A Chave dos Grandes Mistérios
Eliphas Levi

Solução do quarto problema


ARTIGO IV

A Religião Provada pelas objeções que lhe são opostas
As objeções que se pode fazer contra a religião podem ser feitas seja em nome da razão, seja em
nome da fé.
A ciência não pode negar os fatos da existência da religião, de seu estabelecimento e de sua
influência sobre os acontecimentos da história. É proibido a ela tocar no dogma, o dogma pertence
inteiramente à fé.
A ciência arma-se comumente contra a religião com uma série de fatos que tem o direito de apreciar,
que de fato aprecia com severidade, mas que a religião condena mais energicamente ainda do que a
ciência.


Assim fazendo, a ciência dá razão à religião e censura a si própria; carece de lógica, acusa a
desordem que toda paixão rancorosa introduz no espírito dos homens e a necessidade incessante que
ele tem de ser reerguido e dirigido pelo espírito de caridade.
A razão, por sua vez, examina o dogma e considera-o absurdo.
Mas, se não o fosse, a razão compreendê-lo-ia; se ela o compreendesse, não seria mais a fórmula do
desconhecido.
Seria uma demonstração matemática do infinito.


Seria o infinito finito, o desconhecido conhecido, o incomensurável medido, o indizível nomeado.
Isso quer dizer que o dogma só deixaria de ser absurdo diante da razão, para se tornar, diante da fé,
da ciência, da razão e do bom senso reunidos, o mais monstruoso e o mais impossível de todos os
absurdos.
Restam as objeções da fé dissidente.
Os israelitas, nossos pais em religião, censuram-nos por termos atentado contra a unidade de Deus,
por termos mudado uma lei imutável e eterna, por adorarmos a criatura no lugar do criador.
Essas censuras são fundamentadas numa noção perfeitamente falsa do cristianismo.
Nosso Deus é o Deus de Moisés, Deus único, imaterial, infinito, o só adorável e sempre o mesmo.
Como os judeus, acreditamo-lo presente em todos os lugares, mas, como eles deveriam fazer,
acredítamo-lo vivo, pensante e amante na humanidade e adoramo-lo em suas obras.
Não mudamos sua lei, pois o decálogo dos israelitas é também a lei dos cristãos.
A lei é imutável, porque está fundamentada em princípios eternos da natureza; mas o culto exigido
pelas necessidades do homem pode variar e modificar-se com os homens.
O que o culto significa é imutável, mas o culto modifica-se como as línguas.
O culto é um ensinamento, é uma língua, é preciso traduzi-lo quando as nações não o compreendem
mais.


Traduzimos e não destruímos o culto de Moisés e dos profetas.
Adorando Deus na criação, não estamos adorando a própria criação.
Adorando Deus em Jesus Cristo, é somente Deus que adoramos, mas Deus unido à humanidade.
Tornando a humanidade divina, o cristianismo revelou a divindade humana.
O Deus dos judeus era inumano, porque eles não o compreendiam em suas obras.
Somos, portanto, mais israelitas que os próprios israelitas. No que acreditam, acreditamos com eles e
melhor que eles. Acusam-nos de estarmos separados dele e são eles, ao contrário, que querem estar
separados de nós.


Esperamo-los de coração e braços abertos.
Somos, como eles, discípulos de Moisés.
Como eles, viemos do Egito e detestamos sua servidão. Mas nós estamos na terra prometida, e eles
obstinam-se em permanecer e morrer no deserto.
Os muçulmanos são os bastardos de Israel, ou melhor, são seus filhos deserdados, como Esaú.
Sua crença é ilógica, pois admitem que Jesus é um grande profeta, e tratam os cristãos como infiéis.
Reconhecem a inspiração divina de Moisés e não vêem os judeus como irmãos.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi


Acreditam cegamente em seu cego profeta, o fatalista Maomé, o inimigo do progresso e da
liberdade.
Não tiremos, no entanto, de Maomé a glória de ter proclamado a unidade de Deus entre os árabes
idólatras.
Encontram-se no Alcorão páginas puras e sublimes.
É lendo essas páginas que se pode dizer com os filhos de Ismael: Não existe outro Deus senão Deus,
e Maomé é seu profeta.
Há três tronos no céu para os três profetas das nações; mas, no fim dos tempos, Maomé será
substituído por Elias.


Os muçulmanos nada censuram nos cristãos, eles injuriam-nos.
Chamam-nos de infiéis e de giaurs, isto é, cães. Não temos nada a lhes responder.
Não se deve refutar os turcos e os árabes, é preciso instruí-los e civilizá-los.
Restam os cristãos dissidentes, isto é, aqueles que, tendo rompido o laço de união, declaram-se
estrangeiros à caridade da Igreja.
A ortodoxia grega, irmã gêmea da Igreja romana, que não cresceu desde sua separação, que não tem
mais importância nos faustos religiosos, que, desde Fócio, não inspirou uma única eloqüência; Igreja
que se tornou inteiramente temporal e cujo sacerdócio não é mais que uma função regulada pela
política imperial do czar de todas as Rússias; múmia curiosa da Igreja primitiva, colorida e dourada
com todas as suas lendas e com todos os seus ritos que os popes não compreendem mais; sombra de
uma Igreja viva, mas que quis parar quando essa Igreja avançava e que não é mais que uma silhueta
apagada e sem cabeça.


Depois, os protestantes, esses eternos reguladores da anarquia, que romperam o dogma e tentam
sempre preenchê-lo com raciocínios, como o tonel das Danaides; esses fantasistas religiosos cujas
inovações em sua totalidade são negativas, que formularam para uso próprio um desconhecido
pretensamente mais conhecido, mistérios mais explicados, um infinito mais definido, uma imensidão
mais restrita, uma fé mais duvidosa, que quintessenciaram o absurdo, cindiram a caridade e tomaram
atos de anarquia pelos princípios de uma hierarquia para sempre impossível; esses homens que
querem realizar a salvação somente pela fé, porque a caridade lhes escapa e que nada mais podem
realizar, mesmo sobre a terra, pois seus pretensos sacramentos não são mais que farsas alegóricas,
não dão mais a graça, não fazem mais ver a Deus nem tocar em Deus, não são mais, em uma palavra,
os signos da onipotência da fé, mas as testemunhas forçadas da impotência eterna da dúvida.
Foi, portanto, contra a própria fé que a reforma protestou. Os protestantes tiveram razão contra o zelo
inconsiderado e perseguidor que queria forçar as consciências. Exigiram o direito de duvidar, o
direito de ter menos religião ou de não a ter absolutamente; derramaram seu sangue por esse triste
privilégio; conquistaram-no, possuem-no, mas não nos tirarão o de lastimá-los e de amá-los.


Quando sentirem novamente a necessidade de acreditar, quando seu coração revoltar-se por sua vez
contra a tirania de uma razão falseada, quando se cansarem das frias abstrações de seu dogma
arbitrário, das vãs observâncias de seu culto sem efeito, quando sua comunhão sem presença real,
suas igrejas sem divindade e sua moral sem perdão os aterrorizarem enfim, assim que ficarem
doentes da nostalgia de Deus, não se levantarão como o filho pródigo e não virão jogar-se aos pés
do sucessor de Pedro dizendo-lhe: Pai, pecamos contra o céu e contra vós, já não somos dignos de
ser chamados vossos filhos, mas incluí-nos ao menos entre vossos mais humildes servidores.
Não falaremos da crítica de Voltaire. Esse grande espírito estava dominado por um ardente amor
pela verdade e pela justiça, mas faltava-lhe esta retidão do coração que dá a inteligência da fé.

Voltaire não podia admitir a fé, porque não sabia amar. O espírito de caridade não se revelou a essa
alma sem ternura, e ele criticou amargamente um fogo cujo calor não sentia e uma lâmpada cuja luz
não via. Se a religião fosse tal qual viu, teria tido mil vezes razão em atacá-la e seria preciso
ajoelhar-se diante do heroismo de sua coragem. Voltaire seria o messias do bom senso, o hércules
destruidor do fanatismo. Mas este homem ria demais para compreender aquele que disse: Felizes dos
que choram, e a filosofia do riso nunca terá nada em comum com a religião das lágrimas.
Voltaire parodiou a Bíblia, o dogma, o culto, depois ridicularizou, achincalhou, vilipendiou sua
paródia.


Apenas aqueles que vêem a religião na paródia de Voltaire podem se ofender com isso. Os
voltairianos assemelham-se às rãs da fábula que saltam sobre as vigas e, em seguida, zombam da
majestade real. São livres para tomar a viga por um rei, são livres para refazer esta caricatura romana
de que, outrora, Tertuliano ria, e que representava o Deus dos cristãos na figura de um homem com
cabeça de asno. Os cristãos darão de ombros ao ver essa brejeirice e pedirão a Deus pelos pobres
ignorantes que pretendiam insultá-los.


O senhor conde Joseph de Maistre, depois de ter representado, num de seus mais eloqüentes
paradoxos, o carrasco como um ser sagrado e como uma encarnação permanente de justiça divina na
terra, queria que se erguesse para o ancião de Ferney uma estátua pela mão do carrasco. Existe
profundidade nesse pensamento. Voltaire, com efeito, foi também, no mundo, um ser ao mesmo
tempo providencial e fatal, dotado de insensibilidade para a realização de suas terríveis funções. Foi,
no domínio da inteligência, um executor das grandes obras, um executor armado com a própria
justiça de Deus.


Deus enviou Voltaire entre o século de Bossuet e o de Napoleão para aniquilar tudo o que separa
esses dois gênios e reuni-los num só.
Era o Sansão do espírito, sempre pronto a sacudir as colunas do templo; mas, para fazê-lo girar, a
contragosto, a pedra do moinho do progresso religioso, a Providência parecia ter cegado seu coração.



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