As Gradações da Queda Adâmica
Louis Claude de Saint Martin
O Filósofo Desconhecido


O eloqüente escritor em questão faz referência ao despertar de Adão dizendo, que Milton nunca teria alcançado esta elevação se não conhecesse a verdadeira religião: eu respondo que, se Milton conhecesse o verdadeiro Cristianismo, o Verbo, teria retratado Adão de outra forma.

A arte não tem outros segredos senão o de fazer comparações entre assuntos que conhece. A arte ensina que a criança é uma criatura que "desperta para a vida, abre seus olhos e não sabe de onde vem". Milton fez um quadro de Adão: o retratou apenas como uma grande criança, com a diferença de que deu a ele um sublime senso de sua própria natureza e poderes eminentes para dar nome as coisas, o que uma criança não possui; além do mais, tendo o Pai possuído tais poderes, seria difícil explicar porque o filho não, já que o fruto deveria ser como a árvore.

Ora, a partir da criança e do selvagem os materialistas assim como os ideologistas tem traçado seus sistemas de percepção, origem da linguagem, etc.; ao não irem além deste ponto, acabaram animalizando todo o nosso ser. Contudo, a Bíblia (pois é dela que falamos aqui) que se supõe ter sido o guia de Milton, mostra Adão sob outro aspecto.

Em primeiro lugar, podemos crer que, surgindo das mãos de seu Criador, Adão não estava sujeito ao sono, já que foi apenas após ele ter dado nome as coisas que o Criador fez cair um sono sobre ele, durante o qual a mulher fora, retirada de suas costelas ou de suas essências poderosas.

Segundo, é provável que este sono e a separação da mulher já fora a conseqüência de alguma mudança iniciada em Adão; já que o Criador havia dito (no primeiro capítulo) quando terminou a criação que "tudo o que havia feito era muito bom" e então Ele diz (no segundo capítulo) que "não era bom para o homem estar sozinho".

Em terceiro lugar, se este "dar nomes" fora executado por Adão ao deixar as mãos de seu criador ou somente após esta mudança ter tido início não importa, o certo é que, de acordo com o texto, foi antes de seu sono.

Sendo este caso, então Adão desfrutava de grande luz e vasto conhecimento já que o Criador o havia colocado acima de todas as obras feitas por Suas mãos, o havia instalado no jardim dos deleites, encarregando-o de cuida-lo, confiando todas as plantas ao seus cuidados, até mesmo a árvore do conhecimento do bem e do mal, da qual Ele o proibiu de comer.

Assim, Adão não tinha necessidade de despertar para a vida, mas, ao contrário, ele é quem despertou a vida nas criaturas; isto é bem diferente do que ocorre com as crianças; mas a arte oculta estas coisas de Milton e o entrega à sua imaginação.

Também, de acordo com a arte, Milton descreve os amores de Adão e Eva, supondo que estivessem em seu primeiro estado celestial, mas eles não estavam, pois ele reconhece seus sexos e comemora a consumação de seu casamento, que produziu fruto tão ruim na pessoa de Caim; isto só poderia ocorrer segundo a lei animal.

Ora, como poderiam conhecer o puro amor, se já estavam sob a lei animal? E como poderiam conhecer o amor animal, se não conhecessem seus órgãos bestiais, já que vemos, no homem, que a idade do amor é aquela em que a sua bestialidade fala mais alto? Além disso, como poderiam conhecer esta bestialidade se não tivessem sido culpados, já que, segundo o texto, foi só a partir deste momento que souberam que estavam nus? Se foram culpados, no que se transformaram seus sentimentos celestiais, sua pureza e inocência, tão brilhantemente traçados pelo poeta?

Sem dúvida, eles não possuíam aquela falsa modéstia, que é um sentimento secundário derivado da educação; eles tinham sim, um profundo senso de vergonha que surgiu da comparação de seu estado bestial presente, com aquele que acabavam de perder, pois seus olhos se abriram para o atual estado vil e degradante e se fecharam para as maravilhas divinas.

Milton nada sabia sobre as gradações do pecado de nossos primeiros pais. Uma destas gradações pode, de fato, ter permitido o desfrutar de alguns deliciosos momentos no jardim do Éden, após a mudança ter tido início; neste momento, estavam mais preocupados com os mandamentos do Soberano e com a proibição que Ele havia lhes imposto do que com seus próprios amores e encantos; quando este estado passou, estavam demasiadamente ocupados com a árdua e dolorosa situação de conviverem juntos de forma bastante tranqüila e suave; isto cabe apenas aos amantes cegos e idólatras de nosso mundo, que não tem mais nada para fazer.

Milton copiou aquelas formas de amor, dos amores terrestres, embora os tenha adornado de forma magnífica. Sim, sua longa descrição dos amores de Adão e Eva prova que o poeta tinha apenas pincelado a verdade. As Escrituras são mais concisas nos detalhes desta natureza. Com relação a este assunto, é dito apenas que Adão conheceu Eva, que ela concebeu e deu à luz Caim, dizendo "Adquiri um homem com a ajuda do Senhor". Repito que o Cristianismo ou o Verbo não pode se glorificar de ter contribuído para o surgimento de todas estas ficções de Milton, e está longe de reivindicá-las.

Não é que, como apreciador da beletrística, eu não admire o talento poético de Milton e as magníficas cenas que produz; Fico até satisfeito em nome da religião, que ele nos trace algumas sombras da felicidade celestial e do puro amor, que é sua base; por causa destas doces pinturas, perdoou seus anacronismos: mas, como amante da verdade, sinto que ele e todos os seus companheiros, não descrevam as coisas de forma mais exata, já que se supõe que os poetas falem a língua dos deuses. A licença poética o permite preencher, à sua maneira, as telas da história dos homens; isto não é permitido na história do homem, onde somente a Verdade tem o direito de falar.

Estes poucos exemplos são suficientes para mostrar a imensa distância existente entre Cristianismo e a arte da literatura religiosa e para fixar os limites da influência do Cristianismo na poesia. Nossas observações irão se aplicar a qualquer uma das grandes obras ou eloqüentes críticas; para não dizer nada do fato de que muitos de seus autores, apesar do esplêndido caráter religioso de seus escritos, não só não acreditam no Cristianismo, ou seja no Verbo Eterno, como não acreditam também no Catolicismo, que deveria ser a sua representação na terra.

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