e nos apresentam como Simão, o Mago.
Temos aqui três personagens e três doutrinas absolutamente contraditórias. Vamos, pois, abrir o expediente desta investigação sobre "São Paulo, apóstolo dos gentis". E prevenimos de antemão o leitor de que vai de surpresa em surpresa, tal e como já aconteceu também no anterior volume, já citado, referente à Jesus. Porque formularão numerosas interrogações.
Foi, efetivamente, formulando-se perguntas sobre a identidade de Epafras, companheiro de cativeiro de Paulo (Epístola a Filêmon, 23), como São Jerônimo nos contribuiu o que ele chama a "fábula" (sic) do nascimento de Paulo, então Saulo, na Giscala, na alta Galiléia, e não na Judéia: "Quem é Epafras, o companheiro de cativeiro do Paulo? [...] Nós recolhemos a seguinte fábula [fábula]: Diz-se que os pais do apóstolo Paulo eram da Giscala, na Judéia, e quando a província foi devastada inteiramente pelo exército romano, e os judeus se dispersaram por todo o universo, foram transferidos ao Tarso, em Cilícia. Paulo, então ainda um jovem [adolescente], seguiu a sorte de seus pais". (Cf. Jerônimo, Comentários sobre a Epístola aos Filipenses, XXIII - M. L. XXVI, 617-643.)
Primeira questão: A deportação dos habitantes da Giscala teve lugar durante a repressão levada a cabo pelo Varus (quem crucificou a dois mil prisioneiros judeus nas colinas dos arredores de Jerusalém), quer dizer nos anos 6 aos 4 antes de nossa era. Agora bem, nos diz que naquela época Paulo era ainda um jovem (adolescente). Assim, teria nascido por volta do ano 21 antes de nossa era, e contaria ao redor de quinze anos quando se produziram esses acontecimentos. Isto parece dificilmente compatível com a cronologia clássica, já que neste caso teria contado 57 anos quando se produziu a lapidação de Estêvão, no ano 36 de nossa era. E então, como podem dizer os Atos dos Apóstolos: "E as testemunhas depositaram seus mantos aos pés de um jovem chamado Saulo" (Atos, 7, 58), se esse "jovem" tinha 57 anos? Além disso, neste caso teria morrido aos 88 anos (no 67 de nossa era), coisa dificilmente compatível com sua atividade e suas numerosas viagens. Continuemos.
Mais adiante, nesse mesmo capítulo, São Jerônimo volta para as palavras de Paulo, e as comenta in extenso: "Sou hebreu, da descendência de Abraham, circunciso do oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus e fariseu...". (Cf. II. Coríntios, 11, 22, e Filipenses, 3, 5). E Jerônimo observa finalmente:
"Magis judeum quam Tarsensem...", quer dizer: "Tudo isto demonstra que era mais judeu que tarsiota".


Segunda questão: por que Paulo experimenta a necessidade de precisar que, "da descendência de Abraham", ele é "da linhagem de Israel"? Porque se, já naquela época (séculos IV e V), em certas esferas eruditas se sabia que ele tinha origens iduméias, e que foi príncipe, da casa dos Herodes, os escribas anônimos que puseram as palavras em sua boca quiseram a todo custo jogar terra sobre o assunto.
Com efeito, neste caso teria sido também "da descendência de Abraham", mas pela linha de Ismael, o primeiro filho de Abraham, tido por sua escrava Agar, faxineira de sua estéril esposa, Sara, e que foi o tronco da nação árabe. E então não seria judeu, e não podiam atrever-se a insinuar que Jesus tivesse tomado como décimo terceiro apóstolo a um não judeu. Assim que o escriba anônimo que "acerta" o texto primitivo dos Atos no século IV ou V também se empenha a todo custo em fazer desaparecer essa molesta verdade. Desde aí a anormal insistência sobre o caráter hebreu de Paulo, precisão repetida em três ocasiões, e sublinhada além pela indicação da tribo e a seita. Continuemos, e observemos que, em seguida, São Jerônimo se mostrará muito mais categórico referente ao nascimento na Giscala:
"O apóstolo Paulo*, chamado antes Saulo, deve contar-se além dos doze apóstolos. Era da tribo de Benjamim e da cidade da Císcala, na Judéia. Quando esta foi tomada pelos romanos, emigrou com seus pais ao Tarso, em Cilícia, e logo foi enviado por eles à Jerusalém, para que estudasse ali a Lei, e foi instruído por Gamaliel, homem muito sábio, ao que Lucas recorda". (Cf. Jerônimo, De viris illustribus, M. L. XXIII, 615-646.)
*["Temos que entender o termo apóstolo no sentido que tinha no judaísmo, antes de adotar um sentido cristão. Para os judeus, um apóstolo era um enviado de Sanedrim de Jerusalém, encargado de perceber o imposto do Templo nas sinagogas da Dispersão, e de exercer um controle sobre sua ortodoxia." (Cf. ROBERT SAHL, Les Mandéens et les origines chrétiennes, p. 135.)]
Terceira questão: Jerônimo nos precisou mais acima que a população da Giscala foi deportada à Cilícia, e os pais de Paulo, com seu filho ainda adolescente, ao Tarso, mais concretamente. Agora bem, a deportação coletiva da população de uma cidade ou de um povo, a conseqüência de uma repressão romana e (geralmente) por prestar ajuda ou abastecer guerrilheiros zelotes, convertia-os em escravos. Todavia estes não eram necessariamente vendidos em separado a particulares, mas sim, no caso de uma deportação coletiva a um lugar concreto, convertiam-se em "escravos de César", quer dizer do Império. Os servos da Idade Média, os da Rússia czarista até finais do século XIX, ligados a uma terra, sujeitos à serviços e imposto "a vontade", casados segundo desejo da autoridade tutelar, como os deportados à Sibéria, reproduzem bastante bem esse caráter de "escravos de César".
Entretanto, todo filho de escravos era por sua vez escravo, de maneira que como pôde Paulo, então Saulo, abandonar livremente sua cidade de residência obrigatória, para instalar-se em Jerusalém, "aos pés de Gamaliel" (Atos, 22, 3), em qualidade de estudante? É difícil imaginar aos romanos, por si receosos e inclinados ao castigo fácil, tolerando semelhantes fantasias por parte dos deportados.
Quando Pompeyo venceu o último rei da dinastia asmonea, Aristóbulo, e o degolou segundo costume ao final de seu "desfile da vitória" em Roma, grande número de prisioneiros judeus dos que figuravam no cortejo foram convertidos em escravos: "Os filhos e as filhas de Israel vivem ali em um cativeiro horrível. Seu pescoço mostra a incisão, marca distintiva no seio das nações". (Cf. Salmos de Salomão, II, 6)*. Esta "incisão", que substituía ao colarinho de ferro de antigamente, o qual obstaculizava o trabalho do escravo, efetuavam-na com um ferro candente; ia do lado esquerdo do pescoço ao direito, e era mais acentuada na nuca, de onde segundo nome pelo que era conhecida: "jugo". Constituía o "sinal do escravo". Os rituais católicos falam ainda do jugo de Cristo, que seria "suave e ligeiro", já que nos primeiros séculos se falava dos "escravos de Cristo". (Cf. Confissão de São Cipriano, 16.)
*[Os Salmos de Salomão são de finais do século 1 antes de nossa era de autores desconhecidos]


Por outra parte, quando o escriba anônimo faz dizer a Saulo-Paulo que tem a civitas romana por seu nascimento (Atos dos Apóstolos, 22, 28), comete um novo engano. Porque ignora que o imperador Augusto precedentemente tinha proibido conferir este privilégio a um liberto (e portanto menos ainda a um escravo) que tivesse levado cadeias. "No que concerne aos escravos, não contente tendo multiplicado os obstáculos para os ter separados da liberdade simples, e muito mais ainda da liberdade completa, ao determinar com minuciosidade o número, a situação e as diferentes categorias daqueles que podiam ser mantidos, acrescentou ainda que jamais nenhum gênero de liberdade poderia conferir a qualidade de cidadão a um escravo que tivesse estado encadeado ou submetido à tortura". (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Augusto, XL.)
Agora bem, todo deportado levava cadeias durante seu translado (Flavio Josefo, em sua Guerra dos judeus, III, V, precisa que, efetivamente, na equipe regulamentar de todo soldado romano figurava um jogo de cadeias). Por conseguinte, se os pais de Saulo-Paulo, e inclusive ele mesmo, foram deportados da Giscala, na Galiléia, ao Tarso, em Cilícia, levaram os vínculos romanos durante uma viagem de mais de quatrocentos quilômetros, efetuado evidentemente a pé. E portanto é mais duvidoso que os convertessem em civis romanos a sua chegada!
Quarta questão: Admitindo que Paulo tivesse obtido, com o tempo, os recursos financeiros e a assistência privada (o indispensável amparo administrativo) que lhe permitissem converter-se em liberto, como pôde acabar decapitado, como um cidadão romano, depois de condenado a morte no ano 67 em Roma? Porque os libertos*, pelo mesmo fato de sua condenação a morte, perdiam esta qualidade, e ao voltar convertidos em escravos, eram crucificados. Assim, se Paulo pôde converter-se em liberto, não morreu pela espada a não ser, segundo os termos da lei romana, crucificado. Mas se realmente foi decapitado, isso significa que jamais foi deportado ao Tarso, e que não descendia de deportados. E então se expõe o problema de suas verdadeiras origens, e também o porquê desse mascaramento por parte dos escribas anônimos do século IV.
*[Trata-se aqui de libertos ordinários, que não são cidadãos romanos.]
Os libertos ordinários culpados de um crime voltavam a cair na escravidão, e então eram submetidos aos castigos reservados aos escravos. Existiam duas categorias de libertos:
a) aqueles aos que seu amo libertou pela vingança, quer dizer diante de um pretor ou um pró-cônsul, quem tocava então ao escravo ao que terá que alforriar com uma varinha denominada vingança. Estes ficavam realmente liberados;
b) os que não tinham sido liberados mas sim pela simples decisão de seu dono, que ficavam então sujeitos por um último elo jurídico à escravidão.
Trata-se de sutilezas da lei romana que nos contribui com Tácito em seus Anais, XIII, XXVII e XXXII.
E, com efeito, contrariamente ao que se afirma freqüentemente, o liberto não gozava ipso facto da cidadania romana! Como vamos acreditar que um escravo obscuro e iletrado, liberado por um ato de reconhecimento ou por pura benevolência por parte de seu amo, convertia-se em cidadão romano, enquanto que príncipes estrangeiros, vassalos de Roma, não o eram?
Além disso, os civis romanos não podiam ser nem espancado, nem açoitado, nem crucificado, nem submetido a escravidão. A lex Valeria do ano 509 antes de nossa era proibia já golpear a um cidadão romano sem uma decisão popular prévia e decisiva, e a lex Porcia, do ano 248 também antes de Cristo, não permitia usar os açoites em nenhum caso.
Agora bem, os libertos comuns condenados a morte eram crucificados, porque recaíam na escravidão pelo mesmo fato de ter sido condenados. Tácito nos conta isso em seus Anais (XIII, XXVI): sua alforria era sempre condicional, e o amo ofendido por um deles tinha sempre o direito legal de relegá-lo "além da centésima milha, nas bordas da Campanhia". Por outra parte, relata-nos casos de crucificação de libertos. Nada disso poderia aplicar-se caso a alforria inicial comprometesse a cidadania romana; é perfeitamente evidente. Mas se um deles, além de sua liberação da escravidão, beneficiava-se ulteriormente de tal privilégio, como os libertos célebres, os Narcisos e os Palantes, então gozava deste com todas as vantagens secundárias enumeradas acima.
*[Cf. TÁCITO, Anales, XIII, XXXII. Em caso de assassinato do amo por parte de seus escravos, todos os escravos e todos os libertos eram crucificados.]


Por conseguinte, admitindo que o pai de Saulo-Paulo, ou que ele mesmo, tivesse a sorte de passar de "escravo de César" deportado ao Tarso a homem livre, isso não significa que fora cidadão romano.
De modo que se Paulo foi realmente de Tarso, em Cilícia, e neste caso, antigo deportado e escravo, filho de deportados e escravos, não pôde ser decapitado, a não ser simplesmente crucificado.
Segundo a lei romana, o filho seguia a sorte do "ventre que lhe levara". Assim, o filho de uma mulher livre e de um escravo nascia livre. O filho de um homem livre e de uma escrava nascia escravo.
*[No obstante, a lex Minucia estipulava que o filho de uma romana e de um estrangeiro (peregrinos) seguia a condição de seu pai. Sem dúvida quando a concepção e o nascimento ocorria em lugar estrangeiro.]
Este princípio imprescritível do direito romano condicionou, como se vê, a sorte de Paulo.
Quinta questão: Admitindo que Paulo se converteu no máximo em um liberto, quando e como pôde chegar a ser cidadão romano, título que o Paulo dos Atos está não pouco orgulhoso, se dermos crédito a seus anônimos redatores? Voltaire, quem possuía uma grande erudição, diz-nos o seguinte a este respeito: "Era Paulo cidadão romano, como ele presume? Se procedia de Tarso, em Cilícia, Tarso não foi colônia romana até cem anos mais tarde! Todos os peritos em história antiga estão de acordo neste ponto. Se era da pequena cidade ou aldeia da Giscala, como acreditou São Jerônimo, esta cidade se achava na Galiléia, é seguro que os galileus não eram cidadãos romanos!..." (Cf. Voltaire, Dicionário Filosófico, voz "Paulo".)
Porque esta deportação, verdadeiro cativeiro localizado, testemunha-a ainda Focio, sábio exegeta do século IX, que foi patriarca de Constantinopla: "Paulo [...] por seus antepassados carnais, tinha como pátria Giscala (atualmente é uma aldeia da Judéia, mas antigamente foi uma pequena cidade) [...] Quando teve lugar a conquista romana, seus pais, igual a maioria dos demais habitantes, foram conduzidos em cautividad ao Tarso". (Cf. Focio, Ad amphilocium, CXVI.)
Observemos, de passagem, que os autores antigos situavam Giscala na Judéia, já que confundiam esta com a Palestina em geral. Em realidade, Giscala se encontrava na alta Galiléia.
Por último, Epífano, refutando a tese dos ebionitas (uma das primeiras seitas cristãs, junto com os nazarenos), quem afirmava que "o homem de Tarso (sic) não era judeu de origem, a não ser filho de partidários", diz-nos que: "O apóstolo Paulo, embora nascido em Tarso, não era em modo algum alheio à raça judia". (Cf. Epífano, Contra Haereses, Panarion, XXX.)
Aqui Epífano chega muito longe, como veremos a seguir. Já o simples fato de reconhecer que tinha nascido em Tarso era fazer dele um judeu da Diáspora.
Sexta questão: Os Atos dos Apóstolos nos dizem que a conversão de Saulo-Paulo teve lugar no caminho que levava de Jerusalém a Damasco: "Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do Senhor, chegou-se ao supremo sacerdote pedindo-lhe carta de recomendação para as sinagogas de Damasco, a fim de que, se ali achava quem seguisse este caminho, homens ou mulheres, tivesse-os atados a Jerusalém."
Quando estava a caminho, aconteceu que, ao aproximar-se de Damasco, viu-se de repente rodeado de uma luz fulgurante, do céu; e ao cair em terra ouviu uma voz que dizia: "Saulo, Saulo, por que me persegue?". Ele respondeu: "Quem é, Senhor?"." (Atos, 9, 1-5.)
Tomemos agora a Confissão de São Cipriano. Cipriano, bispo de Cartago, morto no ano 240 durante a perseguição do Decio (foi decapitado), foi objeto em finais do século IV de um panegírico, redigido em forma de trilogia: Conversão, Confissão, Martírio. Vejamos o que lemos na Confissão: "Então Eusébio disse: "O apóstolo de Cristo chamado Paulo sem dúvida não foi um mago", mas encontrava-se também entre os mais ardentes perseguidores dos escravos de Cristo. Consentiu a morte de Estêvão. Além disso, com ordens escritas do governador, expulsou de seu país e de todo o território da cidade àqueles que, em Damasco, adoravam a Cristo. Mas se converteu e passou a ser seu instrumento de eleição, como ele mesmo confessou: "obtive a misericórdia de Cristo porque eu tinha obrado por ignorância". E nos Atos dos Apóstolos está escrito que muitos daqueles que tinham praticado as más artes, depois de queimar seus livros de magia, entregaram-se a Cristo". (Cf. Cipriano, Confissão, 16.)
Esta nova alusão às artes mágicas é muito importante: voltaremos para ela quando tratarmos o problema de Simão de Samaria e Saulo-Paulo, ambos adversários de Simão-Pedro. Porque não deixa de ser estranho que Cipriano e depois Eusébio tivessem relacionado discretamente Saulo com a magia...
Por outra parte, nos Atos dos Apóstolos lemos que era o supremo sacerdote quem tinha entregue ao Paulo as cartas para sua missão. Na Confissão quem o faz é o governador, e este termo, nos textos do Novo Testamento, é sinônimo de procurador. A diferença é importante, pois permite precisar a autoridade judicial da que dependia realmente Paulo. Nos Atos é o judaísmo. Na Confissão é a dos ocupantes romanos. Como explicar esta diferença? É Paulo o chefe de um policial "paralelo" ao serviço de Roma, ou está ao mando, como estrategista do Templo, dos elementos da tropa levítica?


Sétima questão: Além disso, nos Atos a conversão se produz "no caminho de Damasco". (A expressão permaneceu como sinônimo de conversão em geral.) E na Confissão tem lugar muito depois da operação da polícia montada, dirigida e executada por Paulo.
Agora bem, o texto da citada Confissão foi redigido por volta de 360-370, embora os manuscritos que chegaram até nós são muito posteriores. E esse texto cita os Atos dos Apóstolos, já o vimos; portanto, estes existiam já naquela época. Mas como explicar esta diferença considerável no relato da conversão do Paulo? Foi Paulo objeto dessa extraordinária "audição" antes de penetrar na cidade de Damasco para efetuar ali uma rede de cristãos, ou sua conversão foi posterior a tal operação?
A resposta é fácil. Nos anos 360-370, época da redação da Confissão, existe já uma versão dos Atos dos Apóstolos em mãos das comunidades cristãs. Todavia, é muito diferente da nossa de hoje, já que os escribas anônimos dos séculos IV e V ainda não tinham praticado seus inumeráveis concertos. Quanto à passagem da Confissão de São Cipriano chamado antes, é de supor que devia ser de acordo com o correspondente dos Atos dos Apóstolos da época, já que, ao estar muito difundida e ser muito apreciada nas igrejas orientais, se contradissesse aos Atos, a Confissão não teria sido tolerada pelos bispos destas igrejas.
Oitava questão: Agora chegamos em torno do problema referente à natureza das relações de Paulo com os grandes de seu mundo, e sobretudo ao de sua cidadania romana.
Se era um obscuro judeu, filho de deportados que passaram a ser escravos do Império, e escravo também ele mesmo, ao menos durante um tempo (caso sua ulterior alforria), como lhe reconhecer a qualidade de cidadão romano, qualidade que deixa estupefato ao tribuno das coortes Claudio Lisias, governador da cidadela Antonia, em Jerusalém?: "O tribuno aproximou e disse: "me diga, você é romano?". Ele respondeu: "Sim". Acrescentou o tribuno: "Mas se me custou uma forte soma adquirir esta cidadania!". Paulo replicou: "Eu a possuo de nascimento"". (Atos, 22, 27-28.)
Tendo em conta o que vimos precedentemente (e no momento), aqui alguém mente. Ou é Paulo, ou o escriba anônimo que redigiu essa passagem dos Atos. Porque se Paulo for realmente cidadão romano, compreenderemos com facilidade o que logo seguirá, e esse privilégio se explicará como corolário da verdadeira origem de Paulo. Mas se for simplesmente um obscuro judeu, tudo o que seguirá será falso, já que, nesta hipótese, não há nenhuma plausibilidade nesses episódios da vida de nosso personagem.
Em matéria de herança, a lei romana exigia a busca da condição do defunto: se era homem livre, liberto ou escravo; e nisso demorava-se um período de tempo bastante longo. Calistrato parece dizer que se tratava de um prazo de uns cinco anos. Porque o escravo não herdava de seus progenitores. Paulo, deportado e portanto escravo, filho de deportados escravos, não podia em modo algum herdar de seus pais a qualidade de cidadão romano que eles mesmos não podiam possuir! Este prazo de investigação sobre as origens de um defunto foi reduzido por Tito depois do ano 80 de nossa era. (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Tito, VIII.) Na época de Paulo era ainda muito longo, o que sublinha a importância da conclusão legal em matéria de herança.


*[NOTA: Giscala chama-se atualmente Gush Halav (em árabe: El-Ysch). Está situada uns quatro quilómetros, aproximadamente, da fronteira do Líbano, ao noroeste do lago Tiberíades, em Galiléia.]
2- Os estranhos protetores de Paulo
Na adversidade de nossos melhores amigos encontramos algo que não nos desagrada.
La ROCHEFOUCAULD, Máximes
Nos Atos dos Apóstolos lemos o seguinte: "Havia na igreja de Antióqua profetas e doutores. Entre eles estavam Bernabé e Simão, chamado Niger, Lucio de Cirene, Menahem, irmão de leite do tetrarca Herodes, e Saulo". (Atos, 13, 1.)*
*[Convém fazer uma pregunta: Quem é este Simão, apodado Niger? É o mesmo personagem que o chefe zelote de mesmo nome, citado em Guerra dos judeus de Flavio Josefo e que se viu mesclado nos acontecimentos de Jerusalém no ano 64? É muito provável, pois o cardeal Jean Deniélou, em sua Théologie du Judéo-Christianisme, observa que: "... parece que aqui a palavra galileus é outro termo para designar os zelotes..." (op. cit., p. 84), e "... parece que a Galiléia foi um dos focos principais do zelotismo..." (op. cit., p. 84). Agora bem, todavia no século IV, abaixo de Juliano o Apóstata, o termo galiléia servia em linguagem corrente para designar aos cristãos (JULIO CÉSAR, Cartas). O historiador protestante Osear Cullmann observa em sua obra Dieu et César que "Os galileus mencionados em Lucas, 13, 1, associamos com os zelotes". Não pode estar mais claro!]
Este Menahem é de linha davídica e real. É neto de Judas de Gamala, bisneto de Ezequias, sobrinho de Jesus, neto de Maria, primo do defunto Judas Iscariote, de triste memória. É ele quem levantará o estandarte de uma nova rebelião judia no ano 64, sob o procurador Gessio Floro. Agora bem, nos manuscritos antigos não há nem maiúsculas nem minúsculas, não há pontos e à parte, não há nenhuma pontuação. Nossas divisões em capítulos e em versículos são desconhecidas. Quer dizer, que o redator antigo está obrigado a compor sua frase de tal forma que não subsista nela nenhum equívoco. E a do texto que segue não permite nenhuma dúvida, em seu grego clássico: "Manahn te Hródon toú Tetraárkon súntrophos kaí Saúlos".
Assim, esse Menahem foi "criado com o Herodes, o Tetrarca, e Saulo", o que demonstra, silogismo inatacável tendo em conta a construção mesma do texto grego, que Saulo foi também "criado com Herodes, o Tetrarca, e Menahem".
A primeira vista este fato parece inverossímil. O neto do rebelde que revoltou a Galiléia contra Arquelao, filho e sucessor de Herodes, o Grande, no ano 6 antes de nossa era, criado com o neto e o sobrinho neto deste último...
Entretanto, parecerá menos surpreendente se recordarmos uma tradição, recolhida por Daniel Massé ao longo de suas investigações, que afirma que certas alianças matrimoniais tinham aproximado das famílias davídica e herodiana (infra, P. 68). Além disso, Menahem pôde ter sido criado com Herodes Agripa II e Saulo-bar-Antípater como um refém discreto. Quando o imperador Claudio fez de Herodes Agripa I, no ano 41 de nossa era, o rei da Judéia e de Samaria, "chamou" a seu filho, futuro Herodes Agripa II, a Roma, a seu lado. Discreta maneira de fazer que seu pai permanecesse como dócil vassalo de Roma... E provavelmente isso aconteceu com Menahem. Além disso, economizava uma estrita vigilância por parte das autoridades romanas, sempre dispostas a fazer executar aos "filhos de David" ao mínimo alarme, como conta Eusébio de Cesaréia. (Cf. Eusébio de Cesaréia, História eclesiástica, III, XII, XIX, XXV, XXXII.)
Um último detalhe reforça esta hipótese. Quando Pilatoss se inteirou de que Jesus era galileu de nascimento, mandou-o comparecer ante Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia e Perea (Lucas, 23, 6-12). O procurador esperava que Herodes assumiria a responsabilidade de fazer desaparecer Jesus, posto que este se proclamava "rei dos judeus", e por conseguinte era rival de Herodes Antipas. Recordava, sem dúvida, o rumor público, também referente à Jesus: "Sai e vai-se embora daqui, porque Herodes Antipas quer te matar" (Lucas, 13, 31). Assassinato que seria discreto, evidentemente, e que nada oficial poderia relacionar com a mão deste último.
Mas não aconteceu nada disso. Herodes Antipas contentou-se burlando Jesus, trocou suas roupas, provavelmente já em farrapos depois do combate das Oliveiras e de sua captura, por "uma roupagem reluzente e o remeteu ao Pilatos" (Lucas, 23, 11). E estas roupas, que os historiadores da Igreja estimam que eram brancas, eram as que naquela época revestiam os tribunos militares antes do combate, ou as que levavam em Roma os candidatos que pretendiam subir a uma elevada função pública. Portanto não havia nada de infamante no pensamento de Herodes Antipas; devolvia ao Pilatos um candidato à realeza judia, restituindo-lhe as vestimentas que autentificavam sua pretensão; reconhecia, portanto, o valor desta. Mas ao mesmo tempo recusava condená-lo a morte ou encarcerá-lo; pelo contrário, dava ao Pilatos um testemunho que permitia a este último mandar executar Jesus, em função desta mesma pretensão. Com esta atitude, Herodes Antipas, idumeu de nascimento, quer dizer árabe, aplicava o velho provérbio dessas regiões: "A mão que não pode cortar hoje, beija-a". Hábil astúcia por parte desse beduíno supersticioso, que não queria confrontar a vingança póstuma daquele mago que era a seus olhos Jesus, nem a outra, mais tangível ainda, da população judia fiel aos "filhos de David".


Assim, não há nada extraordinário no fato de que Menahem, neto de Judas da Galiléia e de Maria, sua esposa, e sobrinho de Jesus, fora criado com Herodes Agripa II e Saulo-bar-Antípater. Mas isto descarta definitivamente a lenda de um Saulo judeu de origem e nascido em Tarso.
Porque não deixaria de ser bem estranho que um obscuro judeu passasse sua infância em companhia de pequenos príncipes, e é mais evidente que isto não aconteceu em Tarso, já que é impensável imaginar que os príncipes herodianos dessem a criar seus filhos na Ásia Menor e em Cilícia, que era província de deportação. De fato, os três meninos foram criados no Tiberíades e na Cesaréia Marítima. Entretanto, a presença de Menahem, da linha davídica, entre dois membros da linha herodiana, reforça a tese de Daniel Massé, segundo a qual a quinta esposa de Herodes o Grande, Cleópatra de Jerusalém, era viúva de um "filho de David", e parente de Maria, a mãe de Jesus.
Na Antióquia -nos encontramos agora nos anos 45-46 de nossa era, e Jesus faz uns dez anos que morreu-, Menahem e Saulo, que foram criados juntos, continuam com relação, e tendo em conta o que prepara Menahem, quer dizer a enésima revolução judia, achamo-nos em pleno coração zelote nessa bendita "igreja" da Antióquia, e nossos "profetas" e nossos "doutores" são em realidade agitadores e doutrinários, herdeiros espirituais de Judas de Gamala e de seu associado, o cohén Saddoc.
Recordemos que, nessa quarta seita descrita por Flavio Josefo em suas Antigüidades judaicas (XVIII, 1), a política nacionalista, herdada da tradição macabéia, está estreitamente associada à mística religiosa, herdada da tradição essênia. Os zelotes, não o esqueçamos, estavam constituídos pela fração extremista dos essênios, que depois da ruptura definitiva se agravou ainda mais ao rechaçar grande parte de suas regras mais rígidas: não beber vinho, não admitir os sacrifícios de animais, observar uma limpeza corporal absoluta e, sobretudo, não cometer atos de "banditismo", termo de grande importância em seu juramento de entrada. Coisa da que os zelotes não se privavam absolutamente.
Porém, entendamo-nos bem. Quando citamos ao essenismo como crisol inicial onde se elaborou a doutrina zelote difundida por Judas de Gamala e o cohén Saddoc, não se trata de afirmar que um belo dia centenas de sicários saíram das comunidades essênias, mas somente os doutrinários primitivos. Ignoramos seus nomes. Com toda segurança foram anteriores a nossa era. Entretanto, existe um romantismo sem nenhum fundamento histórico em torno dos essênios, e o público em geral relaciona facilmente com eles algo, geralmente apoiando-se em fontes da mais extremada fantasia.
Millar Burrows, chefe do departamento de Línguas e Literaturas do Oriente Próximo da universidade de Yale, e duas vezes diretor da Escola Norte-americana de Investigações Orientais, em Jerusalém, e A. Dupont-Sommer, catedrático da Sorbone e chefe de estudos na Escola de Estudos Superiores, ambos os especialistas em manuscritos do mar Morto, atêm-se a esta opinião. Flavio Josefo, em sua Guerra dos judeus, fala-nos de sua admiração pelo heroísmo desdobrado pelos essênios na guerra nacional contra os romanos, e os manuscritos do mar Morto atribuídos a tais essênios descrevem rituais de uma estratégia militar onde as técnicas de combate derivam de uma doutrina mística. Vejamos algo que confirma o que Flavio Josefo nos diz no segundo livro de sua Guerra dos judeus, no capítulo XII: "A guerra que sustentamos contra os romanos vê-se de mil maneiras distintas que seu valor é invencível". E o manuscrito eslavo da mesma obra precisa que esses mesmos essênios "quando viajam nunca esquecem de levar consigo suas armas, por causa dos bandidos". Como vemos, não são mansos cordeiros, como certos mistificadores queriam nos fazer acreditar. É mais, em finais do século II (por volta do 190), Hipólito de Roma, no livro IX de seus Philosophumena, diz-nos o seguinte em relação aos essênios: "Os essênios dividem-se em quatro classes, segundo sua antigüidade na seita e seu zelo para a observação da Lei. Alguns se negam a levar consigo dinheiro ou a franquear uma porta de cidade, com o pretexto de que as moedas ou as portas estão adornadas com imagens. Outros, chamados zelotes ou sicários, chegam inclusive a degolar em lugares apartados a todos aqueles que blasfemam da Lei, a menos que estes consintam em fazer-se circuncidar. A maioria dos essênios são muito idosos, muitos alcançam inclusive os cem anos de idade. Esta longevidade atribuem a sua piedade, sua sobriedade e sua continência. Contudo, desafiam valorosamente à morte quando se trata de defender a Lei".
Esta longa passagem demonstra com claridade que uma fração essênia tinha constituído a seita dos zeladores (ou zelotes em grego, e k-Naim em hebreu), mais conhecido pelo nome de sicários ou zelotes, que esta seita levava a cabo um combate armado contra os incircuncisos (romanos e idumeus) e que não vacilava em suprimir a seus adversários degolando-os com a sicca, método do que nos informa Flavio Josefo (cf. Guerra dos judeus, II, V, manuscrito eslavo).
Voltando para Paulo, temos que recordar -pois é muito importante- que foi criado em sua infância com Menahem, neto de Judas da Gamala, sobrinho de Jesus, e que no ano 44, na Antióquia, formava parte do mesmo cenáculo zelote que este. E ambos foram os "irmãos de leite" de Herodes o Tetrarca. Tudo isto é muito estranho para um obscuro judeu, reconheçamo-lo, mas sobretudo descarta a lenda da infância em Tarso, em Cilícia.


Por outra parte, em 52-53 Paulo está em Corinto. Conta uns trinta anos de idade. Os judeus de estrita observância, fartos da propaganda herética e cismática que não cessa de fazer em suas sinagogas, querem encarcerá-lo. Mas, sem esperar que Paulo abrisse a boca para justificar-se, Galión, irmão de Seneca (preceptor e logo conselheiro do Nero César, e deste modo um dos homens mais poderosos do Império), pró-cônsul da província da Acaia e residente nessa mesma cidade de Corinto, rechaça a queixa dos judeus e os faz expulsar do pretorio manu militari, embora logo lhes permite linchar à Sostenes, chefe da sinagoga local, convertido por Paulo à nova forma de messianismo místico (Atos, 18, 12-17).
Afortunado Paulo, pois basta-lhe ser reconhecido pelo pró-cônsul da Acaia, "amigo de César", para ver varrer a seus adversários pelo guarda pró-consular, e isso sem abrir a boca sequer. Afortunado judeu obscuro...
Porque esse Galión, "amicus Caesaris", não é um simples funcionário. Uma inscrição ligeiramente mutilada, descoberta em Delfos em 1905, reproduz uma carta do imperador Claudio dirigida aos habitantes dessa cidade, e datada antes de julho do ano 805 em Roma, quer dizer no ano 52 de nossa era. Ali fala de Junius Gallio, meu amigo, pró-cônsul da Acaia".
Assim, o inesperado protetor de Paulo em Corinto goza, além disso, do título invejado em todo o Império romano: amigo de César. Não é nada mais que a proteção de um "amicus Caesaris"...
Entretanto, embora beneficiário de estranhas e misteriosas proteções, Paulo não terminou com os judeus de estrita observância. No ano 58, em Jerusalém, os levitas de guarda no Templo se apoderam dele, acusando-o de ter profanado o santuário ao ter introduzido nele a um "não judeu", Trófimo de Éfeso (Atos, caps. 21, 22 e 23). A menos que se tratasse dele mesmo, "não judeu" que tinha penetrado imprudentemente em lugares proibidos aos gentis.
Quando se dispunham a lapidá-lo, Claudio Lisias, tribuno das coortes e governador da Antonia, a cidadela vizinha ao Templo, ao inteirar-se do que acontecia foi em pessoa, com "vários centuriões e seus soldados" (portanto várias centúrias de legionários) para deter Paulo e encarcerá-lo. E o tal Paulo se dá a conhecer. Troca à vista. O tribuno Lisias o mandou desatar (mas estava preso?; podemos pô-lo em dúvida), e lhe autorizou a admoestar longamente à enfurecida multidão judia, sob o amparo dos legionários. Logo conduziram-lhe ao interior da Antonia, livre de ataduras e fora de qualquer tipo de calabouço.
Foi então quando seu sobrinho, ao ser informado na cidade de que entre os zelotes se tramava um complô para assassiná-lo, acudiu livremente a advertir a seu tio. "Paulo chamou um dos centuriões e lhe disse: "Conduz este jovem ante o tribuno, porque tem algo a comunicar". O centurião o levou ante o tribuno." (Atos, 23, 16 18.)


Observemos que Paulo recebe com toda liberdade a quem quer, que dá ordens a um centurião, grau equivalente ao de capitão, e que este, docilmente, sem resmungar, executa-as e, na hora do jantar, vai incomodar ao tribuno das coortes, magistrado militar com classe de cônsul. Os veteranos (membros de uma coorte em uma legião romana) não deviam dar crédito a seus olhos.
E aqui temos ao sobrinho de Paulo pondo ao tribuno Lisias à corrente do complô tramado contra a vida de seu tio. O tribuno não se surpreende nem por um instante da audácia de Paulo, e dá ao sobrinho a ordem formal de observar um segredo absoluto. Continuemos com a leitura dos Atos: "Logo chamou dois de seus centuriões e lhes disse:
"Tenham preparados para a terceira hora da noite duzentos soldados, setenta cavaleiros e duzentos arqueiros, e preparem cavalgaduras para Paulo, para que seja conduzido são e salvo ante o governador Félix, na Cesaréia"." (Atos, 23, 23-24).

Jerusalém em princípios de nossa era
Cesaréia, cidade proibida para os judeus...


Assim, o tribuno das coortes, tão dócil como seu centurião ante Paulo e seu sobrinho, adota todas as medidas necessárias para proteger a preciosa vida de um obscuro judeu, e para isso não vacila em lhe proporcionar o equivalente de uma escolta quase real: 200 veteranos das coortes, 200 arqueiros e 70 legionários a cavalo, quer dizer 470 soldados, a fim de pô-lo sob a máxima proteção da autoridade ocupante, a de Antonius Félix, procurador romano da Judéia.
Este homem é o afortunado marido da Drusila, princesa Iduméia, bisneta de Herodes, o Grande, irmã do rei Agripa e, com sua irmã Berenice, uma das mais formosas mulheres da aristocracia daquela época. E a fim de assegurar à Paulo uma viagem sem tropeços, toma a precaução de levar para ele vários cavalos. Afortunado judeu obscuro! E não seguirá à coluna conforme é habitual: a pé, com as mãos atadas à cauda de um cavalo...


Aqui volta a expor um enigma. Porque, para ir de Jerusalém a Cesaréia Marítima, os 70 legionários a cavalo não dispõem de um arreio cada um, seu cavalo de sempre. Então por que o tribuno Lisias manda preparar para Paulo vários cavalos? Voltemos para texto dos Atos dos Apóstolos: "Ao cabo destes dias, feitos nossos preparativos de viagem, subimos a Jerusalém. Acompanharam-nos alguns discípulos da Cesaréia, que conduziram a casa de um tal Mnason, certo cipriota antigo discípulo, aonde nos alojamos" (Atos, 21, 15-16).
Primeira constatação, Saulo-Paulo, que se diz que passou sua juventude "aos pés de Gamaliel", o supremo sacerdote, e em Jerusalém não conhece ninguém ali. E têm que ser um dos discípulos da Cesaréia quem se ocupe de hospedá-lo, a ele e a seu séquito.
Segunda constatação, os manuscritos gregos originais nos dizem literalmente: "um antigo discípulo". Antigo? Mas de que escola e de que corrente? Provavelmente um helenista que antigamente se encontrava na Antioquia e que tinha abandonado Jerusalém por causa das perseguições produzidas depois da morte de Estêvão (cf. Atos, 11, 19-20).
Terceira constatação, os cavalos previstos exclusivamente para Paulo destinam-se a levar seus equipamentos. Colocar-lhes-ão selas, com um cesto em cada flanco; e os famosos livros e pergaminhos, sem omitir o misterioso manto sobre o qual voltaremos a falar, citados na Segunda Epístola ao Timóteo (4, 13), com tudo o que está acostumado a levar consigo um viajante, tudo isso seguirá Paulo até sua nova residência. Quanta solicitude por parte de um tribuno das coortes para com um judeu qualquer, terá que ver! Nem que fosse cidadão romano, pois destes já havia naquela época milhões, dispersos por todo o Império. Resulta difícil imaginar ao tribuno das coortes, magistrado com categoria de cônsul, prodigalizando-se desta guisa com cada um deles... Afinal de contas a Antonia não era uma agência de viagens, aberta a todo indivíduo do Império que argüira sua qualidade de civis romanus.
A menos que, tendo em conta o que o leitor sem dúvida começa a suspeitar, Claudio Lisias aplicasse ali já, antecipadamente, o famoso refrão da Restauração: "Onde pode um encontrar-se melhor que no seio de sua própria família?". (Cf. Marmontel, Lucilo.)
O pequeno exército que escolta Paulo sairá, pois, de noite, à terceira hora (ou seja, às nove da noite), da Cidade Santa, e empreenderá ordenadamente o caminho até o Antipatrix, cidade fundada antigamente por Herodes, o Grande, situada a uns sessenta quilômetros de Jerusalém, e a uns quarenta e seis da Cesaréia. Ali fará alto, e à manhã seguinte a tropa da pé retornará a Jerusalém, deixando que os setenta legionários à cavalo escoltem Paulo até Cesaréia Marítima.
Aqui temos, pois, nosso Paulo em lugar seguro, junto ao procurador Antonio Félix. Este era um liberto, irmão de outro liberto célebre, Palante, favorito de Agripina e ministro de Nero César. Este Félix, ambicioso, brutal e dissoluto, gozava, conforme nos diz Tácito, "de um poder quase principesco com uma alma de escravo". Era de fato, com todo seu horror, o protótipo do arrivista.
Na Cesaréia não encerram Paulo em um calabouço, claro está, mas sim alojam-no "em pretorio de Herodes", sob o amparo de um guarda. (O palácio construído antigamente pelo Herodes o Grande se converteu, conforme era costume entre os romanos, na residência oficial do procurador; por isso recebia o nome de pretorio, lugar onde se repartia a justiça.)
Cinco dias mais tarde, o supremo sacerdote Ananías foi com alguns sanedritas e um advogado romano, um tal Tértulo, a Cesaréia, e compareceu ante Félix. Este mandou chamar com toda cortesia Paulo, e lhe cedeu a palavra, depois das acusações que formulasse contra ele Tértulo. Este último tampouco andava pelos ramos, pois segundo ele:
"Achamos que este homem é uma peste, que excita a rebelião a todos os judeus do mundo inteiro, que é além disso chefe principal da seita dos nazarenos!" (Atos, 24, 5).
Como vemos, no ano 58 não se falava já de Simão-Pedro ou de Jacobo-Santiago como de chefes do messianismo. E com razão, já que Tibério Alexandre, procurador de Roma, tinha-os feito crucificar no ano 47 em Jerusalém, "como filhos de Judas da Gamala".
*[ Cf. FLAVIO JOSEFO, Antigüidades judaicas, XX, v, 2.]
Paulo respondeu durante longo tempo à acusação de Tértulo, e Félix, habilmente, postergou sua decisão a uma data posterior, sem determiná-la concretamente. Logo: "Mandou ao centurião que lhe custodiasse, embora lhe deixando certa liberdade e permitindo que os seus lhe assistissem". (Atos, 24, 22-23.)


Entretanto, quem eram os seus?
Alguns dias mais tarde, Félix vai visitar Paulo, acompanhado de sua esposa Drusila, e ali Paulo terá toda a margem que goste de discutir, de maneira muito mundana, tanto com ela como com seu marido, sobre os temas que lhe interessavam. E esse procurador, escandalosamente enriquecido, tanto pelas exações cometidas no uso de suas funções como por seu rico e adulador matrimônio, esse procurador ambicioso adulará Paulo durante dois anos, conservando-o sob sua proteção, já que: "Esperava que Paulo lhe desse dinheiro. Por isso lhe mandava chamar muitas vezes para conversar com ele" (Atos, 24, 26.) De maneira que esse "obscuro judeu" é bastante rico por si mesmo, por seus segredos ou por sua família para fazer conceber esperanças em um tímido procurador! Coisa que resulta simplesmente incrível quando a gente pensa nos costumes da época e nos métodos dos procuradores romanos. Caso se tratasse de um resgate, a permanência no fundo de um tenebroso calabouço, encadeado aos muros, com pão e água reduzidos ao mais estrito mínimo, teria sido uma medida mais que suficiente para abrandar ao detido mais avaro. Mas não se produz nada disso. Antonio Félix, que tem o direito de vida ou morte mais total por mérito de suas funções, está transbordante de considerações para com esse misterioso agitador*.
*[É bem possível que Félix, conhecia Saulo-Paulo como mago (como logo veremos), supôs que era também alquimista. Era o normal! E a capital da alquimia antiga, Alexandria do Egito, estava acerca de Judéia]
Passaram dois anos, que cobriram o fim da procura de Félix, e este é substituído por Pórcio Festo, no ano 60. Esperando então que desaparecesse a proteção de que gozava Paulo, e confiando em enganar facilmente ao novo procurador, os judeus de Jerusalém pedem a este que faça chegar Paulo à essa cidade para que seja por fim julgado. Como se vê, os meses passaram, mas o Sanedrim não esqueceu a importância do assunto. E conforme nos dizem os Atos (25, 3), "preparavam uma emboscada para lhe matar no caminho".
Pelo visto Pórcio Festo foi posto à corrente por seu predecessor, antes da partida deste, já que suspeita o que preparam os judeus, e lhes declara que Paulo permanecerá na Cesaréia, e que só escutará alguns dos principais dentre eles se tiverem algo que dizer sobre o particular. E assim se faz. É então quando Paulo, que evidentemente não ignora que vão soltá-lo sem dificuldades, mas que desse modo submeter-se-á à ameaça de uma emboscada imprevisível, tem idéia de conseguir que lhe autorizem ir à Roma, às custas de Roma e sob a proteção de Roma.
Para isso basta-lhe com o "Cesare apello", quer dizer solicitando que lhe enviem "ante o César". Aqui a vitória é dupla.
Com efeito, ao declinar Pórcio Festo sua competência, Paulo já não podia escapar ao processo ante o Sanedrim se não era reclamando o privilégio, reservado exclusivamente aos cidadãos romanos, de poder fazer-se julgar, em causa criminal, pelo tribunal imperial com sede em Roma.
E isto nos demonstra dois fatos notáveis:
a) nosso "obscuro judeu" é realmente cidadão romano, o qual sublinha tudo o que estabelecemos anteriormente contra a deportação ao Tarso e seu nascimento de pais judeus, originários da Giscala, já que declarar tudo isto em falso implicava a morte por decapitação;
b) trata-se, efetivamente, de um caso de agitação política, oculta sob um aspecto externamente religioso, como sublinhavam os membros do Sanedrim, já que a lei Julia qualificava de "crime majestatis" tudo o que constituíra, de perto ou de longe, "um atentado contra o povo romano ou a ordem pública", e declarava culpado deste crime a "quem quer que, com a ajuda de homens armados, conspire contra a república, ou pelo qual nasçam rebeliões".


Por outra parte, se Paulo era de fato um "não judeu" de origem (e o demonstraremos logo), se foi circunciso de adulto, podia ser açoitado segundo os termos das leis romanas em caso de que esta circuncisão tivesse sido efetuada a pedido dela, depois de ter sido admitido à cidadania romana.
As leis do Império não proibiam um cidadão romano sua conversão ao judaísmo, mas não aceitavam todas suas conseqüências. Se um partidário se achava frente a uma das obrigações das que os judeus de raça estavam dispensados (como o serviço militar, por exemplo), não estava coberto pelo privilégio judaico. Tampouco podia recusar participar do culto aos deuses do Império sem correr o risco de ser acusado de ateísmo. E por este motivo uma mulher podia sempre sofrer a acusação de impiedade para as divindades de sua casa original. Sob o Tibério César, uma tal Fulvia foi julgada deste delito por seu marido Taciturno (cf. Jean Juster, Les Juifs dans l'Empire romain, leur condition juridique, économique et socíale). Sob o Nero, Pomponia Graecina foi também submetida a um tribunal doméstico, acusada de superstitio externa, superstição estrangeira (cf. Tácito, Anais, XIII, 32). Por último, uma severa lei, a Lex Cornelia de sicariis et veneficis, castigava a castração, e sempre se podia identificar a circuncisão com uma variedade de castração, tendo em conta suas repercussões fisiológicas no campo sexual. E assim se fez sob o reinado do Adriano (cf. Espartiano, História do imperador Adriano, XIV, 2).
Sem lugar a dúvidas. Paulo não ignorava nada de tudo isto, e em caso necessário sempre podia haver alguém que lhe delatasse ante a autoridade ocupante. Agora bem, em Roma, ante o tribunal imperial, Paulo sabe que gozará do influente amparo da Séneca, irmão do pró-cônsul Galión, quem tão misteriosamente o protegeu em Corinto. E põe todo seu interesse em ser conduzido à capital do Império. Quem, naquela época, não acariciaria semelhante sonho?
Sem dúvida Paulo dispõe dos meios materiais. Se o procurador Antonio Félix esperou longo tempo a que tal Paulo lhe recompensasse economicamente por seus favores, é que sabia que nosso homem estava em condições de poder fazê-lo.
Mas oficialmente, desde sua circuncisão (e logo veremos em que ocasião teve lugar). Paulo é judeu. E isso não pode negá-lo, já que desde aquele momento leva impressa a marca em sua carne.
Agora bem, no ano 19 de nossa era Tibério expulsou os judeus da Itália, excetuando tão somente àqueles que abjurassem em um prazo de tempo determinado. (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII, III, 5. Tácito, Anais, II, 85. Suetonio, Vida dos doze Césares: Tibério, 36.)
Depois o imperador Claudio tinha reiterado, por sua vez, a mesma ordem de expulsão no ano 50. Paulo Orosio, historiador eclesiástico do século IV, diz-nos o seguinte: "Nesse mesmo ano, nono de Claudio, Flavio Josefo conta que os judeus foram expulsos de Roma, por inspiração do ministro Sejuán". (Paulo Orosio, História adversus pagãs, Claudius Cesar.) Não obstante, aconselhamos ao leitor que não procure este episódio do nono ano de reinado do Claudio no Flavio Josefo, já que toda uma parte de suas Antigüidades judaicas referente ao reinado de tal imperador foi censurada pelos monges copistas. Este fato o encontrará unicamente no Suetonio, Vida dos doze Césares: Claudio, XXV, embora sem assinalar a época exata: "Como os judeus se revoltavam continuamente, instigados por um tal Chrestos, expulsou-os de Roma".
Trata-se, com toda evidência, de judeus messianistas que passaram ao cristianismo, e esse Chrestos é, de fato, o Christos, a quem Suetonio crê ainda vivo, confundindo ressurreição e vida normal. E é que, efetivamente, os escritores profanos dos dois primeiros séculos de nossa era escreviam com regularidade Chrestus e Chrestiani, como observa acertadamente Henri Ailloud em sua tradução de Suetonio, em lugar de Christus e Christiani.
Por conseguinte, na Itália, e mais concretamente em Roma, os únicos judeus que podem residir são os que se acham em estado de escravidão. A eleição do "Cesare apello" é, por conseguinte, um golpe de mão magistral por parte de Saulo-Paulo.
Por último, e como coroação a essas relações e esses aduladores amparos, resulta que depois de Félix e Drusila, acodem a Cesaréia Marítima o rei Herodes Agripa II e a princesa Berenice, sua irmã, quem, depois de ter enviuvado de Herodes de Caléis, vive incestuosamente com ele. Ambos são irmãos de Drusila e, portanto, cunhados do procurador Félix. As duas mulheres são célebres por sua beleza. A família está, pois, completa, e podemos supor que foi Paulo o motivo desta reunião. Curiosidade? Indubitavelmente, mas também há outro motivo, que logo conheceremos. O tom das conversações é bastante amistoso, e a chegada do casal real causou sensação: "Assim no dia seguinte chegaram Agripa e Berenice com grande pompa, e entraram na sala da audiência, rodeados dos tribunos e dos personagens de mais relevo da cidade". (Atos, 25, 23.)
Esses tribunos eram cinco, e cada um deles estava ao mando de uma das cinco coortes de veteranos estabelecidos em Cesaréia. Quanto interesse e quanta preocupação por esse suposto "tarsiota", antigo deportado, antigo escravo do Império!
Nota: Sobre a importância do número de cidadãos romanos no Império, assinalemos que os veteranos legionários, que tinham abandonado sua coorte para retirar-se, recebiam um título com o reconhecimento do povo romano, título que recebia o nome de honesta missio. Implicava um certo número de privilégios diversos, entre os quais se achava o da cidadania romana, se o veterano não a possuía já com antecedência, adquirida por algum ato de guerra. Quer dizer, que a qualidade de civis romanus, com a que se arma tanto exagero em torno de Saulo-Paulo, não era em si nada extraordinário.


3 - A viagem à Roma
Roma [...] Lugar onde conflui e encontra numerosa clientela tudo que de espantoso e vergonhoso há no mundo.
TÁCITO, Anais, XV, XLIV
A viagem de Paulo à Roma se efetuou sob os melhores auspícios, como todo o anterior. Foi crédulo ao centurião Julio, da coorte da 7.a Augusta, legião composta por mercenários sírios e a que, por esse motivo, denominava-se Legião síria. Com eles se embarcou Aristarco, um macedônio nascido na Tessalonica que devia ser já um colaborador de Paulo, dado que mais tarde será seu companheiro de cativeiro. E também havia outros prisioneiros, estes autênticos, que eram ou guerrilheiros zelotes, ou criminosos de direito comum, destinados aos cruéis jogos circenses ou a suas feras.
Assim, a Navem Adramyttium levantou âncoras e abandonou Cesaréia em princípios do outono do ano 60, para fazer escala à manhã seguinte em Sidon, Fenícia. O centurião Julio, evidentemente cumprindo ordens recebidas antes, deixou Paulo em liberdade para que fosse visitar "seus amigos e receber seus bons ofícios". Como vemos, os favores continuam.
Economizaremos ao leitor as peripécias que acompanharam à viagem de Paulo, tendo em conta de que a navegação marítima não era coisa fácil naquela época. Poderá encontrá-las nos Atos dos Apóstolos, de 27, 1, a 28, 16.


Por fim temos Paulo desembarcado em Puzolo, no golfo de Nápoles. E os gracejos dos escribas anônimos dos séculos IV e V vão continuar. Julgue-se: "Onde encontramos irmãos, que nos rogaram que permanecêssemos com eles sete dias. E assim foi como chegamos a Roma. Os irmãos desta cidade, informados de nossa chegada, vieram a nós até o Foro de Apio e às Três Tavernas. Paulo, ao vê-los, deu graças a Deus e recobrou ânimo. Quando entramos em Roma, permitiram ao Paulo morar em casa própria, com o soldado que lhe custodiava". (Atos, 28, 13-16.)
Estamos, pois, obrigados a admitir que em Puzolo o centurião Julio foi convidado pelos irmãos, e que ele, oficial romano encarregado de uma missão, aceitou permanecer uma semana inteira em um lugar infestado de judeus messianistas, e por conseguinte suspeitos. E por que prodígio se encontravam na Itália? Os decretos de Tibério e de Claudio não foram derrogados em nenhum momento. De maneira que se tratava de judeus escravos. E estão eles em condições de oferecer convites para uma semana? E pode um legionário romano arriscar-se em semelhante ambiente? Incrível!
A seguir outros judeus, desta vez romanos, vêm ao encontro de Paulo, e nada menos que até o Foro de Apio, na via Apia, quer dizer a 64 quilômetros de Roma. Outros vão só até Três Tavernas, que está a 49 quilômetros da capital. Ida e volta representam perto de 134 quilômetros para os primeiros, e perto de 100 quilômetros para os segundos. Uma grande honra para um obscuro judeu. Além disso, esses judeus escravos dispõem de muita liberdade. Continuemos formulando uma pergunta: como podem existir já "irmãos", quer dizer cristãos, em Roma, se alguns versículos mais tarde nos Atos dos Apóstolos nos dizem o contrário?: "Ao cabo de três dias convocou aos judeus principais. Quando reunidos disse-lhes: Irmãos, sem ter feito nada contra nosso povo nem contra os costumes de nossos pais, fui detento em Jerusalém e entregue aos romanos. Depois de me interrogarem, estes quiseram me pôr em liberdade porque não havia nada contra mim que merecesse a morte. Mas como os judeus se opunham, vi-me obrigado a apelar ao César, embora sem querer acusar de nada a minha nação. Por isso quis lhes ver e lhes falar, pois só pela esperança de Israel levo estas cadeias. Eles lhe responderam: Nós não recebemos da Judéia nenhuma carta a seu respeito, nem nenhum dos irmãos que tenham chegado aqui nos comunicou ou falou nada de mau. Mas queríamos ouvir de sua boca o que você pensa, pois a respeito dessa seita nos é conhecido que em todas partes a contradiz". (Atos, 28, 17-22.)


Expomos já um certo número de observações, muito embaraçosas para nossos anônimos redatores dos Atos:
a) Paulo, prisioneiro, tem a possibilidade e a autoridade suficiente para permitir-se convocar aos judeus mais notáveis. É surpreendente;
b) chama-os irmãos, igual àqueles que foram ao seu encontro em Três Tavernas e no Foro de Apio; portanto não estabelece diferenças entre eles, o que prova que são os mesmos;
c) não fala de uma religião nova a esses notáveis, mas sim de uma esperança, própria de Israel. E que esperança, a não ser a do fim do jugo romano? Esta esperança é o imóvel messianismo;
d) Paulo não leva nenhum tipo de cadeias, está simplesmente obrigado, quando se desagradar à cidade, a levar uma cadeia curta, que une seu pulso direito ao pulso esquerdo do legionário que o custodia, enquanto dura tal deslocamento. Em sua casa, em sua residência romana, está livre de ataduras. Esse é o costume na "custódia militaris", espécie de cativeiro sob palavra e honorífico;
e) os irmãos "chegados" a Roma e dos que falam os judeus notáveis não são os cristãos, já que imediatamente depois os citados notáveis declaram não saber nada do novo partido ao qual pertence Paulo, e só sabem que em todas partes encontra oposição. E esses irmãos são forçosamente judeus, já que estão em contato imediato com os outros. Portanto não há cristãos em Roma nesse momento, ao menos no sentido que damos agora a tal termo, à parte os que encontraremos no palácio de Salomé II, rainha da Armênia;
f) por último, não se trata de uma religião nova, mas sim de um partido. São Jerônimo, em seu Vulgata latina, utiliza o termo seita, que significa tanto uma facção política como um partido ou uma seita religiosa. Os manuscritos gregos mais antigos utilizam a palavra airesis, que significa deste modo seita, partido, facção, com o sentido de heresia (que se desprende dela), e isso em todos os campos, tanto político como religioso. Por conseguinte não é muito fácil precisar o que nesse debate se subentende por tal termo.
Ao chegar em Puzolo, por Três Tavernas, Paulo passou por Velletri e atravessar os Montes Albanos, do alto dos quais contemplou pela primeira vez Roma, capital do Império romano.
Ao descender dos Montes Albanos pela via Apia, penetrou na cidade pela Porta Capena, situada então aproximadamente na convocação da atual Porta de São Sebastião. Segundo um pequeno número de manuscritos, o centurião Julio entregou Paulo e aos outros prisioneiros ao oficial que devia recebê-los. Este homem devia ser o praefectus castrorum, que provavelmente estava ao mando do acampamento dos milites peregrini ou castra peregrinorum, o que nós chamaríamos "acampamento das tropas de passagem" em linguagem militar moderna.
Imediatamente depois foi transferido ao Castro pretorio, acampamento principal dos pretorianos, não longe da Via Nomentana, e por último foi entregue ao oficial que representava ao prefeito do pretorio. E ali encontramos ainda uma nova surpresa.
Este cargo ocupava então Afranio Burro, e, Oh azar! Casualmente era grande amigo de Lucio Anneo Séneca e, com este, conselheiro de Nero César, depois de ter sido ambos seus preceptores. O leitor convirá conosco que o "azar" faz bem as coisas. Afranio Burro era estóico, e portanto admirador do sistema filosófico baseado em Zenón de Citium, a finais do século IV antes de nossa era. E Séneca era também estóico.
Pois bem, o elogium, quer dizer o relatório de Pórcio Festo sobre esse civis romanus que era Paulo, não podia ser mais favorável; o comportamento do procurador, do rei Agripa e da princesa Berenice para com nosso homem faziam-no prever. As conclusões verbais destes personagens também. Festo, interrompendo Paulo, diz-lhe amigavelmente: "Você delira, Paulo! As muitas letras lhe tornaram louco", e o rei Agripa brinca com ele, e declara: "Pouco mais, e me persuade de que me faça cristão" (Atos, 26, 24-28).
Ambos lamentam sinceramente que Paulo faça o "Cesare apello", já que, conforme declara o rei Agripa ao Festo: "Poderia colocá-lo em liberdade, se não tivesse apelado ao César". (Atos, 26, 32.) Não suspeitam que Paulo tem seu plano, bem estabelecido, longo tempo maturado, e que aponta em realidade a conseguir chegar à capital do Império, se considerarmos o que sabe dos projetos de Menahem, desde que tiveram lugar seus conciliábulos na Antioquia, e que não ignora que se fixou já uma data para sua realização. Coisa que logo constataremos, ao resplendor das chamas de Roma...
Voltando para elogium de Pórcio Festo, tal relatório se perdeu no naufrágio que sofreram durante a travessia, mar adentro, frente às costas de Malte. Mas é um detalhe que carece de importância, já que o centurião Julio, ao ver-se privado de tão capital documento, o substituiria facilmente pela exposição detalhada das instruções recebidas da boca do procurador Festo antes de sua partida; e a benevolência que estava encarregado de manifestar para com seu prisioneiro em todas as circunstâncias advogava inequivocamente em favor deste último. Tanto mais que Paulo, em sua Epístola aos Romanos, já tinha tomado por sua conta a dianteira. Julgue-se!
Quando estava em Corinto, onde como se viu recebeu amparo -e com quanta prontidão- do pró-cônsul Galión durante o inverno de 51-53, vários anos antes desta data já tinha redigido e expedido a famosa carta aos "irmãos" de Roma (o que prova que já tinha disposto seu plano, bem maturado). Agora já sabe a que porta chamar, sabe de antemão que proteções eventuais lhe esperam ali. Basta lendo atentamente as saudações finais: "Saúdem os da casa de Aristóbulo, saúdem o Herodião, meu parente. Saúdem os da casa de Narciso, que estão no Senhor." (Cf. Paulo, Epístola aos Romanos, 16, 10-12.)


Quais são os da "casa do Aristóbulo"? Quem é "Herodião, meu parente"? Quais são os "da casa de Narciso"? Em definitivo, protetores tão poderosos como os que já tinha encontrado em Jerusalém e na Cesaréia. E é evidente que em Corinto, Galión, irmão da Séneca, tinha-lhe orientado sobre o interesse que tinha para ele que fora a Roma; e ao chegar ali, Paulo é recebido, sempre por mediação de Galión, pelo Afranio Burro, prefeito do pretorio, amigo da Séneca e, como dissemos, conselheiro e ex-preceptor de Nero César, como aquele. É óbvio que os crentes verão nisso um milagre a mais, a mão da Providência, mas o historiador lúcido o que vê é simplesmente um plano bem organizado.
Com efeito, "os da casa de Aristóbulo" são os servidores de Aristóbulo III, favorito de Nero, que no ano 54 recebeu deste o reino da Pequena Armênia; logo, no ano 60, uma parte da Grande Armênia, e por último, no 70, receberá o reino de Caléis. É o segundo marido de Salomé II, neta de Herodes, o Grande, e amiga de Jesus, a quem ajudou com seus denários na campanha anti-romana, e de quem o Evangelho conforme Tomás relata estas assombrosas palavras: "Salomé disse: "E você quem é, homem? De quem saiu para meter-se em minha cama e comer em minha mesa?" E Jesus disse-lhe: "Eu sou aquele que se produziu daquele que é seu igual. Deram-me o que é de meu Pai". E Salomé respondeu: "Sou sua discípula!".". (Evangelho de Tomás, LXV, manuscrito copto do século IV, descoberto em Khenoboskion, no Alto Egito, em 1947, tradução de Jean Doure, Pión, Paris, 1959.) [Cf. Jesús o el secreto mortal de los templarios, p. 295.]
Desse novo matrimônio, Salomé II e Aristóbulo III tiveram três filhos, três varões: Herodes, Agripa e Aristóbulo. Herodião (o "pequeno Herodes") é seu filho maior. E se Paulo (ainda Saulo) declara-se parente dele, é que o é deste modo de Aristóbulo III e de Salomé II. E efetivamente, como logo veremos, eram primos! De maneira que estamos muito longe do "obscuro judeu", o leitor terá que reconhecê-lo.
Os da "casa de Narciso" são aqueles que, ingressaram à nova ideologia, são libertos ou escravos na mansão principal de um dos favoritos de Claudio César. Esse Narciso, Claudii Narcissus libertas em seu nome latino, quer dizer "Claudio Narciso, o liberto" (tomava o nome do antigo amo que os escravisara), à morte de Claudio César e ao advento de Nero, no ano 54, caiu em total desgraça, coisa que foi fatal: "Sem mais demora. Narciso, liberto de Claudio, cujas questões com Agripina já relatei, é empurrado à morte em um encarceramento rigoroso e sujeito a violência, com grande pesar de Nero, cujos vícios, ainda secretos, acomodavam-se maravilhosamente a sua avareza e sua prodigalidade". (Tácito, Anais, XIII, 1.)


Com grande rapidez Paulo contará com filiados no próprio palácio de Nero, e estes se acharão no ano 64, durante o incêndio de Roma, em situação de sustentar a fábula de que Nero compunha um poema sobre o incêndio de Tróia enquanto contemplava as chamas que devoravam seu capital. Porque esta fábula será a única explicação dada pelos verdadeiros incendiários, como logo veremos. Em realidade Nero encontrava-se em Antium, sua cidade natal, quando se produziu o incêndio, e a notícia não lhe chegou até o quarto dia; então cobriu em poucas horas os 50 Km que separam essa cidade de Roma, queimando etapas. Imediatamente adotou todas as medidas para ajudar aos sinistrados, fazendo distribuir mantimentos e lhes abrindo as portas de todas suas mansões e jardins.
Voltando para os afiliados (íamos dizer aos cúmplices) que rapidamente terá Paulo no palácio de Nero César, citaremos simplesmente a Epístola aos Filipenses, redigida no ano 63, que precedeu ao incêndio de Roma: "Eles saúdam os irmãos que estão comigo. Eles saúdam todos os Santos, e principalmente os da casa de César". (Paulo, Filipenses, 4, 22.)
Mas não pense que nosso homem só tinha contatos com escravos ou libertos de classe inferior. Já vimos que em Corinto se beneficiou instantaneamente, sem ter aberto a boca sequer, do amparo dos pretorianos do governador da Acaia, Galión. Vimos como o acolhiam em Roma Afranio Burro, prefeito do pretorio, amigo de Séneca, de quem era irmão Galión. Não duvidaremos em afirmar que, em Roma, estaria efetivamente em contato com o próprio Séneca. Continua sendo uma prova bastante válida destas relações a correspondência apócrifa que lhes atribui. Conservam-se quatorze cartas, oito delas de Séneca ao Paulo, e seis de Paulo a Séneca. São apócrifas, onde se constata por sua composição, sua trivialidade, e também pelo fato de que o falsificador imaginou que as cartas dos dois correspondentes se achavam milagrosamente, reunidas. Pois bem, na realidade cotidiana as duas partes de uma correspondência, envios e respostas, estão sempre separadas, ou inclusive dispersas, a causa do próprio afastamento de seus recíprocos destinatários.
De todo modo, a existência de uma correspondência apócrifa dá para aceitar que existia uma correspondência autêntica. Que esta última se perdesse ou fosse destruída, que as cartas de Paulo à Séneca fossem confiscadas durante o processo deste último, envolto na conspiração do Pisón no ano 66 (Caio Calpurnio Pisón, quem conspirou contra Nero e morreu no ano 65), é um fato plausível, ou inclusive provável. Do mesmo modo, que as de Séneca ao Paulo foram confiscadas quando este foi detido em Troas, à entrada dos Dardanelos, no ano 66, ou que resultassem destruídas durante o incêndio de Roma, no 64, é também outro fato plausível.
De qualquer maneira, não pode esquecer-se que São Jerônimo faz alusão a uma correspondência entre esses dois homens, e que a considera autêntica. Se se tratava ou não do mesmo lote de cartas é um mistério que não podemos esclarecer no estado atual de nossa documentação.
Vejamos o que diz São Jerônimo no ano 362: "Lucius Annaeus Séneca [...] Eu não o situaria na lista dos autores cristãos se não incitassem a isso essas cartas, lidas por tão grande número de gente, de Paulo à Séneca, e reciprocamente. Nessas cartas, tal mestre de Nero, o homem mais poderoso de seu tempo, declara que desejaria ocupar entre a sua a classe que ocupa Paulo entre os cristãos. Foi condenado a morte por Nero dois anos antes de que Pedro e Paulo recebessem a coroa do martírio". (Cf. Jerônimo, De viris illustribus XII...)
O mesmo temos em São Agustín. Em uma carta escrita no ano 414, quer dizer vinte anos depois de São Jerônimo, ao Macedônios, declara: "Com razão Séneca, que viveu em tempos dos apóstolos, e de quem inclusive se lêem as cartas que dirigiu a São Paulo, exclama: Esse, que odeia a todo mundo, que odeia aos malvados...".
Lipsius, quando cita ao pseudo-Linus, confirma a sua vez a existência de uma correspondência entre Paulo e Séneca: "O próprio preceptor do imperador, ao ver em Paulo uma ciência divina, trava com ele uma amizade tão forte que não podia passar sem sua conversação. De maneira que, quando não tinha a possibilidade de conversar com ele cara a cara, enviava-lhe e recebia freqüentes cartas". (Cf. Lipsius, Acta apostolorum apocrypha, tomo I.)
Concluamos, pois, que existiu uma correspondência entre Paulo e Séneca, mas que não chegou até nós. E se Paulo contava com filiados dentro da "casa de César", devia ir ali com freqüência, a fim de conversar com eles, e o amparo de Galión, assim como de Afranio Burro, implicam a de Séneca, é evidente. Lipsius não inventa nada.
E agora podemos abordar a última questão: Quem era Paulo em realidade? A resposta não é singela, embora da mais surpreendente.
Ao começo deste estudo sobre "o homem de Tarso", aplicamo-lhe o qualificativo de "tricéfalo". E com efeito, os escribas dos séculos IV e V amalgamaram palavras, fatos e acontecimentos correspondentes à três existências distintas, à três personagens completamente estranhos uns aos outros.


Se o "príncipe dos Apóstolos", Simão-Pedro, não pôs jamais os pés em Roma, se não morreu ali com Paulo durante a primeira perseguição contra o cristianismo, não obstante é inegável que existiu. E sua crucificação em Jerusalém no ano 47, junto com seu irmão Jacobo-Santiago, em sua qualidade de "filhos de Judas da Gamala", por ordem de Tibério Alexandre, procurador da Judéia, prova-o sobradamente. [Cf. Jesús o el secreto mortal de los templarios, pp. 88-89.]
Não podemos dizer o mesmo de Paulo, salvo se se busca, no referente a seu fim terrestre, o dos três personagens que o compõem. E não é fácil, reconheçamo-lo. É bastante singelo demonstrar esta "composição" última, ao menos no que diz respeito à dois de seus "componentes". E para o terceiro, aí está a História.
4- Um príncipe herodiano chamado Shaul
Afortunado aquele que não lhes conhece apenas, e mais afortunado aquele que não tem nada que ver!
VOITURE, Poésies, os príncipes
Já o vimos, estamos forçados a rechaçar a cidade de Tarso, por não ter desempenhado nenhum papel na vida de nosso personagem. Sabemos que fugiu de Damasco de noite, em um cesto grande (Atos, 9, 25). Mas Paulo não responsabiliza por isso os judeus, ele mesmo os descarta: "Em Damasco, o governador do rei Aretas pôs guardas na cidade dos damascenos para me prender. Mas desceram-me por uma janela, em uma cesta, muralha abaixo, e assim escapei de suas mãos". (Paulo, II Coríntios, 11, 32.)
Nessa época Damasco pertencia, em efeito, ao Aretas IV, rei da Arábia nabatea. No ano 36 de nossa era Tibério César tinha empreendido inutilmente uma campanha contra esse soberano. Ao ano seguinte, por conseguinte em 37, Calígula sucedeu à Tibério, e segundo bom número de historiadores sérios, cedeu Damasco ao rei Aretas, em testemunho de uma paz livremente consentida. Esta hipótese vem confirmada pelo fato de que, apesar de que existem moedas damascenas com a efígie gravada de Tibério, não há nenhuma com a imagem de Calígula ou de seu sucessor Claudio.
Sobre o motivo de tal tentativa de captura de Paulo pelos guardas do etnarca do Aretas IV teremos ocasião de voltar.
Seja como for, o apelido de tarsiota dado ao Paulo tem sua origem simplesmente no meio que utilizou para sua fuga. Porque em grego tarsos significa "Nasa, cesto, cesta". Saulo de Tarso significa, em realidade, "Saulo do cesto", apelido humorístico. Coisa que já faziam pressagiar as afirmações contraditórias sobre seu nascimento em Giscala, na alta Galiléia.
Mas então quem é Paulo? Voltemos para os Atos dos Apóstolos:
"Eles, gritando em vozes altas, tamparam os ouvidos e todos eles se jogaram sobre Estêvão, arrastaram-no fora da cidade e apedrejaram-no. As testemunhas depositaram seus mantos aos pés de um jovem chamado Saulo. E enquanto lhe apedrejavam, Estêvão orava, e dizia: Senhor Jesus, recebe meu espírito..." (Atos, 7, 57-59.)
"Saulo tinha aprovado a morte de Estêvão..." (Atos, 7, 60.)
"Ao Estêvão alguns homens piedosos levaram-no para enterrar e fizeram sobre ele grande luto. Pelo contrário, Saulo devastava a Igreja, e entrando nas casas, arrastava homens e mulheres e os fazia encarcerar..." (Atos, 8, 2-3.)
"Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do Senhor, chegou-se ao supremo sacerdote lhe pedindo cartas de recomendação para as sinagogas de Damasco, a fim de que, ali achava quem seguisse esse caminho, homens ou mulheres, tivesse-os atados a Jerusalém..." (Atos, 9, 1-2.)
Esses quatro extratos dos Atos dos Apóstolos não constituem, como se vê, e em boa lógica, a não ser um amálgama de contradições.
Vejamos alguns detalhes sobre a lapidação judicial em Israel: À quatro cotos (42 cm) do lugar do suplício retiravam do condenado suas vestimentas, à exceção de uma só, que o tampasse a frente, se era um homem, e a frente e por detrás se era uma mulher. Esta é a opinião do rabino Judá, mas os rabinos declaram que tanto ao homem como à mulher lhes devia lapidar nus. A altura da convocação era a de duas alturas de homem. Uma das testemunhas (acusador) derrubava o condenado, de maneira que ficasse sobre os calcanhares; se dava a volta, a testemunha o devolvia à posição desejada. Se por causa desta queda morria, a Lei se considerava satisfeita. Senão, a segunda testemunha (acusador), agarrava a pedra e lançava apontando ao coração. Esta "primeira pedra" (veja-se João, 8, 7) devia ser suficientemente pesada como para que fossem necessários dois homens (as duas testemunhas requeridas pela acusação) para levantá-la: "Dois deles levantam-na no ar, mas um só a lança, de maneira que golpeie mais forte". (Sanedrim, -45, B.) Se o golpe resultava mortal, fazia-se justiça. Senão, a lapidação incumbia coletivamente a todos os israelitas. Porque está escrito: "A primeira mão que se levantará contra ele para matá-lo será a mão das testemunhas; a seguir será a mão de todo o povo". (Deuteronômio, 17, 7.)
O que damos aqui é um resumo das regras judiciais da lapidação tal como estão prescritas pelo Talmud, e muito antes pelo Pentateuco em seu Deuteronômio.


Pois bem, se um "jovem chamado Saulo" se limita a montar guarda diante das vestimentas das testemunhas, é que não participa da lapidação. Para esta anomalia só há duas possíveis explicações.
A primeira é que o jovem é um menino de menos de doze anos, e por conseguinte ainda carece da maioridade legal para estar sujeito a todas as obrigações da Lei judia. Sobre este particular remetemos o leitor ao capítulo 12 de nosso anterior volume, capítulo intitulado "Jesus entre os doutores". Mas nesse caso, como podia ter voz no capítulo, e aprovar a condenação de Estêvão? E como pode, pouco depois, "devastar a Igreja, e entrando nas casas", com uma inevitável escolta de gente armada (necessariamente levita do Templo, postos ao seu dispor pelo estrategista deste), arrastar às pessoas e fazer encarcerá-las? E como se atreve este menino a apresentar-se frente ao pontífice de Israel e lhe pedir cartas de recomendação para operar em Damasco, cidade que pertence a outro reino?
Para todas estas inverossimilhanças (e esta palavra é ainda muito fraca para qualificar semelhantes estupidez), fica outra explicação. Encontraremo-la em Flavio Josefo. Mas antes recordemos que a Confissão de São Cipriano dava por certo que as cartas de recomendação de que dispunha Saulo-Paulo para atuar em Damasco foram entregues pelo governador, termo sinônimo ao de procurador nos textos neo-testamentários, e não pelo supremo sacerdote. De modo que Saulo estava às ordens das autoridades romanas de ocupação, e não das autoridades religiosas judias. E agora vejamos o que diz Flavio Josefo, ou ao menos o que os monges copistas tiveram por bem nos deixar: "Uma vez morto Festo, Nero deu o governo da Judéia a Albino e ao rei Agripa [...] Costobaro e Saulo tinham também consigo grande número de guerreiros, e o fato de que fossem de sangue real e parentes do rei os fazia gozar de uma grande consideração. Mas eram violentos e sempre estavam dispostos a oprimir aos mais débeis. Foi principalmente então quando começou a ruína de nossa nação, pois as coisas foram de mal a pior". (Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XX, 8.)
Não recorda isto nada ao leitor? Teremos que voltar a consultar as passagens, antes citadas, dos Atos (8, 3, e 9, 8), onde vemos Saulo e seus homens armados penetrando nas casas, tanto em Jerusalém como em Damasco, e arrancando delas às pessoas para colocar na prisão? Esse Saulo dos Atos não será o mesmo que o das Antigüidades judaicas?
Pois bem, agora nos encontramos no ano 63 de nossa era, nono ano do reinado de Nero, dado preciso, indiscutivelmente, pela morte do procurador Pórcio Festo e a chegada de seu substituto: Albino Lucayo, mais tarde posto por Nero à frente da Marítima Cesaréia, e, ao suspeitar que pretendia proclamar-se rei sob o nome de Juba, foi degolado quando desembarcou, por ordem de Vitelo. (Cf. Tácito, Histórias, II, 78-79.)
Assim, no ano 63 Saulo ainda não se teria convertido, enquanto que os exegetas da Igreja asseguram que sua conversão dataria de aproximadamente o momento da lapidação de Estêvão, ou seja no ano 36! Mas continuemos escrutinando ao Flavio Josefo: "Os grandes, vendo que a rebelião chegara a tais extremos; que sua autoridade já não era capaz de reprimi-la, e que quão males cabia temer da parte dos romanos recairiam principalmente sobre eles, decidiram, a fim de não esquecer nada para tentar dissuadi-los, enviar deputados a Floro, dos quais Simão, filho de Ananías, era o chefe, e outros ao rei Agripa, os principais dos quais eram Saulo, Antipas e Costobaro, parentes deste príncipe, para rogar a um e ao outro que fossem com tropas a Jerusalém, a fim de apagar as rebeliões antes de que cobrassem ainda mais força". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, 31.)
Segundo essa passagem nos encontramos no ano 66, "antes de 15 de agosto", e Gessio Floro é procurador desde o ano 63. Menahem, neto de Judas da Gamala, que foi criado "com o Herodes o Tetrarca e Saulo" (Atos, 13, 1), aparecerá na cena política e unificará aos sediciosos ao apoderar-se da praça forte da Massada, e os judeus a conservarão até o ano 73, data da tomada desta praça e do célebre suicídio coletivo de seus defensores.
Mas prossigamos: "Depois de um fato tão desafortunado acontecido ao Cestio, vários dos principais judeus saíram de Jerusalém, como teriam saído de uma nave a ponto de naufragar* Costobaro e Saulo, que eram irmãos, e Felipe, filho de Joaquim, que tinha sido general do exército do rei Agripa, retiraram-se com o Cestio. E em outro lugar direi como Antipas, que tinha sido assediado com eles no palácio real, ao não querer fugir, morreu em mãos desses sediciosos. Cestio enviou então Saulo e aos outros [Costobaro e Felipe, filho do Joaquim] junto ao Nero, que então se achava em Acaia, para lhe informar de sua derrota e fazer recair as culpas sobre Floro, a fim de acalmar sua cólera contra ele, fazendo-a recair sobre outro". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, 41.)
*[Segundo Eusebio de Cesárea, os membros da Igreja de Jerusalém abandonaram a cidade antes da guerra que estouraria, e retiraram-se à uma cidade de Perea chamada Pella. (Cf. Eusebio de Cesárea, História eclesiástica, III, v, 3.) Trata-se, evidentemente, do mesmo episódio, porém abaixo de Eusebio os "principais judeus" convertem-se em "cristãos". De fato, confessa que a notícia transmitida "por profecia, aos notáveis do lugar", portanto, aos judeus, e não aos cristãos.]


Esse Cestio Galo é então governador de Síria, enquanto que Gessio Floro é tão somente procurador da Judéia, submetido à autoridade do primeiro, desde o ano 63. Achamo-nos "depois do 8.° dia de novembro, ano 12 do reinado de Nero César", quer dizer no ano 66, já que Josefo é ainda governador da Galiléia, e João, da Giscala, logo entrará em cena.
Agora nos encontramos frente ao duplo beco sem saída no que se extraviaram imprudentemente os escribas anônimos dos séculos IV e V, ao censurar, interpolar e extrapolar a mão direita e sinistra, com o único fim de assentar uma impostura que naquela época podia esperar durar (dado o analfabetismo das massas), mas que não resiste à crítica racional de nossa época. Recapitulemos, pois:
1) É indiscutível que o Saulo dos Atos e das Epístolas, que foi criado com Menahem e Herodes o Tetrarca, que oprime e captura aos cristãos, que é parente de Herodião, filho primogênito de Aristóbulo III, rei da Armênia, e de Salomé II, sua esposa, e que portanto é primo destes últimos, que tem relações entre "os da casa de César" e "os da casa de Narciso", que é protegido pelo Gallón, "amigo de César" e pró-cônsul da Acaia, irmão da Séneca, o Saulo a quem o tribuno Lisias dá uma escolta de 470 soldados, e que a seguir é protegido pelo procurador Félix, que discute amigavelmente com o rei Agripa e as princesas Drusila e Berenice, que é acolhido pelo prefeito do pretorio. Burro, em pessoa, conselheiro de Nero junto à Séneca, que conversa e mantém correspondência com este último, é indiscutível, dizíamos, que esse Saulo é o mesmo que o Saulo irmão de Costobaro, ambos os "príncipes de sangue real", porque são netos de Salomé I, irmã de Herodes, o Grande (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, passim), e que oprimem a determinados elementos da população.
E obteve facilmente a qualidade de cidadão romano, se relermos com atenção à Flavio Josefo: "Salomé, irmã de Herodes, o Grande, legou por testamento à imperatriz Livia, esposa de César Augusto, seu toparquía, com a Jamnia e os palmeiras que fizera plantar em Faraélida". (Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, XIII.)
Salomé I, avó de Saulo e de Costobaro, morreu no ano 14 de nossa era. Seus laços de amizade com a domina augusta eram normais, e eram fruto que os imperadores romanos manifestaram sempre para com seu irmão Herodes, o Grande. Assim pôde obter provavelmente a cidadania romana para seu marido Costobaro I.


O Saulo dos Atos e o Saulo de Flavio Josefo não são pois, inicialmente, uma mesma e única pessoa. E se as datas não coincidem com exatidão, é porque se censurou, interpolado e extrapolado à torto e a direito, como veremos logo ao analisar os Atos dos Apóstolos.
2) O Saulo do Novo Testamento, efetivamente, não é um judeu de raça, pelas razões seguintes:
a) ignoramos totalmente seu nome de circuncisão, "Saulo-bar-X...", igual ao de seu pai. Agora bem, as famílias judias conservavam cuidadosamente sua genealogia. É óbvio que nos oculta alguma coisa;
b) todo judeu tinha que possuir um ofício manual, e os rabinos igual a outros. Este costume era lei, e um velho provérbio judeu dizia que um homem sem ofício era considerado como um bandido em potência. Pois bem, nos diz que Saulo, para viver, tecia lonas para tendas: "...e como era do mesmo ofício que eles, ficou em sua casa e trabalharam juntos, pois eram ambos fabricantes de lonas". (Atos, 18, 3.) O homem que tem o mesmo ofício que Paulo é Aquilas, originário do Ponto, reino da Ásia Menor do Nordeste. De modo que não é mais que um judeu da Diáspora, procedente de uma região onde se vive em tendas. Seu próprio nome não é hebreu. Agora bem. Paulo, segundo nos diz, vem de Jerusalém, onde realizou todos seus estudos rabínicos aos pés do grande doutor Gamaliel (Atos, 22, 3), o que representa toda sua adolescência e sua idade madura até sua conversão. E faz mais de um milênio que os judeus se tornaram sedentários na Palestina. Ao ter deixado de ser um povo nômade, já não vivem sob tendas, a não ser em aldeias e cidades. Numerosos rabinos são carpinteiros e trabalhadores de pedreira. Mas tecer tendas com pelo de cabra, destinadas à nômades pagãos, seria indigno de um judeu legalista. Trata-se de um ofício e uma necessidade próprios daqueles que saíram de povos em grande parte dedicados ao pastoreio, quer dizer de árabes, idumeus e nabateus.
Pois bem, o Saulo irmão do Costobaro é idumeu por parte de pai e pela filiação Iduméia paterna deste, mas por parte de sua mãe e sua bisavó Cypros, é de filiação nabatea. Esta última, conforme nos diz Flavio Josefo, pertencia a uma das mais ilustres famílias da Arábia (cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus. I, VI), famílias às quais ainda hoje se conhece como as dos "senhores das grandes tendas".
De todo modo, é difícil admitir que Saulo, príncipe herodiano de sangue real, achou-se jamais na necessidade de aprender outro ofício que não fora o das armas, e não são os aristocratas nem os homens em geral quem tecem as tendas de pelo de cabra entre os árabes, pois esta tarefa está reservada às mulheres do povo ou aos escravos.
Por outra parte, quando Saulo-Paulo conhece Aquilas e Priscila, estes acabam de chegar a Corinto, expulsos de Roma pelo decreto do Claudio César (cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Claudio, XXV). Nosso homem se associa a eles na fabricação e comercialização de tendas, segundo nos diz (Atos, 18, 3).


Vejamos agora duas perguntas embaraçosas:
I. Que plausibilidade tem o fato de que Aquilas e Priscila vivessem jamais em Roma, fabricando e vendendo tendas, quando a Itália não tinha já nenhuma população nômade? Os camponeses viviam em palhoças ou em granjas importantes, e os cidadãos habitavam em casas de vários andares, feitas de madeira ou de pedra. O povo vivia nas catacumbas.
II. Que plausibilidade há no fato de que Aquilas, Priscila e Paulo vivessem em Corinto, cidade grega, capital da província romana da Acaia, célebre por seu urbanismo, e que se mantivessem a base de uma fabricação e um comércio semelhantes? Na Grécia antiga acontece quão mesmo na Roma imperial: não existe o nomadismo. E imaginar que essas tendas eram exportadas supõe ignorar que os povos itinerantes da Ásia Menor, de um tipo particular, vivem sempre em uma autarquia latente. Além disso, os importantes rebanhos de cabras que acompanham a suas regulares migrações cíclicas auxiliam às necessidades de seus artesãos. Cada clã familiar no seio de cada tribo possui seu "ofício" rudimentar, efetuado pelas mulheres. E por outro lado, com que moeda, com que dinheiro saldassem semelhantes aquisições essas arcaicas etnias? É indubitável que os embutidos se vendiam em Roma, e que os vinhos da Grécia se exportavam, mas os únicos capazes de aproveitá-lo eram a rica aristocracia romana e alguns plebeus enriquecidos.
Vemo-nos, pois, forçados a deduzir que, uma vez mais, o escriba anônimo que redigiu esta passagem dos Atos dos Apóstolos deu rédea solta a sua imaginação também aqui, e que Saulo-Paulo jamais fabricou tendas. Dispunha de outros recursos, e aqui temos a prova: "Não cobicei prata, ouro ou vestidos de ninguém. Sabem que minhas necessidades e às dos que me acompanham têm provido estas mãos". (Atos dos Apóstolos, 20, 33-34.)
Resulta difícil imaginar Saulo-Paulo trabalhando intermináveis horas em um ofício como o de tecer para assegurar a cama e a mesa à uns colaboradores que se refestelam olhando. Além disso, não era cohén (sacerdote) nem doutor da Lei, a não ser judeu. Portanto não podia subsistir do dízimo sacerdotal nas comunidades que visitava. Concluamos porque era rico, ou que possuía uns recursos misteriosos. Coisa que vem justificada pelo fato de que vivesse em Roma durante dois anos sem fazer nenhuma outra coisa que o que dizem os Atos: "Paulo permaneceu dois anos inteiros na casa que tinha alugado, onde recebia a todos os que iam a ele, pregando o reino de Deus e ensinando com toda liberdade e sem obstáculos o referente ao Senhor Jesus Cristo". (Atos dos Apóstolos, 28, 30.)
3) Ao proceder de uma família de incircuncisos (é a recriminação essencial que os judeus fazem à dinastia Iduméia dos Herodes), o Saulo-Paulo do Novo Testamento é de entrada adversário da circuncisão e dos tabus judaicos, coisa que um judeu de raça, presa tanto de um subconsciente hereditário como da educação recebida em sua primeira infância, jamais se atreveria a infringir, e menos ainda a combater.
Voltemos a ler as Escrituras:
Atos (15, 1-35) - (21, 21);
Romanos (4, 9) - Gálatas (5, 2; 6, 12);
Filêmon (3, 3) - Colossenses (3, 11);
Gálatas (6, 15) - I Coríntios (7, 19)
Poderá constatar-se que esses textos são categóricos: Paulo é inimigo dos ritos judaicos essenciais. E em seu livro Saint Paúl, apotre (imprimatur de 12 de maio de 1952), Giuseppe Ricciotti tira a conclusão: "O evangelho particular de Paulo não impunha esses ritos; e mais, inclusive os excluía". Por conseguinte, se "seu evangelho" tinha sido aprovado, os ritos em questão se achavam excluídos, ao menos para aqueles que provinham do paganismo ao que Paulo dirigia sua mensagem.
E agora abordaremos um novo problema: Que homem era esse Saulo idumeu, irmão do Costobaro, neto da irmã de Herodes, o Grande (amiga da imperatriz Livia), "príncipe de sangue real", chefe da polícia política judeu-Iduméia, e como e por que acabou fundando esse messianismo místico, depois de ser o artífice da morte do messianismo político dos zelotes? Também aqui, segundo o velho provérbio judicial, bastar-nos-á "buscar à mulher". Logo o veremos. De todos os modos, voltando para a qualidade de civis romanos que os falsificadores anônimos dos Atos dos Apóstolos lhe atribuem com vaidosa ostentação, em uma época em que o cristianismo se converteu na religião do Estado, veremos possivelmente aparecer ainda algumas fibras de verdade. E com isso, algumas novas surpresas para o leitor...
5 - Um estranho cidadão romano
... E me faço judeu com os judeus para ganhar aos judeus [...] Com os que estão fora da Lei me faço como se estivesse fora da Lei...
Paulo, I Epístola aos Coríntios, 9, 20-21
Anteriormente admitimos a afirmação dos Atos segundo a qual Saulo-Paulo tema a qualidade de civis romanos, cidadão romano. Vamos examinar agora o valor de tal afirmação.
Em primeiro lugar, é evidente que se nosso homem era judeu de raça, não podia ter esta cidadania naqueles tempos. Nenhum judeu do Oriente era cidadão romano, pela excelente razão de que, ao aceitar essa dignidade, era expulso ipso facto da nação judia, e submetia a terrível cerimônia do herem, ou expulsão definitiva, que afetava tanto à vida presente como à futura.
Todo cidadão romano devia participar do culto aos deuses do Império, em especial ao das divindades tutelar da cidade de Roma, e lhe estava proibido participar do dedicado à divindades estranhas não reconhecidas pelo Senado romano, e menos ainda no de uma divindade ilícita. Quer dizer, que se o culto ao Yavé, deus único, assimilado por Roma ao Zeus, permitia aos mais altos dignatários do Império fazer oferendas no Templo de Jerusalém, a um judeu de raça não lhe era possível fazer o mesmo com respeito aos Dea Roma, como Vesta, Apolo, Vênus, antepassados da gens Julia, os Dea Genitri e, especialmente, os Dea Victoria.
Mas o que dizer de um judeu de raça que durante anos se dedicou a fazer triunfar o culto a um certo rebelde chamado Jesus, crucificado por um procurador romano por ter pretendido ser "rei dos judeus"? E esse mesmo judeu de raça acrescentaria, além disso, injúrias blasfêmias para com os deuses do Império: "Servem à deuses que não o são!" (Gálatas, 4, 8), ou "O que sacrificam os gentis, aos demônios e não a Deus o sacrificam" (I Coríntios, 10, 20).
É simplesmente incrível!
Em conclusão, voltamos para nossas afirmações precedentes, ou seja, que Saulo-Paulo não era judeu de raça. Disso resulta que nada se opõe a que fora cidadão romano. Mas então, como?
Sugerimos a hipótese de que Salomé I, sua avó, amiga da imperatriz Livia, esposa do imperador Augusto, tivesse obtido a cidadania romana para sua família. Não é impossível. O imperador podia impor facilmente sua vontade no Senado romano. Vespasiano fez de Flavio Josefo um civis romanos, o que explica ainda melhor o ódio de seus compatriotas, já que isso implicava um verdadeiro adultério espiritual com respeito à religião judia.


Mas há também outros argumentos em favor da romanização de Saulo-Paulo. Renán, quem obviamente não ignorava a tese que proclamava ao Jesus filho de Judas da Gamala, mas que se guardou bem de emiti-la tendo em conta o clericalismo da época, confessa-nos isso explicitamente: "Pode supor-se que seu avô a tinha obtido por ter ajudado ao Pompeyo durante a conquista romana...". (Cf. Ernest Renán, Les Apotres, P. 164.)
Exclui-se a possibilidade de que o avô de Saulo-Paulo, era judeu, fora o suficientemente influente para ajudar ao Cneius Pompeius Magnus em sua conquista de todo o Oriente Médio: Fenícia, Líbano, Palestina, que acabou com a tomada de Jerusalém no ano 63 de nossa era. Além disso, naquela época não poderia tratar do avô de Saulo-Paulo, mas sim como mínimo de um bisavô: Antípater.
Antípater, idumeu, marido de Cypros I, princesa nabatea, e primeiro-ministro do Hircano II (rei sacerdote por quem Pompeyo substituiu ao Aristóbulo), empurrou este pelo caminho da colaboração com Roma. Manobrou habilmente entre os dois partidos durante a guerra civil romana que enfrentou ao César e Pompeyo, e ao final se aliou ao primeiro e enviou ao Egito um exército judeu de reforço no ano 48 antes de nossa era, liberando assim ao César de uma situação dramática num local de Alexandria, e lhe salvando inclusive a vida. Foi, além disso, o primeiro a penetrar em Pelusa. Como recompensa foi renomado administrador do Templo e procurador (no ano 47 antes de nossa era). César nomeou ao primogênito de Antípater, Fasael, governador de Jerusalém, e Herodes, o benjamim, converteu-se em governador da Galiléia. Vejamos o que nos conta Flavio Josefo: "O grande número de feridas que recebeu foram gloriosas marcas de seu valor. Depois que César terminara os assuntos do Egito e retornara à Síria, honrou ao Antípater com a cidadania romana, com todos os privilégios que dela derivavam, ao que acrescentou tantas outras provas de sua estima e de seu afeto que o fez digno de inveja". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus. I, VII.)
Aqui temos, pois, esse antepassado de Saulo-Paulo que Renán assegura que foi civis romanus! O que implica que nosso autor sabia perfeitamente a que se ater sobre as origens familiares do tal Saulo, e que se viu obrigado a calar parte de suas descobertas.
De todo modo, os espíritos mais desconfiados não deixarão de dizer que os filhos de Antípater, Fasael e Herodes, já tinham nascido quando se fez entrega de tal dignidade à seu pai. Se fazia extensiva também a eles? Porque neste particular o filho seguia a condição de seu pai no momento da concepção, no caso de matrimônios legítimos, e Antípater não era cidadão romano quando eles nasceram.
A isto responderemos que é impensável que César não fizesse implicitamente extensiva esta qualidade aos dois filhos. Em primeiro lugar, sempre foi muito liberal neste aspecto. Por exemplo, a legio Alauda, a famosa legião de L'Alouette, toda ela recrutada entre francêses, recebeu dele a categoria de cidadã romana, extensiva a todos seus membros, independentemente de sua graduação. (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: César, XXIV.)


Por outra parte, a França anterior à Revolução de 1789 estava regida por leis e costumes que procediam diretamente do direito romano. Pois bem, o enobrecimento de um plebeu implicava o de toda sua descendência, até no caso de que o nascimento de seus filhos fosse anterior a tal enobrecimento. Estes eram enobrecidos implicitamente de uma vez com ele. Este costume não tinha nenhuma exceção.
Mas, seguirá objetando-se, Saulo-Paulo era neto de Herodes, o Grande, por linha feminina; neste caso, era transmissível por via materna tal qualidade, verdadeira nobreza secundária no seio do Império romano? A isto seguiremos dizendo que sim. Em todas as "terras e províncias do Sacro Império Romano Germânico" (na França: Flandes, Champanha, Lorena, Borgonha, Delfinado, Provença) existia a nobreza uterina, transmissível através das filhas, em virtude do direito romano que decretava que "o filho segue a sorte do ventre que lhe levou".
Sem dúvida se voltará a argüir que Herodes levava simplesmente os títulos de amigo e aliado do povo romano, e que isso não implica a cidadania romana. Não devemos esquecer que, nesta época, Herodes, o Grande, é rei da Judéia, de Samaria e da Galiléia. É um soberano vassalo de Roma, mas um soberano independente, dono de seu reino. Esta função a exerce, pois, livremente, nos termos citados: amigo e aliado do povo romano não implicam portanto (por pura cortesia) a sujeição que implicaria necessariamente a corriqueira definição de cidadão romano. Estes termos o elevam a um nível muito superior, substituindo-o.
Por outra parte, manifestou-se sempre como cidadão romano. Reconstruiu o Templo de Jerusalém, se fez reconhecer aos judeus seus direitos mais sagrados contra os gregos, já anti-semitas, em matéria religiosa, comportou-se deste modo como fiel observador dos deveres de um civis romanus, restaurando ou construindo numerosos santuários pagãos, correndo com todos os gastos, especialmente o santuário de Apolo Pitio em Rodas (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVI, V). Pois bem, a isto não estava obrigado em caso de não ter sido cidadão romano, já que tais manifestações propagadas não faziam mais que aumentar o ódio dos judeus integristas para ele.
Acreditam, pois, que é a esta filiação herodiana a que Paulo poderá referir-se quando afirma ante o tribuno Lisias: "Pois eu a tenho por nascimento". (Atos dos Apóstolos, 22, 28.)
6 - A dinastia Iduméia
A verdade dos deuses está em proporção com a sólida beleza dos templos que lhes levantou.
Ernest Renán, Origine du Christianisme
Não nos parece inútil dar uma breve visão histórica das origens de toda a grande família herodiana, já que, para compreender o comportamento de Saulo-Paulo, é importante conhecer bem sua herança, seu psiquismo racial e suas crenças iniciais.
Julio, o Africano, escritor cristão do século III, em sua Carta ao Aristides, reproduzida parcialmente nas Quaestiones ad Stephanum de Eusébio da Cesaréia, recolheu diversas tradições a este respeito em obras anteriores, em especial as de Nicolau o Damasceno, Ptolomeo de Ascalón e as Memórias de Hegesipo.
Julio, o Africano, precisa que foram "parentes carnais do Salvador", quer dizer familiares muito próximos, irmãos, sobrinhos, ou inclusive a própria Maria, sua mãe, quem contribuiu com certas tradições sobre a origem da família dos Herodes. E este fato não faz mais que reforçar a hipótese avançada por Daniel Massé, como conclusão a suas próprias investigações (e ele fora juiz de instrução), de que existiram laços "por aliança" entre a família herodiana e a dos "filhos de David". A última esposa de Herodes, o Grande, Cleópatra de Jerusalém, viúva de um "filho de David", teria se casado em segundas núpcias com o chamado Herodes, segundo Massé. (Supra: P. 37.)
Por muito surpreendente que resulte esta hipótese, acha-se seriamente sustentada por um fato que a tradição cristã reservada ao povo simples oculta cuidadosamente, e esse fato é a riqueza indiscutível da família davídica, quer dizer a importância dos bens possuídos por Maria, mãe de Jesus, e as diversas rendas recebidas por este último.
Sobre estas, remetemos ao leitor a nossa obra precedente, ao capítulo intitulado "O dízimo messianista". Entre os bens imóveis da família podemos mencionar já com certeza a casa familiar de Gamala, esse ninho de águias, berço da família; a casa de Cafarnaúm, citada em Mateus (4, 13), e no Marcos (1, 29), que pertencia ao Simão e André, irmãos de Jesusa a de Séforis, destruída nos anos 6 aos 4 antes de nossa era pelas legiões de Varo, legado de Síria, quando teve lugar a primeira revolução de Judas da Gamala, marido de Maria e pai de Jesus; podemos acrescentar a de Betsaida, "a cidade de André e de Pedro" (João, 1, 44), já que, repitamo-lo, são irmãos de Jesus.
Também o abade Emile Amann, ao traduzir e comentar o Protoevangelio de Santiago, consagrado à Maria, suas origens e sua infância, observa que, segundo o texto: "Joaquim [o pai de Maria] é enormemente rico, e isto constitui uma resposta direta às acusações judias sobre a pobreza da Maria". (Cf. E. Amann, O Protévangile de Jacques, imprimatur do 1-2-1910, Letouzey éditeur. Paris, 1910, p.181.)
Coloca-nos, pois, muito longe da família mísera que nos apresentam perpetuamente para nos enternecer.
Vejamos o que diz sobre isso o Africano, reproduzido por Eusébio da Cesaréia: "Isto não se disse nem sem provas nem ligeiramente. Porque os familiares carnais do Salvador, bem seja para vangloriar-se ou simplesmente por contá-lo -mas, em todo caso, dizendo a verdade-, transmitiram também o seguinte:


"Uns bandidos idumeus assaltaram a cidade de Ascalón, na Palestina, e da capela de Apolo, que estava levantada perto das muralhas, levaram-se junto com o resto do roubo ao pequeno Antípater, filho de um servidor do templo, Herodes, e o fizeram prisioneiro. Ao não poder pagar o sacerdote o resgate por seu filho, Antípater foi educado segundo os costumes dos idumeus, e mais tarde gozou do afeto de Hircano, supremo sacerdote da Judéia. Logo foi enviado por Hircano em embaixada junto ao Pompeyo, e obteve em favor daquele a liberdade do reino que tinha sido arrebatado ao Aristóbulo, seu irmão. Ele mesmo teve a boa fortuna de ser renomado epimeleta da Palestina.
"Logo, depois de ser assassinado Antípater a traição, por causa do ciúmes provocados por sua sorte, seu filho Herodes o sucedeu, e mais tarde este foi chamado por Antonio e Augusto, em virtude de um decreto do Senado romano, para que reinasse sobre os judeus. Seus filhos foram Herodes e os outros tetrarcas idumeus. E assim se encontra também na história dos gregos.
"Até então, nos arquivos se encontravam copiadas as genealogias dos verdadeiros hebreus, e as dos partidários de origem, como Aquior o Amanita, Rut a Moabita, e as das pessoas saídas do Egito e que se mesclaram com os hebreus. Herodes, a quem a raça dos israelitas não interessava em nada, fez queimar os registros dessas genealogias, imaginando-se que assim poderia parecer nobre, pelo fato de que ninguém poderia remontar-se nos registros públicos até suas origens, até os patriarcas ou partidários ou estrangeiros mesclados, chamados geores." (Eusébio da Cesaréia: História eclesiástica. I, VII, 11-44.)
O que Flavio Josefo nos transmite em suas obras não por não ser rigorosamente idêntico deixa de ser menos sensivelmente análogo. Vejamos o que diz este autor: "Um idumeu chamado Antípater, muito rico, muito empreendedor e muito hábil, era grande amigo do Hircano e inimigo do Aristóbulo. Nicolau o Damasceno o faz descender de uma das principais casas de quão judeus retornaram a Judéia desde Babilônia, mas o diz pelo Herodes, seu filho, a quem a fortuna logo elevou ao trono de nossos reis, como veremos em seu lugar.
"Antes o chamavam, não Antípater, mas Antipas, como seu pai, quem ao ser renomado pelo rei Alexandre e a rainha sua esposa, governador de toda a Iduméia, cercou amizade com os árabes, os gazaenos e os ascalonitas, e ganhou seu afeto mediante grandes presentes". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XIV, iI.)
"A esposa desse Antípater, chamada Cypros, pertencia a uma das mais ilustres casas da Arábia. Teve dela quatro filhos varões: Fasael, Herodes, que depois foi rei, José e Perora, e uma filha chamada Salomé. Sua sábia conduta e sua liberalidade lhe granjearam a amizade de vários príncipes, e especialmente do rei dos árabes, a quem confiou seus filhos quando esteve em guerra com o Aristóbulo." (Cf. Flavio Josefo, Guerras dos judeus. I, vi.)
Não obstante, existe uma divergência genealógica entre as tradições recolhidas por Julio o Africano e as recebidas por Flavio Josefo. Vejamos:
Julio, o Africano:
1. Herodes, sacerdote do Apolo no Ascalón, de onde:
2. Antípater, amigo do Hircano, de onde o futuro rei:
3. Herodes o Grande.
Flavio Josefo:
1. N..., governador da Iduméia, de onde:
2. Antípater, aliás Antipas, marido de Cypros, de onde:
3. Herodes o Grande.
De qualquer maneira, e como pode constatar-se, Saulo e Costobaro, príncipes herodianos, netos de Salomé I, irmã de Herodes, o Grande, são árabes idumeus por seu bisavô, e árabes nabateus por sua bisavó.
O berço da família foi, sem lugar a dúvidas, Ascalón. Esta cidade, recuperada por Israel, formava parte da herança da tribo de Judá. Os árabes chamavam-na Khirbet Askalon, quer dizer "as ruínas do Ascalón". Benjamim da Tudela fala dela como de uma cidade construída à beira do mediterrâneo por Ezra "o Sacerdote", e que então denominavam Benibra. Esta cidade cananea foi conquistada pelos faraós do Egito no ano 1500 antes de nossa era. Rebelou-se contra seus ocupantes em 1280 A. C., mas esta rebelião foi sufocada por Ramsés II. Logo se converteu em uma das cinco cidades ocupadas pelos filisteus, um dos centros de sua cultura, e por último em uma praça forte de Israel.
O comércio foi ali particularmente próspero nos tempos dos grandes períodos bíblicos, na época dos Juízes e das dinastias reais. Segundo a tradição. Sansão, traído por Dalila, foi capturado ali pelos filisteus e sucumbiu durante o célebre episódio. Quando o rei Saúl morreu ali à mãos dos guerreiros filisteus, David se lamentou poeticamente no célebre "Cântico do Arco", que ordenou fora ensinado aos meninos de Judá, e que foi transcrito a seguir no Livro do Justo, o qual se perdeu: "O esplendor de Israel sucumbiu em suas colinas! Como é que caíram os valentes? Não o façam saber no Gat, e não o anunciem nos caminhos do Ascalón, a fim de que não se gozem por isso as filhas dos filisteus, a fim de que não triunfem os filhos dos incircuncisos! OH Montes do Gélboe! Que nem o rocio nem a chuva descendam sobre vós, nem haja campos que dêem as primicias para as oferendas! Porque é ali onde se manchou o escudo dos heróis". (II Samuel, 1, 19-21.)
Os profetas Jeremias, Amos e Sofonio amaldiçoaram a seguir à cidade, e chamaram sobre ela à desolação. Foi submetida e presa por Sargón e Senaquerib. A partir da conquista de Alexandre converteu-se em uma opulenta cidade helenística, entregue especialmente ao culto Derceto ou Atergatis, deusa com rosto de mulher e corpo de peixe.


Foi nesta cidade totalmente pagã por suas origens, seu passado e sua etnia onde nasceu o futuro Herodes, o Grande. Sua orientação religiosa forçosamente ressentiu-se por isso, e ao não ser judeu, não deve surpreendermos que construíra em diversos lugares templos pagãos, embora tivesse restaurado magnificamente o de Jerusalém, por pura concessão política.
Iduméia e Nabatea eram, com efeito, profundamente pagãs, sobretudo a segunda. Rene Dussaud, membro do Instituto, diz-nos o seguinte em seu estudo sobre os povos dessas regiões: "Ao lado do culto organizado e dos oráculos pronunciados nos santuários, os árabes do Yemen praticavam a magia e a bruxaria. Como acontece entre todos os semitas, a distinção entre o profano e o sagrado, o puro e o impuro é muito nítida e categórica [...] Os antigos cultos da Arábia meridional se integram no conjunto dos cultos semíticos. Os cultos árabes do sul (mineanos, sabeus, himyaries) são-nos conhecidos mediante textos que vão do século VIII A. C. até o VII de nossa era. Manifestam, em primeiro lugar, uma organização teocrática sob a autoridade do moukarrib, ou príncipe-sacerdote. A seguir aparecem reinos laicos dominados por alguma família importante [...] Os sacrifícios cruentos, assim como queima de incenso, estavam ali muito estendidos". (Cf. Rene Dussaud, Les religions des Hittites et des Hourrites, des Phéniciens et des Syriens, cap. III: "Nabathéens et Safantes", Paris, 1945.)
Por certo que esses príncipes sacerdotes os encontramos também em Israel nessa época (século I A. C.), dentro da dinastia asmonea (como é o caso de Alexandre Janeo, o primeiro deles). De maneira que não nos surpreendamos muito se logo nos encontrarmos com um Saulo, príncipe idumeu, iniciado nos ocultos da magia e sabendo dirigir tanto as forças de cima como as mais sinistras de baixo. Para nos persuadir nos bastará relendo I Coríntios, 5, 5, e I Timóteo, 1, 20. A atração para o ocultismo se encontra em todas as classes sociais, em todas as épocas, desde Salomão até Nicolau II, do imperador Rodolfo até Catarina de Medicis, sem esquecer Gilies de Rais e Erzsebet Bathory...
O culto ao Derceto, ou Atergatis, próprio de Ascalón (junto com o de Apolo, já que o avô de Herodes, o Grande, era sacerdote deste), não deve nos fazer esquecer aqueles outros, mais sutis, que gozavam do favor de toda a Arábia nabatea.
Temos, por exemplo, Bel-Samin, o deus supremo, o "Senhor dos Céus", que estava flanqueado pelo Dusares, o Dionisos arabizado, e Allat, uma espécie de Ateneu, embora mais venusiaca. Naquela época existia na Nabatea ainda o que Roma fazia desaparecer de todas aquelas partes aonde ocupava a classe de potência ocupante, quer dizer os sacrifícios humanos associados às oferendas de incenso. Pelos textos de Ras Shamra sabemos que nesse país de Edom desempenhava um papel ritual o vinho. Ao suco da uva associava-lhe, desgraçadamente, o sangue humano, cuja púrpura criminalmente oferecida fazia-se correr sobre as pedras cúbicas que serviam de altar, em determinadas festas. Havia também ágapes rituais, no curso dos quais uma parte das oferendas era consumida pelo fogo, e assim oferecida à deidade, e o resto era consumido pelos sacerdotes ou os fiéis? É provável. Uma passagem de Aelio Arístido, escritor do século II, diz-nos que as comidas rituais celebradas no templo de Serapis tinham por objetivo estabelecer uma estreita comunicação psicopneumática entre o deus e os participantes. E Flavio Josefo nos diz o mesmo do culto ao Anubis: "Quando acertaram tal acordo, disse que vinha da parte de Anubis, porque o deus, vencido pelo amor que sentia por ela, convidava-a a ir a ele. Ela acolheu essas palavras com gozo, presumiu ante seus amigos da eleição de Anubis e disse a seu marido que lhe tinham anunciado o ágape e o leito de Anubis. Seu marido consentiu isso, porque provara a virtude de sua esposa. Ela foi, pois, para o templo, e depois de ter comido, quando chegou o momento de dormir, uma vez estiveram as portas fechadas pelo sacerdote do interior do templo, e as luzes apagadas, o cavaleiro Mundus Decius, que se tinha oculto ali antes, não deixou de unir-se a ela, e ela se entregou a ele durante toda a noite, imaginando-se que era o deus". (Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII, III, 4


Filiação Iduméia De Saulo-Paulo, citados dos Herodes



Filiação Iduméia de Saulo-Paulo, citados dos Macabeus

 


Esse escândalo, que sacudiu Roma no ano 19, teve como epílogo, uma vez conhecido, uma investigação por ordem de Tibério César, a destruição do templo de Anubis, que foi arrasado, o exílio do Mundus Decius, amante de Paulina, sem ela sabê-lo, naturalmente, e a crucificação dos sacerdotes e da liberta Ide, sua cúmplice. Mas nos conta a importância do ágape ritual. Nesta circunstância, precedia à comunhão carnal entre o deus e a bela Paulina, como um costume tão habitual como indispensável.
No mundo antigo, a noção de comunhão com os deuses ingerindo parcialmente aquilo que lhes era devotado em holocausto ígneo era coisa comum. No culto ao Dionisos Tracio, os participantes rasgavam com suas mãos e seus dentes o touro que simbolizava ao deus, e devoravam sua carne, a fim de converter-se em bacchi e participar a seguir, depois da morte, na imortalidade divina. Em outros lugares podia tratar-se de um cabrito, um cordeiro...; a vítima simbólica variava segundo o deus.
Todavia, esta noção particular, mesmo que as formas antigas desse tipo de ritual caíssem em desuso em princípios de nossa era, e embora se oferecessem espécies de substituição em lugar das antigas vítimas viventes (antigamente humanas, logo animais), esta noção, dizemos, tinha impregnado todo o paganismo árabe, e Saulo não podia escapar a isso.
O mesmo desenvolveria mais adiante, e é uma prova mais de que não era um judeu de raça, já que tal noção era totalmente estranha ao sacerdócio de Israel. Os sacerdotes tomavam para si e para sua família certas partes das vítimas oferecidas, porque deviam viver do altar, simplesmente, tanto dos donativos diretos como dessas partes extraídos. Mas jamais se subentendeu que, ao consumir o cordeiro sacrificado durante a grande Páscoa anual, as famílias judias devorassem ao Yavé, o Deus de Israel, o Eterno! Enunciar semelhante hipótese seria castigado como o pior dos sacrilégios.


Pois bem, Saulo sustenta tal idéia. E não só a sustenta, mas também ensina-a, afirma-a, justifica-a e põe em prática: "Falo-lhes como a homens inteligentes. Julguem vocês mesmos o que lhes digo. O cálice de bênção que benzemos não é acaso a comunhão com o sangue de Cristo? O pão que fracionamos não é acaso a comunhão com o corpo de Cristo? [...] Olhem aos israelitas segundo a carne: por ventura os que comem das vítimas não entram em comunhão com o altar?". (Paulo, I Coríntios, 10, 15-19.)
Nesta passagem Saulo nos demonstra que:
a) acredita em um uso de origem absolutamente pagã: a comunhão com os deuses mediante a ingestão parcial das oferendas;
b) não se considera como um israelita segundo a carne, situa-se à parte, com os gentis aos que se dirige;
c) o que enuncia é uma enormidade: a comunhão com o altar, quer dizer com o Deus de Israel, compartilhando as vítimas entre Deus e os sacerdotes. E semelhante ignorância, semelhante heresia são impensáveis por parte de um homem que se vangloria de ter passado o tempo de seus estudos aos pés de Gamaliel, neto do grande Hillel, e célebre doutor (Atos dos Apóstolos, 22, 9).
Mais ainda, desenvolve sua teoria eucarística justificando-a mediante esses mesmos costumes pagãos que recordávamos antes: "O que digo, pois? Que a carne sacrificada aos ídolos é algo, ou que um ídolo é algo? Em modo algum. Eu digo que o que sacrificam os gentis, aos demônios e não a Deus o sacrificam. Pois bem, eu não quero que vós entrem em comunhão com os demônios. Não podem beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios. Não podem participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios. Ou queremos provocar o ciúmes do Senhor? Somos acaso mais fortes que ele?". (Paulo, I Coríntios, 10, 19-22.)


Agora, em apoio de nossas conclusões, citaremos duas autoridades da exegese liberal: "Pretendida as palavras da instituição eucarística só têm sentido na teologia de Paulo, que Jesus não tinha ensinado, e na economia do "mistério" cristão, que Jesus não tinha instituído". (Cf. Abade Alfred Loisy, L'initiation chrétienne, P. 208.)
*[O abade Alfred Loisy (1857-1940) foi catedrático de Hebreu no Institut Catholique de Paris, e logo catedrático das Sagradas Escrituras, até 1889. Viu-se obrigado a abandonar sua cátedra em 1893, e foi nomeado professor na École Pratique des Hautes Etudes em 1900, e logo professor de História das Religiões no Collége de France de 1909 a 1930. Foi excomungado no ano de 1908, porém, isso não alterou nada seus trabalhos.]
"Mas então, de onde procede esse rito? De onde procedem essas palavras? Não de Israel. Os judeus não ignoravam a comunhão da mesa, e muitos esperavam com firme esperança o "festim messiânico"; fala-se disso nos Sinóticos*. Suas seitas, por exemplo os essênios e os terapeutas, praticavam ágapes sagrados que se pareciam muito aos ágapes de sacrifício. Mas em qualquer parte tratava-se tão somente de um sinal de fraternidade; em nenhuma parte se percebe rastro algum de teofagia**." (Cf. Charles Guignebert, O Cristo, III.)
*[Sobre esse festim veja-se, em especial: Mateus, 22, 1-14; Marcos, 14, 25; Lucas, 22, 30. Trata-se de um banquete de festa, entre irmãos, somente. Ali não se devora a carne nem o sangue de nennhum deus.]
**[Teofagia: manutenção do simulacro de um deus ou de uma vítima substituta.]
Todas estas anomalias, todas estas heresias, tão dogmáticas como rituais, são impensáveis em um pretendido judeu de raça, "hebreu e filho de hebreu, educado aos pés de Gamaliel".
Entretanto, compreendem-se perfeitamente em um príncipe herodiano, de origem iduméia por via masculina e nabateo por via feminina, e que não é, psíquica e hereditariamente falando, a não ser um beduíno ainda imbuído de paganismo, inconscientemente ou não.
Esse "Cristo" que nos apresenta pela primeira vez, de quem ninguém ouviu falar antes nas diversas correntes do messianismo político (falava-se do messiah, do "messias", o qual é muito diferente), é desconhecido por aqueles que conheceram Jesus, que viveram com ele o desmoronamento das esperanças na vinda do "Reino". E em pleno século V, as Homilias Clementinas reconheceram a doutrina "adopcionista" sustentada pelo grande Orígenes no começo do século nem, que Jesus foi alguém mais que um subordinado ao Pai, em virtude de sua adoção: "Nosso Senhor, respondeu Pedro, não disse jamais que existissem deuses além do Criador de todas as coisas, nem se proclamou, jamais a si mesmo, como Deus, mas sim, com razão, declarou bem-aventurado aquele que lhe chamou filho do Deus Ordenador do Universo". (Cf. Homilias Clementinas, XVI, XV.)


Agora bem, esse título de "filhos de Deus" é próprio a todas as criaturas, tão angélicos como humanas. Citaremos simplesmente as passagens nas quais não há equívoco, a fim de não alongar inutilmente este capítulo:
"Os filhos de Deus [os anjos] viram que as filhas dos homens eram formosas..." (Gênesis, 6, 2.)
"Os filhos de Deus [os anjos] foram um dia apresentar-se ante o Eterno..." (Jó, 1, 6.)
"Os filhos de Deus lançavam gritos de alegria..." (Jó, 38, 7.)
"Aqueles que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus..." (Paulo, Romanos, 8, 14.)
"São todos filhos de Deus pela fé..." (Paulo, Gálatas, 3, 26.) É mais, a Doutrina dos doze apóstolos -denominada também Didakhé-, citada por Eusébio de Cesaréia como um texto a classificar entre os apócrifos (cf. História eclesiástica, III, XXV, 4-5), o que demonstra que já era conhecida no século IV, faz de Jesus um simples "servidor" de Deus, ebed laweh.
"Quanto à eucaristia, dêem graças assim: Primeiro referente ao cálice: Damo-lhe obrigado, Oh nosso Pai, pelo santo vinho de David, seu servidor, que você nos tem feito conhecer pelo Jesus seu servidor; glorifica a Ti nos séculos!
"Logo, referente ao pão partido: Damo-lhe graças, Oh nosso Pai, pela vida e a ciência que Você nos tem feito conhecer pelo Jesus seu servidor. Glorifica a Ti nos séculos!". (Cf. Doutrina dos doze apóstolos 1-3.)
Assim, neste texto à Jesus qualifica-lhe de servidor de Deus, o mesmo título que ao David; não é outra coisa que o ebed laweh.
Por outra parte, Saulo-Paulo (ou o escriba que efetua as composições sob seu nome) não ignora que a Lei recebida por Moisés foi comunicada no Sinai, não pelo próprio Deus, mas sim por um mediador, o Mátatrón-saar-ha-panim, ou "príncipe das Faces", a quem também se denomina Saar-ha-Gadol, o "grande príncipe", ou Saar-ha-Olam, o "príncipe do Mundo": "A Lei foi promulgada pelos anjos, por mão de um Mediador". (Paulo, Gálatas, 3, 19.)
E então coloca, em sua teologia pessoal, um novo mediador entre Deus e os homens, esse "Cristo" que ele inseria pela primeira vez na nova teodicea: "Há um só mediador entre Deus e os homens". (Paulo, I Timóteo, 2, 5.)
"Jesus é o mediador de uma aliança mais excelente". (Paulo, Hebreus, 8, 6.)
E o que é mais grave ainda, Saulo ignora que o Mediador é todo o Israel, o povo inteiro, não como modelo, mas sim como "depositário da palavra e dos oráculos de Deus" (Paulo, Romanos, 3, 2), o que induz a acreditar que está em contradição consigo mesmo. Porque esqueceu a mensagem de Isaías, coisa bem estranha para um "judeu de raça" que fez seus estudos aos pés de Gamaliel: "Assim diz o Senhor: No tempo favorável lhes escutei, no dia da salvação lhes ajudei, conservei-lhes e estabeleceu para ser os mediadores do povo, renovar a terra e recuperar as verdades devastadas". (Isaías, 49, 8.)
E o que dizer do fato de que o Pai, tanto se se trata do texto de Mateus (6, 9) como de Lucas (11, 1-4), não mencione ao Filho, menos ainda ao Espírito Santo, e não diga nenhuma palavra da Virgem! O que sim é certo é que Saulo-Paulo, como bom árabe nabateo, não concederá jamais às mulheres o mínimo direito na religião que está fundando; voltaremos para isso mais adiante.

7 - De Saulo, príncipe herodiano, ao Simão, o Mago
Mas já à chamada de Astarté desperta, orvalhado pelo cinamomo, o misterioso Marido. ressuscitou o antigo adolescente! E o céu em flor parece uma imensa rosa, que tingiu com seu sangue um Adonis gigante...
J.-M. DE HÉRÉDIA "Les Trophées", le réveil d'un dieu
Simão o mago ocupa na história das origens do cristianismo um lugar importante, com ou sem razão. Dos Atos dos Apóstolos até as obras especializadas, redigidas pela grande corrente patrística contra as heresias em geral, a literatura cristã menciona a existência desse misterioso personagem.
Fez-se dele o pai de todas as heresias, e se tentou justificar esta paternidade nas doutrinas que acertada ou equivocadamente surgiram da sua própria. Quer dizer, que não é necessário defender o interesse que reveste o estudo da personalidade, real ou imaginária, de Simão o Mago.
Agora bem, ao redor de 1850, vários exegetas austríacos e alemães suspeitaram que detrás de Simão, o Mago, se ocultava em realidade o apóstolo Paulo. Citemos simplesmente: Baur (Tüb. Zeitschr. F. Theol., IV, 136, e K.-Gesch. dersserst. Jahrh., P. 186, sq.), Zeller (Apg., 158, sq.), Volkmar (Theol. Jahrh., 1856), Hilgenfeid (Die Clem., Recogn. U Homil., P. 319), Lipsius (Die Quellen der rómischen Petrussage), Schenkel (Bibel-Lexikon, art. "Simão der Magier").
Esta escola, como se vê, estava dotada de didatas de valor, e a nova opinião, defendida a seguir por grande número de críticos, negou imediatamente a existência histórica de Simão, o Mago. De fato se apoiava sobre uma constatação de importância, ou seja, que em bom número de documentos da tradição, o nome de Mago não era outra coisa que um pseudônimo do apóstolo dos gentis, e que os ataque dirigidos contra Simão nos Atos e nas obras patrísticas o eram em realidade contra Saulo-Paulo.
Se toda a lenda não tiver outra base que esta confusão dos dois personagens, confusão que inicialmente foi intencionada, e que logo foi mantendo-se por causa da ignorância geral, resultará impossível admitir a existência histórica de Simão, o Mago, e então terá que qualificar de puramente mítico tudo que se disse dele, e por conseguinte terá que descartá-lo. A maior parte dos escritores eclesiásticos antigos contam que Simão foi em princípio discípulo de João, o Batista, e de Dositeo. (Outros, pelo contrário, fazem de Dositeo um discípulo de Simão.) Tenhamos em conta este parentesco ideológico, porque logo voltaremos para ele.
Observaremos, em primeiro lugar, que tinha "seu evangelho". No manuscrito antigo de um tratado siríaco sobre O Santo Concílio da Nicéia, redigido pelo bispo Maruta de Maiferkat, amigo de João Crisóstomo e embaixador do imperador Arcadio -filho de Teodosio-, ante o rei da Pérsia Jezdegerd, em finais do ano 399, destaca-se a existência de um Evangelho de Simão, o Mago, utilizado pela seita que leva seu nome (os simonianos). Está dividido em quatro partes, daí seu nome: Livro dos Quatro rincões do Mundo. Por conseguinte se dirige ao mundo inteiro, incluídos os gentis, o que, tendo em conta a época, resulta muito paulino.
São Ireneu, por sua parte, justifica a existência dos quatro evangelhos canônicos com o mesmo argumento: "Como há quatro regiões no mundo onde estamos, e quatro ventos principais, assim...", etc. (Cf. Ireneu, Contra as heresias, III, XI, 8.) Conviremos em que a analogia é mais que singular, já que Paulo também tem "seu evangelho" (utilizando a mesma expressão).
Citaremos simplesmente:
"Deus julgará [aos homens] segundo meu evangelho..." (Paulo, Romanos, 2, 16.)
"Ao que pode lhes confirmar segundo meu evangelho..." (Paulo, Romanos, 16, 25.)
"Se nosso evangelho ficar ainda velado, é para os que vão à perdição..." (Paulo, II Coríntios, 4, 3.)
"Porque se viesse algum [...] pregando outro evangelho que o que abraçastes, suportariam-no de bom grado. Entretanto, eu acredito que em nada sou inferior a esses preclaros apóstolos." (Paulo, II Coríntios, 11, 4.)
"Maravilho-me de que tão logo lhes passem do que lhes chamou pela graça de Cristo a outro evangelho diferente...." (Paulo, Gálatas, 1, 6.)
"Mas embora nós ou um anjo do céu lhes anunciasse outro evangelho distinto do que lhes anunciamos, seja anátema..." (Paulo, Gálatas, 1, 8.)
"Para a qual lhes chamou Deus por meio de nosso evangelho..." (Paulo, II Tessalonicenses, 2.14.)
"Lembre-se de que Jesus Cristo, da linhagem de David, ressuscitou dentre os mortos, segundo meu evangelho..." (Paulo, II Timóteo, 2, 8.)
Como se vê, o Paulo do Novo Testamento não cita nenhum outro evangelho canônico mais que o seu, só apresenta este, e anatematiza a quem quer que pregue outro. Conviremos em que um recém-chegado à coorte apostólica isso supõe uma grande audácia! A menos que o seu fora, realmente, o primeiro evangelho conhecido por este nome...
Voltando para Simão, o Mago, observaremos que segundo Justino, toda a cidade da Naplusa, a antiga Siquem, era simoneana (cf. Justino, Apologia, I, XXVI, 3). Os seguidores de Simão, portanto, não constituíram uma pequena capela fechada ou secreta, mas sim, sem lugar a dúvidas, Simão foi o chefe de uma grande Igreja. Igual a Paulo.
Simão, o Mago ia acompanhado de uma mulher de grande beleza. Segundo a mordaz afirmação dos heresiólogos. Simão a comprara no lupanar onde se encontrava, em Tiro.


Do mesmo modo, parece que Paulo brigou com a grande Igreja por causa de uma companheira: "Acaso não temos direito a levar conosco uma irmã que seja nossa mulher?". (Cf. Paulo, I Coríntios, 9, 5.)
Por outra parte, logo veremos que, segundo as Homilias Clementinas (atribuídas à Clemente de Roma), Simão, o Mago, fora criado em Tiro, com outros dois meninos, por uma mulher de raça cananéia, Justa, quão mesma foi ao encontro de Jesus quando este se retirou à Fenícia. (Cf. Mateus, 15, 21-24, e Marcos, 7, 24-25.)
E como já vimos, Saulo fora criado com Herodes, o Tetrarca e Menahem (Atos, 13, 1). Igual a Simão, o Mago, criara-se com outros dois meninos.
Segundo as mesmas Homilias Clementinas (II Homilia, XXI-XXII). Simão, o Mago, tem um discípulo chamado Aquilas. Segundo os Atos dos Apóstolos, Paulo tinha um discípulo chamado Aquilas (Atos, 18, 2; Romanos, 16, 3; II Timóteo, 4, 19; I Coríntios, 16, 19).
Não nos propomos realizar um estudo completo da vida de Simão, o Mago, outros se encarregaram disso antes de nós; não obstante, seus estudos não estavam motivados pelo mesmo. Nos propomos unicamente investigar nos documentos procedentes da tradição judeu-cristã, para ver se é possível estabelecer a existência histórica de nosso personagem. Em outros termos, a questão que se expôs nesta obra, antes das conclusões afirmativas que se desprendem, era a seguinte: Existiu na história um mago chamado Simão, ou o nome do Simão o Mago não era a não ser um pseudônimo que seus adversários aplicavam ao apóstolo Paulo?
Os documentos aos quais fazemos alusão antes são de natureza e valor diversos. Pertencem, ao menos em sua forma atual, à diferentes períodos da Gênesis do cristianismo. Alguns deles sofreram transformações e perderam sua fisionomia primitiva. Esse é o caso das Homilias Clementinas, os Atos de Pedro e de Paulo e os próprios Atos dos Apóstolos como vimos na Confissão de São Cipriano.
Os atos de Pedro e de Paulo
Achamo-nos aqui em presença de um documento histórico mais importante do que pudesse parecer a primeira vista. Porque se em sua forma atual os Atos de Pedro e de Paulo não se remontam mais à frente do século V, não obstante é seguro que os elementos de que se compõem, e que se foram confundindo paulatinamente, remontam-se à épocas muito diversas, e o exame do conteúdo demonstra que, em algumas de suas partes, a obra não é afinal de contas, mais do que produtos literários do grande partido judeu-cristão dos dois primeiros séculos. No referente à crítica, remetemos ao Lipsius (Die Quellen der rómischen Petrussage, P. 47, sq.), e ao Hilgenfeid (Novum Testamentum extra canonem receptum).
Os Atos de Pedro e de Paulo, tal como nos chegaram, estão destinados a nos contar a luta, cheia de prodígios e de acontecimentos sobrenaturais, como sempre, que em Roma enfrentam os dois apóstolos contra Simão, o Mago, assim como a morte ignominiosa deste e o martírio glorioso dos dois primeiros.
A primeira vista a leitura deste escrito pode parecer inútil do ponto de vista histórico, e parece como se tão somente a fantasia tomasse parte na redação desses relatos, onde se dá rédea solta ao amor pelo maravilhoso. Nenhum exegeta católico ou protestante moderno lhe concedeu jamais o mínimo crédito por essa mesma razão.
Vemo-nos transportados imediatamente em que Paulo chega a Roma, depois de seu naufrágio nas águas de Malte. Pedro lhe tinha precedido a "grande Babilônia" para combater ali Simão, o Mago, que é ali muito honrado e parece ter obtido um grande êxito. Não demora para cercar a luta entre Simão e Pedro, que rivalizam em prodígios e cujos inesgotáveis milagres lhes concedem o favor das multidões, naturalmente. Produzem-se conversões inclusive na própria família do imperador Nero, e a discussão termina por ter lugar em presença deste.
Nero sente uma grande admiração ao ver os prodígios realizados por Simão; é certo que o mago não regula nada para aumentar o ascendente que exerce sobre o imperador. Durante a luta mágica entre Simão e Pedro, Paulo não intervém em nada; esforça-se por desaparecer quase sempre atrás deles, o qual resulta muito curioso. Em realidade, tem-se a impressão de que não está ali. Ao menos sob o nome de Paulo...
Apressado por Nero a que demonstrasse ser "filho de Deus" mediante algum prodígio, Simão prometeu voar do alto de uma torre, coisa que, efetivamente, teve lugar no Campo de Marte. Mas no momento em que Nero, cheio de admiração ante o prodígio levado a cabo pelo mago, reprovava aos apóstolos seu ódio contra ele, ante as orações de Pedro, os demônios que sustentavam Simão, o Mago no ar lhe deixaram cair e fugiram, e Simão, ao precipitar-se contra o chão, pereceu estatelado. Recolheram-no, enterraram-no, e em vão esperou Nero a prometida ressurreição.


A morte do mago, que era o favorito do Nero, teve como conseqüência o martírio dos dois apóstolos. Paulo foi decapitado no caminho de Ostia, e Pedro foi crucificado, a pedido próprio, cabeça abaixo. No momento do suplício, as multidões amotinadas queriam matar ao imperador, mas Pedro o impediu, narrando com este fim a aparição com que Jesus o tinha honrado. Quando Pedro fugia dos legionários que se lançaram em sua busca. Jesus lhe apareceu no caminho. Pedro lhe perguntou: "Aonde vai, Senhor?". "À Roma, para ser crucificado de novo", respondeu Jesus. Pedro compreendeu então seu dever, e se apressou a voltar sobre seus passos para entregar-se àqueles que lhe buscavam.
Observe-se que se diversos exegetas puderam reprovar, com razão, aos Atos dos Apóstolos que tivessem falseado a verdade histórica ao dar um marco imaginário às relações de tais apóstolos entre si, destinado a velar as diferenças com vistas a uma conciliação, essa recriminação está justificada afortiori quando se trata dos Atos de Pedro e de Paulo, cuja tendência, por certo nada dissimulada, consiste em representar Pedro e Paulo trabalhando de comum acordo em perfeita união, e tentando imitar-se mutuamente em palavras e atos.
Pedro é aqui um perfeito paulino, e Paulo um perfeito judeu-cristão: "acreditamos e acreditam, dizem os cristãos de Roma, que o mesmo que Deus está longe de separar os dois grandes astros que criou [o Sol e a Lua], igualmente impossível é nos separar um do outro, quer dizer, ao Paulo de Pedro, e ao Pedro de Paulo". (Cf. Atos de Pedro e de Paulo, V.)
E em presença de Nero, Pedro diz: "Tudo o que Paulo disse é verdade" (op. cit., LX), e Paulo replicará a seguir: "O que ouviu de Pedro acredita-o como se tivesse saído de minha boca, já que temos uma mesma opinião, temos um só Senhor: Jesus Cristo" (op. cit., LXII).
A verdade é menos idília, e mais validaria não falar de seu cordial entendimento! Porque, torpemente, as passagens aonde está mais acentuada a união dos dois apóstolos são precisamente aqueles onde foi menos em realidade. Em concreto, nas prerrogativas que Paulo reivindica continuamente em suas Epístolas para sua missão pessoal, direito que lhe discutiam, aberta ou silenciosamente, seus adversários, os cristãos judaizantes.
É muito fácil distinguir, através do véu jogado sobre a tradição primitiva pelo autor anônimo dos Atos de Pedro e de Paulo, os principais elementos da luta que dividia à Igreja primitiva em geral.
Em primeiro lugar, o autor anônimo não parece ter em conta os Atos dos Apóstolos. Põe de relevo o ódio dos judeus contra Paulo. Estes, ao inteirar-se de sua chegada à capital do Império romano, obtêm de Nero, de cujo favor parecem gozar, a decapitação de Paulo. Em troca, como vimos nos textos (Atos, 28, 11-22), não acontece nada disso à chegada de Paulo à Roma.
Mas há uma passagem dos Atos de Pedro e de Paulo que não deixa nenhuma dúvida sobre o que no fundo pensava o autor anônimo, quem, sem querer, traiu-se a si mesmo.
Em um momento dado, às diatribes contra os circuncisos responde Pedro: "Se a circuncisão for falsa, por que Simão está circunciso?"
Esta simples pergunta demonstra que não se trata de que Simão estivesse circunciso por decisão de seus pais na hora de seu nascimento, já que então ele não seria responsável por tal circuncisão. A frase atribuída ao Pedro demonstra que Simão, pelo contrário, é responsável por sua própria circuncisão. Portanto se fez circuncidar livremente, em uma época de sua vida. E logo veremos, ao estudar o verdadeiro motivo da conversão de Saulo-Paulo, que não estava circunciso de nascimento, por decisão de seus progenitores, mas sim se fez circuncidar por vontade própria, quando era adulto; que esta circuncisão não lhe serve para o que ele esperava, e que daí provinha seu rancor contra o rito que havia transtornado sua vida.
Entretanto, a insidiosa pergunta de Pedro incomodou enormemente Simão, o Mago, quem terminou por replicar que, nos tempos em que circuncidaram ele, a circuncisão era uma ordem de Deus. E Pedro lhe replicou imediatamente: "assim, se a circuncisão for boa, por que Simão, entregou você a circuncisos, e os tem feito condenar e matar?".
Mas nos textos canônicos ou nos apócrifos jamais se falou de um Simão, o Mago, que fora à caça dos cristãos procedentes do judaísmo, e que os detivera, mandasse-os a prisão e os fizesse julgar e condenar. Essa recriminação só podia aplicar-se a um apóstolo dos gentis, Saulo-Paulo, antes de sua conversão. E com isto temos uma prova mais de que o Simão, o Mago, do autor anônimo dos Atos de Pedro e de Paulo não é outro, em seu espírito, que o Paulo dos Atos dos Apóstolos, declarado adversário de Pedro e de seu judeu-cristianismo. Recordem as discussões entre eles, tanto em Jerusalém como na Antioquia.
Por outra parte, o favor de que goza Simão, o Mago, ante o imperador não é outra coisa que uma malevolente alusão ao tratamento de favor de que foi objeto Paulo em Roma durante sua primeira permanência ali, depois de sua apelação ao César.
E o relato, tão curioso, sobre a pretendida morte de Simão, o Mago, voando pelos ares e logo estatelando-se contra o chão não é mais que outra ficção destinada a ridicularizar ao odiado apóstolo. Lipsius (cf. Die Quellen der rómischen Petrussage) e Schenkel (cf. Bibel-Lexicon, art. "Simão der Magier") relacionam muito inteligentemente a pretensão de Simão de elevar-se pelos ares com as revelações de Paulo ao glorificar-se, em seu II Coríntios (12, 1-6), de ter sido elevado até o terceiro céu e ter sido introduzido no Paraíso (sic), e de ter ouvido "palavras inefáveis que não lhe está permitido a um homem expressar". Esta relação pôde estabelecer-se com grande facilidade dado que, nos tempos de Nero, um homem chamado Ícaro se fez célebre por tentar voar: "Ícaro, já em seu primeiro intento, caiu perto do assento do imperador, a quem salpicou de sangue". (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Nero, VI, XII.)
Tratava-se, como é óbvio, de um prestidigitador, um ilusionista que tentou renovar, evidentemente com outras técnicas, a tentativa do personagem mitológico de dito nome, filho de Dédalo, ao evadir do labirinto de Creta. Nos jogos circenses os atores levavam os nomes de personagens mitológicos aos que momentaneamente encarnavam. Dion Crisóstomo (Orat., XXI, 9) e Juvenal (Sat., III, 79) relatam-nos o mesmo fato que Suetonio.


As homilias clementinas
As Homilias Clementinas, atribuídas a Clemente de Roma, estão constituídas unicamente pela modificação de um escrito mais antigo, que os exegetas convieram em denominar o Escrito Primitivo. Esta obra, que data dos anos 220-230, segundo uns foi redigida no Oriente (Síria ou Transjordânia), e segundo outros em Roma. O autor desconhecido do Escrito Primitivo já tinha recolhido outros manuscritos anteriores, como os Cerigmas, predicações atribuídas ao Simão-Pedro, uns Atos de Pedro diferentes e mais antigos que os que se conhecem como de Verceil, uma obra judia apologética e, por último, uma espécie de novela de aventuras em que entra em jogo uma família pagã da época dos Antoninos.
O mais importante deles era os Cerigmas, texto judeu-cristão extremamente hostil a Saulo-Paulo, a seus princípios doutrinais, a sua cristologia revolucionária, verdadeira heresia para o messianismo inicial. Os Cerigmas desapareceram, só ficam as Homilias Clementinas, e o interesse desta obra radica precisamente em colocarmo-nos em presença das confrontações, freqüentemente com extrema violência, que opuseram ao Simão-Pedro e Saulo-Paulo.
Para fazer desaparecer essa hostilidade e unificar as duas correntes que pouco a pouco foram convertendo-se no cristianismo, os escribas anônimos que expurgaram, censuraram e interpolaram os escritos antigos a partir do reinado de Constantino imaginaram Simão, o Mago, e substituíram-no por Paulo.
Observar-se-á, em primeiro lugar, que não deixa de ser assombroso que uma obra como as Homilias Clementinas ignore totalmente o apóstolo Paulo na época em que foi composta e além disso em troca, cite em abundância, ao Simão, o Mago.
Por outra parte, nas recriminações que faz Pedro àquele ao que chama "o homem inimigo"*, é impossível não reconhecer ao Paulo. Julgue-se, se não, pelos seguintes fragmentos:
*[O cardeal Jean Daniélou recorda em sua obra Théologie du Judéo-Christianisme que nos Kerygmas de Pedro, "o homem inimigo" designa à Paulo, "considerado como responsável do rechaço das observações. Recordamo-lhes que Ireneu e Epífano consideravam esse rechaço de Paulo como uma das características do ebionismo". (Cf. R. P. Jean Daniélou, op. cit., p. 72.) Estamos, pois, autorizados a concluir que durante um tempo estreitos contatos uniram Paulo e a seita dos ebionitas. Seus membros estavam, portanto, em condições de saber perfeitamente as origens deste. E Epífano, recordemo-lo, conta que eles afirmavam que Paulo tinha como progenitores uns gentis, quer dizer pagãos, e não judeus. Está perfeitamente claro (supra, p. 33).]
Carta de Pedro ao Santiago: Conheço, meu amigo, seu ardente zelo pelos interesses que nos são comuns a todos. Acredito, pois, que devo rogar-lhe que não comunique os livros de meus ensinos que lhe envio a nenhum homem originário da Gentilidade, nem a nenhum homem de nossa raça antes de havê-lo provado [...] Porque alguns dos que vêm da Gentilidade rechaçaram meus ensinos, conforme à Lei, para adotar o ensino, contrário à Lei, do homem inimigo e seus frívolos bate-papos. E inclusive em minha vida alguns tentaram, mediante interpretações artificiosas, desnaturalizar o sentido de minhas palavras a fim de conseguir a abolição da Lei. De lhes emprestar ouvidos, acreditaria-se que se trata de uma doutrina pessoal minha que eu não ouso pregar abertamente! Longe de mim semelhante conduta! Porque seria atuar contra a Lei de Deus, promulgada pelo ministério de Moisés, e cuja duração eterna pregou Nosso Senhor quando disse:
"O céu e a terra passarão, mas nenhum jota nenhuma til da Lei passarão". (Marcos, 13, 31, e Mateus, 5, 18.)
Segundo as Homilias Clementinas (II, XVI-XVII), há sempre dois mensageiros; quem chega primeiro é o homem das trevas, o segundo é o homem da luz, já que as trevas precederam à luz, segundo a Gênesis (1, 1-3), e para respeitar esse simbolismo, na antiga Israel começava o dia quando se punha o sol, ao iniciar a noite. E para as Homilias esta regra aparece autentificada pelo fato de que Caim chegou antes que Abel, Ismael antes que Isaac, Esaú antes que Jacob. Desde aí procede o primitivo sacrifício dos primogênitos. E então se compreenderá melhor o que segue. Fala Pedro: "Guiando-se por esta ordem de sucessão, poderia compreender-se de quem procede Simão, o Mago, que chegou antes que eu às nações, e a quem eu relevo, que cheguei depois que ele e que lhe aconteceu como a luz às trevas, a ciência à ignorância, a cura à enfermidade. Assim, tal como disse o profeta verídico, tem que aparecer sempre primeiro um falso evangelho, pregado por um impostor...". (Homilias Clementinas, II, xVII.)
Pois bem, como vimos, Saulo-Paulo insinua que seu evangelho é o primeiro e condena os outros. Isso está muito claro.
Há ainda uma espécie de controvérsia em que o leitor reconhecerá facilmente Paulo e suas teorias gnósticas, de cara ao Pedro, estrito reflexo da ortodoxia testamentária. Vejamos: "por exemplo, Simão, o Mago, deve manter amanhã conosco uma discussão pública em que ousará atacar a soberania do Deus Único. Tem a ousadia de contribuir um grande número de entrevistas extraídas das próprias Escrituras e afirmar que há vários deuses, um dos quais é diferente do Criador do Universo e superior a ele". (Homilias Clementinas, III, X.)
Paulo, por sua parte, sustenta os mesmos princípios: "Posto que, embora há quem são chamados deuses, seja no céu, seja na terra, do mesmo modo que existem muitos deuses e muitos senhores..." (Paulo, I Coríntios, 8, 5.)
Em outro momento Pedro e Paulo polemizaram violentamente sobre o valor revelador de uma visão. É evidente que se tratava da maneira em que Paulo pretendia ter recebido seu evangelho -quer dizer, do próprio Jesus-, durante sua ascensão ao terceiro céu, e de sua recepção no paraíso: "Se for mister glorificar-se, embora não é bom, virei às visões e revelações [que eu obtive] do Senhor. Sei de um homem em Cristo que, faz quatorze anos -se no corpo, não sei; se fosse do corpo, tampouco sei, só Deus sabe- foi arrebatado até o terceiro céu, E sei que este homem foi arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis que um homem não deve repetir". (Paulo, II Coríntios, 12, 1-6.)
*[As pretensões de Paulo de escalar o mundo invisível até o terceiro "céu" (muito mais tarde Mahomé sustentará a mesma afirmação) caem violentamente contradições pelo evangelho de João: "E nada subiu jamais ao céu", senão é o que há sob o céu, o Filho do homem, que está no céu" (João, 3, 13). E mais, o próprio Paulo se contradiz a si mismo em sua Epístola aos Romanos, ao declarar: "Não digas em teu coração: Quem subirá ao céu? Isto é, para rebaixar a Cristo", (cf. Epístola aos Romanos, 10, 6). Dito de outro modo, segundo esse texto Paulo reconhece que unicamente seu "Cristo" metafísico é capaz de subir ao céu, porque já desceu dele.]
Vejamos agora o texto das Homilias Clementinas a este respeito:
"Para ouvir estas palavras, Simão, interrompendo Pedro, disse-lhe: "Sei a quem vai dirigido isso que você diz. Mas não quero repetir as mesmas coisas para o refutar e perder o tempo em discursos que não estão em minhas intenções. Vangloria-se que ter compreendido muito bem os ensinos de seu Mestre, por havê-lo visto claramente com seus próprios olhos e ouvido com seus próprios ouvidos, e declara que lhe era impossível a nenhum outro chegar a um resultado semelhante mediante visões ou aparições". (Op. cit., XVII, XIII.)
Segue uma longa discussão sobre o valor das visões e dos sonhos, e sobre a qualidade do que os recebe, a qual economizaremos ao leitor. Mas logo vêm umas passagens que devemos citar, porque não permitem já duvidar de que se trata da presença de Paulo, sob o nome de Simão, o Mago. Julgue-se. Segue falando Pedro: "assim, se nosso Jesus se deu a conhecer também a si, e se tiver conversado consigo em uma visão, é por cólera contra si, que é seu adversário! Por isso é pelo que falou mediante visões, sonhos ou inclusive revelações exteriores. Por outra parte, pode um voltar-se capaz de ensinar, só por uma aparição? Você dirá, possivelmente:
"É possível". Mas então, por que o Mestre permaneceu um ano inteiro conversando com pessoas despertas? E como daremos crédito ao que você diz, isso de que apareceu? E como é que lhe apareceu, se seus sentimentos estiverem contra seus ensinos? E se por ter gozado durante uma hora de sua presença e de suas lições se tornasse apóstolo, então publica bem alto suas palavras, explica sua doutrina, ama a seus apóstolos, e deixa de combater a mim, que vivi com ele! Porque é contra mim, a rocha firme, o fundamento da Igreja, contra quem você erige como adversário. Se não fosse meu inimigo, não procuraria com suas calúnias desprezar meus ensinos para impedir que se acredite em minha palavra, quando eu o que faço é repetir o que ouvi da própria boca do Senhor, e não me representaria como um homem condenado e desconsiderado". (Homilias Clementinas, XVII, XIX.)


Esta última frase faz alusão, evidentemente, a seu passado de bandoleiro, fora da lei, que constituiu durante muito tempo a existência cotidiana do Simão-Pedro. Que o leitor se tome a moléstia de ler ou reler, em nosso anterior volume, o capítulo intitulado "O dízimo messianista", e então compreenderá que Paulo não ignora tal passado, e que dele tira argumentos contra Pedro entre os gentis.
Mas como aplicar esta controvérsia ao Simão o Mago? Porque em nenhuma parte nos diz que Jesus lhe tivesse aparecido! E desta discussão se desprende, inconfundivelmente, que é ao Paulo a quem vão dirigidas as diatribes do Pedro.
Entre as Homilias Clementinas e os Atos dos Apóstolos há, além disso, uma séria contradição na hostilidade que nos pinta, ao opor Simão, o Mago, e Pedro, e a resignação que o primeiro nos mostra nos citados Atos: "Quando Simão viu que pela imposição das mãos dos apóstolos se comunicava o Espírito Santo, ofereceu-lhes dinheiro dizendo: dêem-me também esse poder de impor as mãos, de modo que receba o Espírito Santo. Mas Pedro lhe disse:
Que seu dinheiro pereça consigo, pois acredita que com dinheiro poderia comprar o dom de Deus. Não tem nisto parte nem verdade, porque seu coração não é reto diante de Deus. Arrependa-se, pois, desta sua maldade e roga ao Senhor que o perdoe se for possível este mau pensamento de seu coração, porque vejo que incorre em fel de amargura e em laço de iniqüidade. Simão respondeu: Roguem vós por mim ao Senhor, para que não me sobrevenha nada do que disseram". (Atos, 8, 18-24.)
Este fragmento dos Atos é, sem sombra de dúvidas, um dos mais importantes dentre todos os que se relacionam, de perto ou de longe, com nosso estudo, já que incorpora uma explicação a esse antagonismo de Paulo e de Pedro, que nenhum exegeta de boa fé saberia negar. Porque só aos ingênuos e aos ignorantes terá que lhes deixar a lenda dos "bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo", unidos em Roma por um martírio, senão semelhante, ao menos cronologicamente associado. Terá que ignorar a frase dúbia de Eugenio de Cesaréia sobre a suposta morte de Simão-Pedro em Roma: "conta-se que sob seu reinado [Nero César], ao Paulo cortaram a cabeça em Roma mesmo, e que parece que ao Pedro crucificaram ali. E isto o confirma o fato de que até agora [ano 340] levam o nome de Pedro e de Paulo os dois cemitérios desta cidade". (Cf. Eusébio de Cesaréia, História eclesiástica, II, XXV, 5.)
As provas da morte em Jerusalém, no ano 47, do Simão-Pedro e de seu irmão Jacobo (aliás Santiago) demo-las no primeiro volume, de maneira que não voltaremos para isso.
Entretanto, continuam umas analogias muito curiosas entre as atividades de Paulo e o oferecimento "simoniaco" de Simão, o Mago. Esse produto das coletas efetuadas pelo Paulo em Síria, na Macedônia, na Acaia, em proveito unicamente da comunidade de Jerusalém, que está dirigida pelo Pedro (cf. Atos, 4, 32-35; 6, 1; 5, 1-11), coletas inegáveis, porque aparecem enumeradas nas Epístolas de Paulo (I Coríntios, 16, 1-2; II Coríntios, 8, 20; Romanos, 15, 26), todos esses movimentos e oferecimentos de dinheiro não evocam curiosamente a oferta de compra do poder iniciático por parte de Simão, o Mago?
Há, com efeito, uma passagem das Epístolas de Paulo onde este parece defender-se de uma acusação de simonia discreta e larvada. Julgue-se: "Atuamos assim a fim de que ninguém nos vitupere com motivo desta importante soma que passa por nossas mãos". (Cf. Paulo, II. Coríntios, 8, 20.)
E nosso homem precisava no versículo precedente que fizera chegar esse dinheiro à comunidade de Jerusalém por meio de um irmão que "além disso foi eleito pelas igrejas para nosso companheiro de viagem nesta obra de beneficência, que nós levamos a cabo para glória do Senhor e em prova de nossa boa vontade". (Cf. Paulo, II, Coríntios, 8, 18-19.)
Assim, as igrejas desconfiam, escolheram elas mesmas quem levara o dinheiro à cidade de David, e não é Paulo. Além disso, o tal Paulo tem que dar ainda a prova de boa vontade. Tudo isto é menos sinônimo de gracioso entendimento do que palavrório adocicado e lenitivo dos Atos quer fazer acreditar.


Há ainda outro ponto em comum entre Simão, o Mago, e Paulo.
Simão denomina a si mesmo "veículo" psíquico do "poder de Deus", qualificado também de "Grande". Pois bem, em Samaria, no setor do estádio, exumou-se uma estátua à Koré, aliás Perséfone, deusa-virgem, guardiã dos mortos e protetora das sementes, já que o grão se identificava com o morto, ao qual se introduz na terra a fim de que reviva. Por isso mesmo, Koré, era também a deusa-virgem restituidora dos vivos. Em Samaria encontraram-se numerosas dedicatórias a esta divindade, e sobre uma delas pode-se ler: "Uma só deidade, a poderosa, Koré a Grande, a Indômita". (Cf. A. Parrot. Samaria, capital do reino de Israel.)
E em Samaria os Atos nos dizem que: "Todos, do menor até o maior, escutavam atentamente ao Simão, e diziam: Este é o poder de Deus, chamado Grande". (Atos, 8, 10.)
Voltemos a ler as Epístolas de Paulo; a expressão poder de Deus é, na linguagem paulina, sinônimo de Deus mesmo (cf. Romanos, 1, 16; I Coríntios, 1, 18-24, e 2, 5; II Coríntios, 6, 7, e 13, 4; Colossenses, 2, 12; II Timóteo, 1, 8).
E mais, utiliza o esoterismo iniciático do grão de trigo, depositado na terra para morrer, a fim de renascer, que, como acabamos de ver, é um dos elementos da iniciação aos "mistérios" de Koré a Grande: "Mas dirá algum: Como ressuscitam os mortos? Com que corpo vêm? Insensato! O que você semeia não recobra vida se primeiro não morrer. E o que semeia não é o corpo que tem que nascer, a não ser um simples grão, pondo no caso, trigo ou de alguma outra semente. E logo Deus lhe dá o corpo conforme quis, e a cada uma das sementes seu próprio corpo". (Cf. Paulo, I Coríntios, 16, 35-38.)
Agora bem, nestes versículos não parece que se trate da famosa ressurreição do Julgamento Final, mas sim de um renascimento que acontece à morte, de um princípio de vida que, neste renascimento, não segue necessariamente a mesma ordem ontológica que antes, já que sua nova orientação depende de Deus. Aqui não se trata já de metem-somatosis, mas sim de metempsicosis. Além disso, voltamos a estar em presença dos "mistérios" de Koré a Grande, deusa guardiã dos mortos, restituidora dos vivos, e por isso mesmo protetora das sementes. E aqui, como vemos, Paulo se expressa rigorosamente igual faria Simão, o Mago, que provavelmente devia ser "sacerdote de Koré e dos Dioscuros" (cf. A. Parrot, op. cit.).
Nas Epístolas de Paulo subsistem diversos fragmentos que revelam esta identidade entre Saulo-Paulo, príncipe herodiano, enfronhado de magia nabatea, e Simão da Samaria, chamado Simão, o Mago, personagem imaginário, inventado para as necessidades da causa dos séculos IV e V, quando "arrumaram" o texto primitivo dos Atos dos Apóstolos. Como prova nos basta o que segue: "Dou graças a Deus de não ter batizado a nenhum de vós, a não ser Crispo e Gayo, para que ninguém possa dizer que fostes batizados em meu nome. Batizei também à família de Estéfanas, mas fora destes não sei de nenhum outro. Que não me enviou Cristo a batizar, a não ser a evangelizar". (Cf. Paulo, I Coríntios, 1, 14.)


"Ou é que ignoram que quantos fomos batizados em Jesus Cristo, em sua morte fomos batizados? Com Ele fomos sepultados pelo batismo para participar de sua morte [...] Pois, se tivermos morrido em Cristo, acreditam que também viveremos nele, pois sabemos que Cristo, ressuscitado dentre os mortos, já não morre." (Cf. Paulo, Romanos, 6, 3 e 8.)
Estes dois fragmentos das Epístolas de Paulo demonstram:
a) que seu autor não recebeu jamais os poderes apostólicos, o mais essencial dos quais residia na função batismal;
b) que esses poderes apostólicos lhe foram denegados por seus primitivos possuidores, os "apóstolos", já que é seguro que não esqueceria lhes solicitar a transmissão, e sua ausência implica, por conseguinte, uma negativa;
c) que essa negativa a lhe transmitir os citados poderes apostólicos o identifica ipso facto, e de maneira irrefutável, com Simão, o Mago, que sofreu a mesma negativa por parte de Simão-Pedro (Atos, 8, 18-24);
d) que antes Paulo só possuía "seu evangelho", igual a Simão, o Mago, como já relatamos.
Nos objetará que Paulo possuía os poderes do exorcismo, posto que são evocados nos Atos dos Apóstolos (19, 11-17).
Não é nada surpreendente em um homem iniciado na magia. Recordemos sua herança, o parentesco com os príncipes-sacerdotes analisados antes na religião da Iduméia e Nabatea. Vejamos esse texto: "E Deus fazia milagres extraordinários pelas mãos de Paulo, até o ponto de que se aplicavam sobre os doentes tecidos ou lenços que tinham corpos doloridos, e as enfermidades lhes abandonavam, e os maus espíritos saíam. Alguns exorcistas judeus ambulantes tentaram invocar sobre aqueles que tinham espíritos malignos o nome do Senhor, dizendo: Vos conjuro por Jesus, que prega Paulo! Os que faziam isto eram sete filhos da Sceva, um dos supremos sacerdotes judeus. O espírito maligno lhes respondeu: Conheço Jesus e sei quem é Paulo, mas vós quem sois? E o homem em cujo interior estava o espírito maligno se equilibrou sobre eles, enfureceu-se em dois e os maltratou de tal maneira que fugiram desta casa nus e feridos". (Atos, 19, 11-17.)
Mas a resposta a esta objeção é óbvia, posto que nos precisa que se tratava de exorcistas judeus, filhos de um exorcista judeu célebre por suas curas. Com efeito, quão únicos possuíam esses poderes e os utilizavam eram os discípulos de Jesus. A Palestina daquela época estava infestada, como quase todo o Oriente Médio, de magos itinerantes que pretendiam encontrar em todo doente uma vítima de um ou de vários espíritos malignos. E a cura dependia então, não da medicina daqueles tempos, mas sim da magia. Esta magia, principalmente constituída por conhecimentos botânicos ou psicomagnéticos (hipnotismo, magnetismo curativo), servia às vezes para adoecer previamente a um futuro cliente, a fim de podê-lo curar triunfalmente a seguir, suprimindo os "ataques secretos" contra sua saúde. Rasputin fez o mesmo na Rússia com o Zarevich, para captar a admiração e a confiança do czar e da czarina, seus pais.
Observemos, de passagem, que ainda em nossos dias o exorcismo é a única medicina admitida pela Igreja. Não admitiu o bem baseado da amputação cirúrgica até que se sentou no trono papal Pio XII, e em 1829 o Papa Leão XII condenou solenemente a vacinação:
"Quem quer que proceda à vacinação deixa de ser filho de Deus. A varíola é um julgamento de Deus, a vacinação é um desafio ao Céu".
Equivale a dizer que a medicina foi tão somente tolerada!
Para concluir este capítulo sobre a provável identidade entre o personagem imaginário de Simão, o Mago, e Saulo-Paulo, o melhor que podemos fazer é recordar que são Cipriano (decapitado em Cartago no ano 240), que também tinha sido mago, e Eusébio da Cesaréia (morto no ano 40) acreditaram útil comparar Saulo-Paulo com São Cipriano, um mago convertido (supra, pp. 33-34).
Possivelmente seus manuscritos originais diziam mais sobre o tema, mas os monges copistas da Alta Idade Média passaram indubitavelmente por ali. Seja como for, essa dupla alusão terá que acrescentar à tese que identifica Simão, o Mago, e Saulo-Paulo, e no momento se basta a si mesmo...