ECCE HOMO
Louis Claude de Saint Martin - O Filósofo Desconhecido


Se houvéssemos permanecido fieis ao nosso santo destino, deveríamos manifestar todos e cada um, segundo o próprio dom, a glória do Princípio eterno. Mas sem sombra de dúvida, devemos reconhecer não haver observado a lei suprema, considerando a nossa atual miséria e simultaneamente o fato que o Autor da justiça não poderia abandonar-nos injustamente em um estado de sofrimento e de privação. O abuso dos nossos privilégios nos induziu a uma manifestação oposta aquela a nós solicitada, disto deriva portanto, que ao invés de sermos testemunhas de glória e de verdade somos somente testemunhas de desonra e de falsidade.

Visto que hoje toda a família humana partilha da mesma punição, como a um tempo partilhou das mesmas recompensas, cada indivíduo deveria oferecer um sinal particular da humilhação atual como ofereceu um sinal particular de potência na ordem triunfal, segundo o dom que lhe competia. Pretendo dizer que cada um deveria oferecer um sinal particular da pobreza e da privação a qual a justiça suprema nos submeteu no mundo inferior; a fim que em presença de um sinal tão diferente daquele que deveríamos manifestar, se possa dizer de nós com insulto e escárnio: Ecce Homo: Eis O Homem será o nosso título degradante e nos recobrirá de humilhação desvelando os frutos amargos que o horror semeou em nós, enquanto deveríamos brilhar na glória se o nosso nome houvesse conservado o seu autêntico caráter.

É suficiente dirigir o olhar à condição dos homens sobre a terra, para julgar a importância de tal justiça.

Quem de nós não pagou de um modo ou de outro o próprio tributo de humilhação? Onde está a nossa força? Onde está a nossa potência? Onde está a nossa luz? Exceto a indigência a desordem e a doença, quais outros testemunhos apresentam hoje as nossas diversas faculdades? Todas as influências que exercitamos ao nosso redor, não são talvez somente influências letais? Existe talvez um só homem sobre a terra que não esteja em condições de oferecer um ou mais sinais desta pesada reprovação?

Oh! homem Se não estás ainda tão consciente para derramar lágrimas sobre a tua miséria, pelo menos não te lances até o ponto de julgá-la um estado de felicidade e de saúde. Não permitas deixar-te levar pela sedução dos mitos. Não te comportes como uma criança doente que para de gritar porque se distraiu com o ruído de um brinquedo que se lhe agita em frente aos olhos, e se acalma, como se não devesse mais temer o mal, momentaneamente tranqüilizado pelo fascínio do brinquedo. A tua mente se deterá por pouco sobre as ilusões que te distraem do mal; mas este não tardará em fazer-se sentir, e tu, Oh! homem, assustado pelo perigo que te ameaça, descobrirás com qual justo fundamento a Sabedoria procura colocar-te em guarda dos teus males exortando-te a sarar.

Todavia, malgrado o rigor das leis que a justiça nos impõe, as conseqüências da nossa condenação, se tornariam muito mais suportáveis uma vez reconhecida a suprema equidade do nosso Juiz. Se trata de reconhecer a bondade de suas reais intenções a nosso respeito e de nos resignarmos voluntariamente à inevitável potência de seus decretos.

Algumas vantagens imediatas derivariam do exemplo mútuo naturalmente oferecido pêlos indivíduos. O estado enfermo, débil e tenebroso dos nossos semelhantes, seria para nós um meio visível de instrução chamando continuamente à nossa mente a degradação da família humana.

De outra parte nós retribuiríamos aos outros o mesmo favor oferecendo aos seus olhos um espetáculo análogo. Assim representando uns aos outros o reflexo do pecado e da humilhação comum, estaremos todos em condição de reconhecer a iluminada justiça da sentença que atraímos sobre nós; será este o momento inicial do nosso processo de regeneração o qual procura avivar-nos a Sabedoria suprema. Essa é a única estrada que pode levar-nos ao soberano Princípio do amor do qual recebemos forma, e que nós mesmos fomos forçados a banir-nos dos domínios que nos havia confiado.

Oh! valentes homens das letras, servi-vos da vossa eloquência, para delinear com cores persuasivas e encorajantes o quadro instrutivo da família humana, o estado no qual os indivíduos representam uns aos outros outras tantas lições viventes.

A visão da miséria comum, suscitará então nos indivíduos um horror salutar de si próprios e um interesse apaixonado pela reabilitação de todos os membros desta grande família. Mostre-lhes no ato de nutrir-se do pão das lágrimas, enquanto observam uns ao lado dos outros, o silêncio triste da dor, sem interrompe-lo se não para fazer perceber o ritmo acossante da expiação, afim que o homem possa dizer do homem: - Irmão, fundamos sobre uma falsa humanidade o reino da morte e este nos abraça agora com as suas trevas. Não escondamos tal homem de mentira, mantendo-o ainda fechado nas suas desgraças e nas suas baixezas; procuremos fazê-lo emergir ao aberto afim que o vento vivo penetre-o até a raiz, e o reino da morte estremecido nos seus fundamentos, possa desabar e perder-se no fundo dos próprios abismos.

Mas o homem está bem longe de oferecer um espetáculo similar, nem de prostrar-se de fronte a irrevogável justiça que não cessa de soar sobre ele; o mesmo princípio de desordem que nos fez decair da nossa dimensão original, nos persegue, nos acompanha e ainda anima a nossa degradada existência. Como nos mascarou a fonte mortal do nosso extravio, assim este dissimula, dia após dia, os frutos e as conseqüências. O único objetivo de tal princípio destrutivo, é aquele de prolongar a existência do fundamento do mal afim que, perpetuando a nossa ilusão, este possa perpetuar o próprio reino, que infelizmente para nós, fundamenta-se somente sobre os nossos desenganos e sobre as nossas trevas. Aquela força enganosa nos persuade de que seguindo as suas insinuações sedutoras não nos degradamos; e agora que a seguimos, esta procura convencer-nos que não estamos decaídos e nos induz a persuadir da mesma forma todos aqueles que nos cercam. Em outras palavras, nos leva a impor o sinal de nossa específica condenação aos nossos semelhantes, ao invés de confessá-lo junto com o tipo de privação que nos é imposta. O mesmo princípio deteriorante teve a habilidade de aumentar a carga que nos exaure, com as conseqüências da própria degradação, e com os múltiplos desejos que nos devoram e que nos ocultam o caminho a seguir para levar-nos em direção a reintegração. Os homens procuram portanto, aparecer como se fossem efetivamente dotados dos dons que pertenceriam a nossa verdadeira natureza se todos não houvéssemos cavado um enorme abismo entre nós e a verdade. Os mesmos se preocupam em ocultar a falta de virtudes, a carência de talento, os defeitos físicos e os defeitos que derivam dos privilégios de algumas formas sociais e políticas. O olho de nossos semelhantes tornou-se para nós o único objetivo e o único incentivo para as nossas ações e para os nossos movimentos. A superficialidade assim nos desvia da evolução, que representava o objetivo da Sabedoria, quando, banindo-nos da sua presença exilou-nos todos no mesmo lugar. A contínua ilusão ao invés nos leva sempre mais à ruína e à completa destruição.

De resto desejaríamos aparecer aos olhos do universo, qual divindade própria e verdadeira. Não tendo conseguido tal empresa, não quisemos renunciar a ela completamente, e procuramos ser investidos do nome sacro, pelo menos na opinião dos nossos semelhantes, e de impressionar-lhes com a nossa superioridade, onde estejam dominados, e possam iludir-nos com o doce som da palavra Ecce Deus, ao invés se irritar-nos e cobrir-nos de vergonha com a degradante definição Ecce Homo.

Em resumo, nos comportamos como aqueles seres lesos em todos os membros, que aspiram ainda a beleza e a uma vida normal, e procuram mascarar a própria mal formação com todo tipo de artifícios, sem preocupar-se com a fragilidade dos meios empregados com tal objetivo.

O sacerdote uma vez privado da verdadeira potência e da verdadeira luz, é obrigado a transmitir uma fé cega no caráter e no fundamento assim como o filósofo e o orador suplicam com os sofismas e com a formalidade da eloquência, a falta dos princípios fundamentais, necessários a estabelecer o reino da verdade. Sempre por tais razões, os legisladores exaltam os direitos dos povos e a potência das nações, mesmo não tendo claro os verdadeiros fundamentos da soberania política. A final também o hipócrita busca com dissimulações e astucia, o bom nome que não pode esforçar-se em obter com as virtudes; sem considerar aqui todos os abusos, todas as baixeza e todas as injustiças que afligem em toda parte as associações humanas.

Portanto, nós homens adotando meios desviados e corruptos, substituímos a salutar confissão do nosso estado humilhante, pelo quadro de uma glória que é somente fruto de mentira. Enfim a humanidade, ao invés de buscar entre os próprios componentes consolo recíproco, no seu estado de prova, não cessa de atrair males contínuos.

De fato, o emprego habitual dos nossos dias é semelhante a um sacrificar-se recíproco em quanto que percorrendo o caminho traçado pela consciência da nossa fragilidade poderíamos reciprocamente encaminhar-nos no bem.

Os caminhos não naturais sobre os quais o homem se retarda diariamente terminam com contínuas quedas e desilusões; em vão os esforços que ele cumpre para destruir a humilhante sentença da própria condenação, fazem-na mais vergonhosa para ele, acrescentando novas perspectivas de decadência a sua degradação original. Ainda inutilmente, ele sente que os meios dos quais se serve são apenas sugestões e não tem uma base bastante profunda para podê-lo conduzir ao verdadeiro objetivo. Todos estes remédios não tendo em si o princípio da vida, são mais nocivos para o seu espírito de quanto não o são as substâncias das quais ele recorre para remediar as carências do físico. Não obstante isto o homem continua a prosseguir no caminho improvisado pela própria imprudência, e continua a esperar que lhe venha cancelado o humilhante título: Ecce Homo..

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