OS SEGREDOS DO GÓLGOTA
Robert Ambelain


Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.

PRIMEIRA PARTE

9 - A ressurreição de Lázaro
Sendo o primeiro na ressurreição dos mortos, tinha que anunciar a luz ao povo e aos gentis.
Atos, 26, 23
Acabamos de ver que André, apóstolo, não é outro que Eleazar, cuja abreviatura é Lázaro. Ele é o "ressuscitado" célebre. Sem dúvida, os espíritos desconfiados há muito tempo, observaram que essa viagem mais à frente não lhe deu a conhecer nada novo, e que, tudo o mais, comportou-se como um homem comum, emergindo de um profundo sonho, natural ou provocado. Vejamos um pouco mais de perto o relato dos fatos.
Este não nos contribui isso mais que o evangelho citado por João. Antes aparecera o episódio da filha de Jairo, chefe da Sinagoga (Lucas, 8, 41), mas como nos precisa que a menina dormia e não estava morta (Jesus disse; Lucas, 8, 52), não se trata somente de um fenômeno de catalepsia, e não de uma ressurreição.
No caso de Lázaro, aliás Eleazar, aliás André, (43) a coisa é muito distinta. Este episódio só figura em João, 11, 1 a 44. Aqui está: "Havia um doente, Lázaro, da Betânia, da aldeia de Maria e de Marta, sua irmã. Era esta Maria a que ungiu ao Senhor com ungüento e lhe enxugou os pés com seus cabelos, cujo irmão Lázaro estava doente. Enviaram, pois, às irmãs a lhe dizer: "Senhor, que amas está doente". Ouvindo-o Jesus, disse: "Esta enfermidade não é de morte, a não ser para Glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ela".
"Jesus amava a Marta e a sua irmã e ao Lázaro. Embora ouviu que estava doente, permaneceu no lugar em que se achava dois dias mais, passados os quais disse a seus discípulos: "Vamos outra vez à Judéia". (44)
Os discípulos lhe disseram: "Rabbi, os judeus lhe buscam para o apedrejar, e de novo vai lá?". Respondeu Jesus: "Não são doze as horas do dia? Se algum caminhar durante o dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo; mas se caminhar de noite, tropeça, porque não há luz nele". Isto disse, e depois acrescentou: "Lázaro, nosso amigo, está dormido, mas eu vou despertar-lhe". Dizendo então os discípulos: "Senhor, se dormir, sarará". Falava Jesus de sua morte, e eles pensaram que falava do descanso do sonho. Então lhes disse Jesus claramente: "Lázaro morreu, e me alegro por vós de não ter estado ali, para que acreditassem. Mas vamos lá". Disse, pois, Tomás, chamado Dídimo, aos companheiros: "Vamos também nós morrer com ele".
"Foi, pois, Jesus, e se encontrou com que levava já quatro dias no sepulcro. Estava Betânia perto de Jerusalém, como a uns quinze dias, (45) e muitos judeus tinham vindo a Marta e a Maria para consolá-las por seu irmão.
Marta, pois, assim que ouviu que Jesus chegava, saiu-lhe ao encontro; mas Maria ficou sentada em casa. Disse Marta ao Jesus: "Senhor, se estivesse aqui, não teria morrido meu irmão; mas sei que quanto peça a Deus, Deus o outorgará". Disse-lhe Jesus: "Ressuscitará seu irmão". Marta lhe disse: "Sei que ressuscitará na ressurreição, no último dia". Disse-lhe Jesus: "Eu sou a ressurreição e a vida; quem acredita em mim, embora morto, viverá; e tudo o que vive e acredita em mim, não morrerá para sempre. Você crê nisto?". Disse-lhe ela: "Sim, Senhor, eu acredito que você é o Messias, o Filho de Deus, que veio a este mundo". (46)
"Dizendo isto, foi e chamou a Maria, sua irmã, dizendo-lhe em segredo: 'O Mestre está aí, e chama-a'. Quando ouviu isto, levantou-se imediatamente e se foi a Ele, pois ainda não tinha entrado Jesus na aldeia, mas sim se achava ainda no local onde encontrara Marta. Quão judeus estavam com ela consolando-a, vendo que Maria se levantava com pressa e saía, seguiram-na pensando que ia ao monumento a chorar ali.
"Assim Maria chegou onde estava Jesus, vendo-lhe, ajoelhou-se a seus pés, dizendo: "Senhor, se estivesse aqui, não morreria meu irmão". Jesus vendo-a chorar, e que choravam também quão judeus vinham com ela, comoveu-se profundamente e se turvou, e disse: "Onde o pusestes?". Disse-lhe: "Senhor, vêm e vê".
"Chorou Jesus.
"E os judeus diziam: "Como lhe amava!". Alguns deles disseram: "Não pôde este, que abriu os olhos do cego, fazer que não morra?".
"Jesus, outra vez comovido em seu interior, chegou ao monumento, que era uma cova tampada com uma pedra. Disse Jesus: 'Tirem a pedra'. Dizendo-lhe Marta, a irmã do morto: 'Senhor, já fede, pois está há quatro dias'. Jesus lhe disse: 'Não disse que, se acreditar, verá a glória de Deus?'. Tiraram, pois, a pedra, e Jesus, elevando os olhos ao céu, disse: 'Pai, dou-te graças porque me escutaste; eu sei que sempre me escuta, mas pela multidão que me rodeia o digo, para que acreditem que me enviaste'. Dizendo isto, gritou forte: 'Lázaro, sai fora!'. Saiu o morto, atado com bandagens pés e mãos, e o rosto envolto em um sudário. Jesus lhes disse: 'lhe soltem e deixem ir'." (João, 111, 1 a 44).
Aqui expor uma pergunta embaraçosa: Como um homem, com a cara envolta, os membros atados com ataduras, e reduzido ao estado de múmia impotente, pôde levantar-se, caminhar, dirigir-se a nenhuma parte?
Voltemos agora atrás, e tomemos de novo ao João, no capítulo 10, e leiamo-o inteiro, até o versículo 39. Tudo o que conta se desenvolve em Jerusalém: "...celebrava-se então em Jerusalém a Dedicação. Era inverno. E Jesus passeava no Templo pelo pórtico de Salomão". (Op. cit., 10, 22-23).
Agora passemos aos versículos 39 a 42 do mesmo capítulo: "(Jesus) Partiu de novo ao outro lado do Jordão, ao local em que João batizara a primeira vez, e permaneceu ali". (Op. cit., 10, 40-41).
O lugar "em que João tinha batizado a primeira vez" é o vau "da Betânia, ao outro lado do Jordão" (João, 1, 28), quer dizer, um lugar situado na Perea, território chamado, efetivamente, "mais à frente do Jordão" (veja o mapa nº 8 do Atlas biblique pour tous, de R.P. Grollenger, O.P., Editions Sequoia). Mas não é a Betânia dos arredores de Jerusalém, situada na Judéia... Assim, a "Betânia, do outro lado do Jordão" (João, 1, 28) é desconhecida, e Enon (mais ou menos: "regiões de fontes"), onde João batizava "porque havia muita água", "perto de Salim" (João, 3, 23), tampouco pode localizar-se com certeza, conforme nos diz R.P. Grollengerg. Mas uma vez mais, e de todo modo, não é a que está situada a uns dois quilômetros de Jerusalém, mas sim essa outra está ao menos a quarenta quilômetros, a vôo de pássaro, do outro lado do chamado Jordão.
João, o Batista, portanto, encontrava-se em Perea, e isso está bem estabelecido. Agora saltemos de João 10, 42 ao capítulo 12,1: "Seis dias antes da Páscoa, veio Jesus à Betânia, onde estava Lázaro, a quem Jesus ressuscitara dentre os mortos". (João, 12, 1). Mas se já estava ali! Se todo o capítulo precedente o mostra precisamente em Betânia! Decididamente, essa localidade converteu-se para nossos piedosos falsificadores em uma verdadeira obsessão, e não sabendo já como sair da miscelânea de mentiras que elaboraram de maneira tão imprudente, caíram por último na incoerência.
E, com efeito, do mesmo modo que o episódio da mulher adúltera (João, 8, 3) não foi introduzido nesse Evangelho até que acessou ao pontificado o Papa Calixto (217-222), a pseudo-ressurreição de Lázaro tampouco apareceu nos "acertos" dos monges copistas até os séculos IV e V. (47) Porque é de todo ponto evidente que se Mateus, Marcos, Lucas e os Atos dos Apóstolos, assim como todas as Epístolas de Paulo, Pedro, Santiago, João e Judas ignoram semelhante prodígio (como é o caso), é que na época de sua redação ninguém conhecia tal relato. E fica em pé uma prova peremptória, a passagem seguinte dos Atos dos Apóstolos, na qual Paulo, então em Cesaréia Marítima, no ano 58, declara ao rei Agripa e à rainha Berenice: "Graças ao socorro de Deus persevero firme até hoje, dando testemunho a pequenos e a grandes e não ensinando outra coisa a não ser o que os profetas e Moisés disseram que aconteceria: que o Messias tinha que padecer, que sendo o primeiro na ressurreição dos mortos, tinha que anunciar a luz ao povo e aos gentis". (Cf. Atos dos Apóstolos, 26, 23). (48)
De modo que Paulo ignora que o primeiro ressuscitado dentre os mortos foi Lázaro, e não Jesus. Pelo visto ignora que no instante do último suspiro deste na cruz da infâmia, ressuscitaram também numerosos mortos, que até então jaziam nas tumbas do cemitério ritual de Jerusalém, próximo às Oliveiras, porque: "A terra tremeu e fenderam as rochas; abriram-se os monumentos, e muitos corpos de Santos que dormiam, ressuscitaram; e saindo dos sepulcros, depois da ressurreição Dele, vieram à cidade Santa e apareceram a muitos". (Cf. Mateus, 27, 52-53). Por conseguinte, se dermos crédito ao João e ao Mateus, Jesus não pôde ser o primeiro ressuscitado dentre os mortos. A menos que tudo isso fora imaginado nos séculos IV e V. Mas se as testemunhas do prodígio que constituiu a ressurreição de Lázaro tiveram uma existência real, convém desvelar o engano de que foram vítimas ou cúmplices, pois vamos ver a forma em que se operou: Em todo o Egito, e principalmente na península do Sinai, existe uma solanacea chamada sekaron, quer dizer, "a embriagadora". Pertence ao subgrupo dos belenos, é a Hyoscyamus muticus. Dela, os antigos extraíam o banj ou bang, que, segundo a dose utilizada, era um potente narcótico ou um simples alucinógeno.
Por outro lado, convém saber o que era o que se entendia por tumba ritual naquela época, em Israel.
Em uma parede rochosa, escavava-se primeiro um estreito corredor em suave pendente e a céu aberto, freqüentemente provido de degraus, a fim de alcançar mais rapidamente a profundidade requerida. Então, na fachada da frente à qual desembocaria o corredor, praticava-se uma abertura muito baixa, que geralmente se obturava com uma laje de pedra. Se a tumba era importante, utilizava-se um molar de grão, que se fazia rodar comodamente por uma sarjeta aberta a direita ou a esquerda.
Depois da abertura assim começada na parede, fazia-se uma primeira câmara funerária, no centro da qual se escavava uma pequena fossa. Ao redor desta fossa corria um alzapié, espécie de caminho de ronda que permitia circular.
Na parede do fundo desta primeira câmara, abria-se outra porta, e escavava-se atrás dela uma segunda câmara funerária. As paredes desta última tinham nichos, nos quais se depositava aos mortos. Esses nichos tinham um pendente destinado a facilitar o fluxo dos líqüidos orgânicos procedentes da decomposição dos cadáveres, e esses líqüidos eram recolhidos em canais que desembocavam na fossa central da primeira câmara.
Quando os esqueletos estavam totalmente descarnados e secos, retirava-os de seu nicho e encerrava-os em pequenos ossários análogos a nossos "féretros de redução". Os líqüidos orgânicos evaporavam-se pouco a pouco na fossa central, mas enquanto esta não secasse, segundo os termos da Lei judia devia-se pintar de branco, com cal vivo, todo o exterior da tumba: escada, laje de fechamento, canal, marco da porta. Desde onde a expressão de "sepulcro branqueado", sinônimo de "lugar impuro". Quando Jesus tratava a seus adversários com este mesmo termo, a injúria não era leve, como se vê. Isto equivalia, com efeito, a qualifica-los de "carniça", ou de "podridão".
Voltemos agora para o Lázaro. Suponhamos que este último aceitasse desempenhar o papel de "compadre" em um engano destinado a inflar desmesuradamente a reputação taumatúrgica de Jesus, e a facilitar assim o recrutamento e a ação do movimento zelote. (49) Absorveria o banj ou um potente narcótico equivalente. Depois de um simulacro de enfermidade de evolução rápida e morte oficial, levar-lhe-iam à uma tumba, sempre dormido, e abandonariam no rodapé funerário, enrolado dentro do sudário habitual e provido das bandagens rituais, e a seguir fechariam a tumba. O herbário secreto do vodu africano ou antilhano possui receitas que permitem fazer acreditar em uma morte aparente sem discussão possível. Era com semelhantes procedimentos que se obtinha, não faz ainda muito tempo, aos famosos zumbis, e o Código penal haitiano se viu na obrigação de ditar penas extremamente severas para lutar contra estes assassinos mentais. No caso de Lázaro não se trata mas sim de um soneca. A permanência de quatro dias nessa capela funerária seria facilitada mediante a contribuição de alimentos e de água por Marta e Maria. A impureza ritual e o medo supersticioso aos mortos descartavam qualquer indiscrição noturna. Não ficava já a não ser acautelar ao Jesus e esperar sua chegada, o "milagre" estava pronto. Quanto ao aroma de putrefação, era fácil de obter no último momento com uma peça de carne passada, no fundo da cova. Quem pode sabê-lo? Possivelmente a pseudo-ressurreição de Lázaro não foi em realidade outra coisa que uma tentativa de ensaio da qual projetava Jesus. A crucificação veio a transtorná-lo todo.
NOTAS COMPLEMENTARES
Observar-se-á que:
1. Maria é a irmã de Lázaro, aliás André (João, 11, 1-4).
2. André é irmão de Simão-Pedro, portanto o é também de Jesus (veja o capítulo 8).
3. Maria é portanto a irmã de Jesus, por via de conseqüência, quão mesmo Marta. Essas são as irmãs anônimas citadas em Mateus (13, 56), e Marcos (6, 3).
4. Agora bem, Maria é a mulher que unge ao Jesus com nardo em Betânia (João, 1-4).
5. E a mulher que unge ao Jesus é precisamente a pecadora pública da cidade, uma prostituta, segundo Lucas (7, 38).
6. Maria, irmã de Jesus, é portanto uma mulher de má vida.
7. E Jesus anima-a a perseverar, apesar das recriminações de Marta, sua outra irmã (Lucas, 10, 42).
Começa-se a compreender aqui por que Jesus declara, em Mateus (20, 31 e 32), que as prostitutas adiantarão aos outros crentes no reino de Deus, e por que as pessoas "de má vida" oferecem-lhe um festim na casa de Levi (Mateus, 9, 10; 11, 19; Marcos, 2, 15-16; Lucas, 5, 30; 14, 1; 15, 2).
10 - Judas-bar-Judas, o gêmeo
Ainda existiam, da raça do Salvador, os netos de Judas, a quem chamavam irmão carnal daquele...
EUSEBIO de Cesaréia, História eclesiástica, III, XX, 1
Esse Judas (em hebreu: Juda, aliás Iehuda, louvor), citado em Marcos (6, 3) como irmão de Jesus, não deve ser confundido com o Judas chamado o Iscariotes (em hebreu: "homem do crime"): "Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: "Senhor...". (Cf. João, 14, 22). Não é outro que Tomás (em hebreu: Taôma, quer dizer, gêmeo). Taciano, discípulo de São Justino, em seu Diatessaron (síntese dos quatro Evangelhos canônicos), declara, por volta do ano 175 de nossa era, que Judas é em realidade seu verdadeiro nome. Mais tarde, São Efrén (306-375), um dos padres da Igreja siriaca, confirmará em seus Hinos.
Terá que saber que Tomás não é, em hebreu, um nome próprio, a não ser simplesmente um adjetivo e um nome comum: taôma, no plural taômim, significa, como dissemos antes, gêmeo. Daí o epíteto de dídimo (em grego: gêmeo) que lhe associa João (11, 16 e 20, 24). A existência de um irmão gêmeo de Jesus foi já longamente demonstrada, textos antigos em mão, em uma obra precedente, a que remetemos a lector. (50) Aqui nos limitaremos a citar, simplesmente, um evangelho muito velho, em seu manuscrito copto do século V, o Evangelho de Bartolomeu: "Ele (Jesus) falou com eles em língua hebraica, dizendo: "Saúde a ti, Pedro, meu zelador, saúde a ti, meu gêmeo, segundo cristo!"... (Cf. Evangelho de Bartolomeu, 2º fragmento, Imprimatur: Paris, 1904, Firmin-Didot, édit.).
Outro irmão de Jesus, cuja identidade continua um mistério, aparece citado por Hipólito de Tebas e por José, o Eclesiástico, sob o nome de Sidonios, "o de Sidón". (Cf. Abade Mine, Patrologie, XVI, P. 187). Possivelmente foi em sua casa onde se refugiou Jesus quando fugiu à Fenícia (Mateus, 15, 21). (51) Também poderia ser o mesmo que os Evangelhos canônicos citam como Jesus-bar-Aba ou Barrabás, já que o grande Orígenes assegura que em manuscritos antigos se dava a esse bandido o nome de Jesus. (52)
O que tem que particular no caso do Judas é que os escribas anônimos do século IV, que lhe puseram a máscara de Tomás sobre o rosto para dissimular que Jesus, "Filho único do Altíssimo", tinha um irmão gêmeo, é que aqueles falsificadores lhe deram diversos nomes.
Cita-lhe, efetivamente, com o sobrenome de Tomás em Mateus (13, 55), Marcos (6, 3), Atos (1, 13), Judas (1, 1). O fato de que se tratasse do mesmo personagem que o irmão gêmeo de Jesus nos confirma isso Eusebio da Cesaréia: "O mesmo Domiciano ordenou suprimir aos descendentes de David. Uma antiga tradição conta que alguns hereges denunciaram aos descendentes de Judas, que era um irmão carnal do Salvador, como pertencentes à raça de David e aparentados com o próprio Cristo". (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, III, XIX). Eusebio contribuía aí o texto exato de Hegesipo em suas Memórias, compostas por cinco volumes, e que Eusebio declara tê-lo em suas mãos. E este Hegesipo, judeu converso, viveu de 110 a 180 de nossa era na Palestina, visitou diversas igrejas, entre as quais se achava a de Roma sob o Papa Aniceto (155-166), e, uma vez retornado à sua pátria, compôs seus Hypomnemata, aonde se documentou amplamente Eusebio da Cesaréia.
Por conseguinte, se por um lado Tomás é o mesmo que Judas, e é deste modo o irmão gêmeo de Jesus, o nome deste último é, efetivamente, como diziam Taciano e São Efrén, Judas, em hebreu Iehuda ou Juda, como seu pai carnal Judas de Gamala. Onde tudo isto se complica, embora resulte bastante revelador, é na versão protestante da Bíblia do pastor Louis Segond, quem nos diz que Judas é também a mesma pessoa que Lebeo, citado em Mateus (10, 3), e que é Tadeu (op. cit.). E é também o sobrinho de Levi, aliás Mateus. Dessas relações familiares se desprende, pois, que o chamado Mateus-Levi era o tio de Jesus (e provavelmente o irmão de Judas da Gamala ou de Maria), já que era tio do gêmeo do chamado Jesus... Como se vê, entre os "apóstolos" nos encontramos realmente "em família".
Em uma obra precedente, (53), já assinalamos que esse Tomás, taôma em hebreu, ou gêmeo, fora vendido como escravo a fim de lhe permitir atravessar as fronteiras da Judéia sem temor de ser identificado e detido pela polícia romana, depois de ter interpretado seu papel de pseudo-ressuscitado. Mas a seguir teve que voltar forçosamente ao terreno das atividades zelotes, já que o encontramos executado por ordem de Cuspio Fado, procurador de Roma em Judéia, em finais do ano 45 e princípio de 47 de nossa era. Também neste ponto, consultemos ao Flavio Josefo: "Enquanto Fado era procurador de Roma, um mago chamado Theudas (54) persuadiu uma grande multidão de gente para que lhe seguisse, levando seus bens até o Jordão. Pretendia ser profeta e que, por ordem dele, as águas do rio se dividissem para assegurar a todos uma passagem fácil. Dizendo isto, seduziu à muitas pessoas. Mas Fado não lhes permitiu abandonar-se a sua loucura. Enviou contra eles um esquadrão de cavalaria, que os surpreendeu, matou a muitos deles e capturou com vida a muitos outros. Quanto ao Theudas, que foi feito prisioneiro, os a cavalo cortaram a cabeça e levaram à Jerusalém. Isto é, pois, o que aconteceu aos judeus durante o tempo em que Cuspio Fado foi procurador". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XX, V, 1).
Para encobrir melhor a verdadeira personalidade do irmão gêmeo de Jesus, deram-lhe, pois, vários nomes: Judas, Theudas, Tadeu, Lebeo, Tomás. Mas, o que é pior, pouco a pouco fizeram dele um filho de Santiago, o Menor, pretendido "filho de Alfeu", quem seria decapitado em Jerusalém no ano 44. E todos os exegetas católicos e protestantes, ao mesmo tempo, estiveram de acordo.
Acabamos de ver, à luz de uma verificação precisa, o crédito que pode conceder-se a conclusões tão "autorizadas" como "unânimes" quando são interessadas, porque é bem evidente, tendo em conta os documentos antigos que contribuíram as provas necessárias, que Tomás não foi outro que o irmão gêmeo de Jesus, e não um vago parente longínquo.
De todo modo, fica um ponto de pé, muito importante, e que se deve sublinhar. No relato do fim trágico de Judas, aliás Tomás, aliás Lebeo, aliás Tadeu, encontramos o princípio e o costume de colacarem a disposição comum dos bens próprios dos fiéis do movimento zelote, entre as mãos dos chefes da comunidade, e que ilustra tão bem o assassinato de Ananías e de Saphira, sua esposa, à mãos dos jovens da guarda de Simão-Pedro. (55) Isto explica a configuração progressiva, desde Ezequías e Judas da Gamala, desse enorme tesouro zelote cuja existência nos revelam os documentos do mar Morto e que já encontramos (veja o capítulo 1).
NOTAS COMPLEMENTARES
A gente poderia sentir saudades de que o irmão gêmeo de Jesus aceitasse esse papel de ressuscitado, tendo em conta sua incredulidade. De fato, esse episódio foi fabricado integralmente, e precisamente para descartar em adiante qualquer caráter de verossimilhança no referente à existência do chamado gêmeo... Para prova, basta-nos com o que segue: De Troas, Ignacio, bispo de Antioquia, redigiu por volta do ano 110 ou 115 de nossa era uma Epístola aos Esmirnos, quando se encontrava em caminho para Roma, onde seria executado. Pois bem, nessa carta dirigida à comunidade da Esmirna, contribui-nos a prova de que o episódio dessa incredulidade de Tomás, todavia não se imaginou naquela época: "Para mim, eu sei e acredito que, inclusive depois de sua ressurreição, Jesus Cristo tinha um corpo. Quando se aproximou de Pedro e a seus companheiros, o que lhes disse?: "me toquem, me apalpem, e vejam que não sou um espírito sem corpo". Imediatamente todos lhe tocaram, e ao contato íntimo de sua carne e de seu espírito, acreditaram". (Cf. Ignacio de Antioquia, Epístola aos Esmirnos, III).
Porque esse mesmo episódio da incredulidade de Tomás não o encontramos mais que no evangelho de João (20, 24). Agora bem, esse evangelho era desconhecido antes do ano 190. E nós não o possuímos materialmente até o ano IV. Antes o cético era Simão-Pedro! E Mateus, Marcos e Lucas ignoram a incredulidade de Tomás, e com razão!
Se a gente recordar que Ignacio foi o discípulo daquele Simão-Pedro, o que faz dele um dos quatro "Padres apostólicos", ver-se-á obrigado a admitir que aquele se achava nas fontes mesmas da tradição oral.
Quanto a Tomás, discretamente evacuado fora da Palestina, em um convento de escravos, guardou-se bem de continuar esse perigoso jogo. Podemos ler a seu respeito o seguinte nos Stromates de Clemente de Alexandria: "Escolhidos não todos confessaram ao Senhor pela palavra, e não todos morreram em seu nome. Entre eles se contam Mateus, Felipe, Tomás, e muitos outros... " (Cf. Clemente de Alexandria, Stromates, IV, IV).
Se se recordar que Clemente era o discípulo direto de Pantenio, quem por sua vez era discípulo direto do apóstolo Marcos, vê-se que o chamado Clemente se achava nas fontes mesmas da tradição oral ele também. E confirma implicitamente o que antecede. Uma tradição eclesiástica pretende que o beijo de Judas Iscariotes teve como finalidade designar realmente ao Jesus, e evitar aos legionários romanos que procedessem a deter seu sósia, quer dizer, a seu irmão gêmeo. Mas para esta tradição o sósia era "seu primo irmão, Santiago, o Menor". Nos contentemos sabendo que tinha um sósia, isso já constitui uma confissão ...
11 - Felipe
Eu conheço outros escritos, um pouco menos antigos (por poucos séculos) que os textos de Qumrân, mas mais ricos, e que ilustram, com extremada abundância de detalhes, um dos lados mais obscuros desses primeiros séculos de nossa era.
Jean Doresse, Les Livres secrets des gnostiques d'Egypte, Introdução
Com efeito, em 1947 descobriu-se em Nag-Hamadi, no Alto o Egito, uma biblioteca gnóstica-cristã extremamente rica. Recebeu o nome de biblioteca de Khenoboskion, antiga Shenessit do antigo o Egito, e estava composta por quarenta e nove manuscritos, redigidos bem em subakhmímico, bem em saídico. Um deles leva por título: Epístola de Pedro ao Felipe, seu irmão maior e seu companheiro". Está redigido em saídico, dialeto do Alto Egito, chamado também copto tebano.
Contribui-nos a prova de que no século V, época de sua transcrição costumavam-se ainda correntemente os laços de parentesco carnal entre Jesus e seus "discípulos". Nós já demonstramos, por exemplo, que Simão-Pedro era o irmão menor de Jesús. (56) Se Felipe era irmão de Pedro, é que o era também de Jesus.
Sobre este apóstolo dispomos de um duplo testemunho de Clemente de Alexandria. Era de Betsaida, "a cidade de André e de Pedro" (João, 1, 44), o que dá a entender que devia ser mais ou menos primo ou irmão destes, e portanto de filiação davídica também. Vejamos o que diz Eusebio de Cesaréia: "Não obstante, Clemente, cujas palavras acabamos de ler, enumera a seguir o que acaba de ser dito, àqueles dos apóstolos que estiveram casados, por causa daqueles que condenam o matrimônio: 'Rechaçarão também aos apóstolos? Pedro e Felipe tiveram filhos. Felipe inclusive deu à suas filhas à homens. E Paulo não vacilou em saudar em uma Epístola a sua companheira, a quem não levava consigo, para maior comodidade de seu ministério'." (Cf. Eusebio de Cesaréia, História eclesiástica, III, XXX, 1).
O cônego G. Bardy observa que Clemente confunde o apóstolo Felipe com o diácono Felipe, citado em Atos dos Apóstolos (21, 9), e essa confusão já cometera Polícrato de Éfeso, em sua carta ao Papa Víctor. Foi o diácono quem teve quatro filhas, por certo que profetisas (videntes). Este foi enterrado em Hierápolis, assim como duas de suas filhas (op. cit., III, XXXI,3). Deixemos, pois, ao diácono e voltemos para apóstolo, sobre o que não sabemos nada, salvo a observação de Clemente, já citada: "Escolhidos, não todos confessaram ao Senhor pela palavra, e não todos morreram em seu nome. Entre eles se contam Mateus, Felipe, Tomás, e muitos outros..." (Cf. Clemente de Alexandria, Stromates, IV, 9).
O que equivale a dizer que esses personagens, depois da morte de Jesus e o fracasso da revolução dirigida por ele, voltaram para seus assuntos, menos perigosos e mais proveitosos que as insurreições zelotes. À exceção, entretanto, de Tomás, o irmão gêmeo de Jesus, aliás Dídimo, aliás Judas, aliás Tadeu, o taôma hebreu. Este, como agora sabemos, embora não "confessasse ao Senhor pela palavra", morreu apesar de tudo decapitado, sob o nome de Theudas, e por ordem de um tribuno que estava ao mando da cavalaria legionária enviada em sua perseguição por ordem de Cuspio Fado, procurador de Judéia. Como não "confessou ao Senhor pela palavra", foi executado por direito comum.
Sem dúvida, Mateus, Felipe, Tomás, eram daqueles apóstolos que não caíram na armadilha da pseudo-ressurreição; e Tomás com maior motivo, já que durante vários dias, e adotando certas precauções, interpretou o papel de Jesus "saído da tumba". Porque em Mateus lemos o seguinte, sobre depois da ressurreição: "Os onze discípulos foram à Galiléia, ao monte que Jesus lhes indicara, e, vendo-lhe, prostraram-se, embora alguns vacilaram... (Cf. Mateus, 28, 16-17).
Daí o final desenganado do Evangelho de Pedro: "O último dia dos ázimos, muitas pessoas retornaram a suas casas, uma vez terminada a festa. E nós, os doze discípulos do Senhor, chorávamos e estávamos afligidos. E cada um, entristecido pelos acontecimentos, retornou a sua casa. Quanto a mim, Simão-Pedro, e André, meu irmão, tomamos nossas redes e fomos ao mar. E conosco estava Levi, filho de Alfeu, que o Senhor...". (Cf. Evangelho do Pedro, 58 a 60).
Nenhum deles acreditava, pois, na próxima ressurreição, apesar dos "milagres".
Deste fragmento final, interrompido bruscamente, teremos em conta, entretanto, que os apóstolos continuam doze; portanto, Judas Iscariotes ainda não foi executado. No que concerne ao final de Felipe, a Lenda dourada o faz morrer em Hierápolis, em Frigia, crucificado e rematado sob uma chuva de pedras, a instigação dos sacerdotes dos santuários pagãos. Mas para admitir este fim, terei que saber o que tal Felipe fazia em Frigia, e o ignoramos. Além disso, se não participou da propaganda e na agitação zelote depois da morte de Jesus, no que incomodava aos sacerdotes dos outros cultos? Deixemos a lenda e concluamos que não sabemos nada sobre esse personagem misterioso, quanto mais que outras tradições escolásticas o fazem morrer de enfermidade, também em Hierápolis, e que outras o fazem perecer crucificado.
NOTAS COMPLEMENTARES
Teve Mateus-Levi descendência? Não é impossível. Na versão eslava da Guerra dos judeus de Flavio Josefo observamos esta passagem, relativo ao célebre João da Giscala, que se ilustrou de diversas maneiras durante o local de Jerusalém: "João (Iochanan), filho de Levi, mago e homem de maus pensamentos, desejoso de honras e sedento de guerra para dominar sobre todos... (Cf. Guerra dos judeus, IV, 1, manuscrito eslavo).
Observemos que esse nome é de origem Galileu (Giscala está na Galiléia), que é o filho de um Leví, e Mateus, aliás Leví, é Galileu; que esse João, aliás Iochanan-bar-Leví, é mago, e a família de Jesus, seus irmãos e ele mesmo têm essa reputação; que João da Giscala está desejoso de receber honras e de dominar, e que quer reinar.
Agora bem, para justificar tais desejos terá que possuir títulos que o permitam, portanto, provavelmente é "filho de David" também ele. Porque naquela época só havia três dinastias que pudessem apresentar candidatos válidos: a davídica, a asmonea e a herodiana, igual na França era preciso proceder dos Borbones, os Orléans ou os Bonaparte para ser um candidato sério à coroa. Por isso, se João da Giscala é filho de Mateus-Leví, e se este último é um tio de Jesus (em opinião geral), isso significa que o chamado Mateus-Leví se casou com Maria III, filha de Salomão e de Hannnah (Ana), e meio-irmã de Maria I, mãe de Jesus (ver quadro genealógico, cap. 19). E então o terrível João da Giscala teria sido primo de Jesus, embora teria nascido muito tempo depois dele. Nas famílias às vezes há cada embrulho... Como vemos, também aí, e como nós afirmamos sempre, nas inumeráveis insurreições zelotes nos encontramos sempre ante a mesma família, os chefes são todos parentes próximos. E como no caso de Judas Iscariotes, a traição do tio Leví-Mateus explica-se muito bem: Tentou fazer acontecer a sucessão dinástica à cabeça de seu próprio filho. Esta traição, que surpreenderá ao leitor, logo a encontraremos, é facilmente demonstrável, e está confirmada pelo Celso em seu Discurso verdadeiro veja o capítulo 27).
12 - Mateus
Falou-se do descobrimento do original de Mateus na tumba de Bernabé, no Chipre... tentaram nos fazer aceitar diversos farrapos de papiro como os restos da edição original de Mateus... e tudo sem a menor verossimilhança!
CHARLES GUIGNEBERT, O Cristo, I, IV
Não transcreveremos o nome de Mateus com dois "t", já que em espanhol se escreve com uma só quando é um simples nome próprio, e que em hebreu leva só um taw em Mathan (II Reis, 11, 18 e Jeremías, 38, 1), quer dizer, mem-taw-nun, pontuados respectivamente pelo patah e o quamats.
Mateus aparece chamado por Clemente de Alexandria entre aqueles que não se preocuparam com o apostolado depois da morte de Jesus (veja o capítulo 3) e retornaram a seus assuntos pessoais. Quer dizer, que o primeiro "evangelho" que leva seu nome, e que desapareceu muito em breve, segundo Orígenes, que não o conheceu mais que de ouvido, assim como o segundo, que nós conhecemos agora com esse nome, igual ao Pseudo-Mateus, ou Livro das infâncias de Maria e de Jesus, todos esses textos não puderam ter como autor ao personagem chamado sob esse nome em nossos canônicos ou nos apócrifos.
E conservamos para o final uma opinião autorizada: "Os detalhes que dá a tradição sobre seu apostolado e seu martírio não têm valor histórico". (Cf. Dictionnaire de théologie catholique, tomo X, 1ª. Parte, P. 359; imprimatur em 26-3-1928, Paris, Letouzey édit., 1929).
Assim, como o que se afirma a respeito do apostolado de Mateus encontra-se desprovido de todo fundamento histórico, é óbvio que o mesmo acontece com o "Evangelho segundo São Mateus", já que não há apostolado sem evangelho. Em uma palavra, Mateus jamais compôs texto algum com esse nome, ao menos não o Mateus citado em Mateus (9, 9 e 10, 3), Marcos (3, 18), Lucas (6, 15) e nos Atos (1, 13).
É o mesmo personagem que Levi, e para convencer-se basta ler em Marcos (2, 14) e comparar com Mateus (9, 9). E sob esse nome de Levi aparece citado em Lucas (5, 27), o que confirma a observação seguinte:
a) "Passando Jesus dali, viu um homem sentado ao telonio, de nome Mateus, e lhe disse: "me siga". E ele, levantando-se, seguiu-lhe...". (Cf. Mateus, 9, 9).
b) "depois disto (Jesus) saiu e viu um publicano por nome Levi sentado ao telonio, e lhe disse: "me siga". Ele, deixando tudo, levantou-se e seguiu-lhe". (Cf. Lutas, 5, 27-28).
Segundo Eusebio e Epifano, citados pelo cardeal Jean Daniélou, S. J., o Evangelho dos Hebreus, chamado também Evangelho dos Nazarenos, não seria outro que a versão aramaica do Evangelho de Mateus (Cf. J. Daniélou, Théologie du judéo-christianisme, P. 34).
Terá que ter em conta a tradição eclesiástica, segundo a qual este seria um tio de Jesus? No caso afirmativo, devia tratar-se, ou do irmão de Judas da Gamala, ou do de Joaquim, o pai de Maria. Como diz, acerbo, Clemente de Alexandria, nesta indiferença prudente para as instruções de um sobrinho "iluminado", pode classificar-se ao Levi-Mateus entre aqueles que na montanha, ante o pseudo-ressuscitado, duvidaram. (veja o capítulo 3).
Por outro lado, suas funções de pedágio, aliás publicano, quer dizer, de cobrador de impostos indiretos, ao serviço dos ocupantes romanos, faziam dele um pequeno "arrendatário geral", o que implica a posse de uma certa fortuna como ponto de partida, fortuna investida na aquisição do cargo. Este detalhe pareceria descartar tal possibilidade em um homem jovem, enquanto que resultaria mais plausível no caso de um homem amadurecido. Por isso a tradição nos apresenta isso como o tio de Jesus (e não como um irmão ou um primo, e menos ainda como um estrangeiro), coisa que deveremos ter em conta, assim como essa prudência no fato de não querer correr o risco de perder tudo em agitações estéreis.
Segundo uma tradição mais que legendária, evangelizou entretanto a Palestina e Etiópia, e ali encontrou o martírio por querer opor-se ao matrimônio do príncipe Hirtace com sua parenta Ifigenia; isso é o que acontece meter-se onde a um não importa. Não obstante, como há grandes possibilidades de que ninguém se chamou jamais assim em Etiópia, voltaremos para a opinião autorizada do Dictionnaire de théologie catholique já citado, ou seja, que não sabemos nada sobre Mateus, e que não redigiu nada. O que parece muito mais sensato.
Observe-se, por outra parte, que Eusebio de Cesaréia, ao citar com muita reserva em seu livro III, capítulo I, as regiões nas quais teriam evangelizado os apóstolos, tem muito cuidado em nos fazer compreender, dúbio, que daqueles que nos conta, não se faz absolutamente responsável. Pois bem, nessa passagem não diz nenhuma palavra sobre Mateus.
Limitemo-nos, pois, à afirmação de Clemente de Alexandria, ou seja, que o citado Leví-Mateus, à morte de Jesus, retornou tranqüilamente a seus frutíferos pedágios, mais remunerantes e menos perigosos que o prosseguimento das lutas zelotes, que terminavam invariavelmente no tradicional suplício da crucificação.
Sobre sua morte real não sabemos nada válido, evidentemente Mateus morreu em Luch, ou em Hierópolis, ou em Naddaver (cf. G. Las Vergnas, Jésus-Christ a-t-il existé? Heraclion nega o martírio que alguns lhe adjudicam, quão mesmo o grande Dictionnaire de théologie catholique.) Em um próximo capítulo veremos que o silêncio da Igreja está mais que motivado, e que é prudente não insistir muito sobre a vida de "São Mateus", já que, uma vez mais, também aqui nos espera um escândalo explosivo...
13 - Bartolomeu
Os Evangelhos não são, evidentemente, novelas, mas tampouco são livros de história...
DANIEL-ROPS, Jesus em seu tempo, Introdução
Já imaginávamos ligeiramente. Mas os governos se esforçam em fazer acreditar o contrário, através da imprensa, das emissões religiosas, dos espetáculos televisionados, etc. E aqui temos outra vez a ocasião de surpreender a muito famosa "tradição" em estado de total impostura.
O apóstolo Bartolomeu citado em Mateus (10, 3), Marcos (3, 18), Lucas (6, 14), nos Atos (1, 13). Eusebio da Cesaréia nos diz isto a respeito dele: "Entre esses homens esteve Pantenio, e se diz que foi às Índias. Também se diz que lhe antecipara o evangelista Mateus, já que alguns indígenas do país conheciam Cristo. Àquelas pessoas, Bartolomeu, um dos apóstolos, pregou-lhes, e deixara-lhes, em caracteres hebraicos, a obra de Mateus, que conservaram até a época da qual falamos". (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, V, X, 3-4).
Sabemos por Orígenes, o grande doutor e exegeta morto no ano 254, que já em seu tempo o texto inicial em aramaico ou hebreu do Evangelho de Mateus perdeu-se e era totalmente desconhecido. Supunha-se que estava composto pelos "ditos" de Jesus, sentenças lapidárias, axiomas, etc., mas em todo caso não tinha nada em comum com o relato que Orígenes tinha em mãos. Pois bem, Orígenes era discípulo direto de Clemente de Alexandria, quem o era de Pantenio. E o chamado Pantenio, que estivera "nas Índias", não trouxera a mínima cópia desse precioso documento inicial de Mateus? Incrível!
E tanto mais que possivelmente poderia inclusive adquirir o original, então em mãos dos habitantes das Índias, dado que Bartolomeu, apóstolo, tinha-lhes deixado esse texto imensamente precioso em "caracteres hebraicos". Coisa que, para os índios, que não conheciam a não ser os alfabetos indi e sânscrito, e ignoravam o hebreu como linguagem, não representava evidentemente nenhum interesse. (E além disso, o cristianismo sempre fracassou nas Índias, em presença das doutrinas tradicionais ou do Islã. Logo que há cristãos, e só entre os órfãos recolhidos e logo educados "conforme"). Então, que interesse podia ter Bartolomeu em lhes deixar um exemplar em hebreu?
Tudo isso soa fabulação.
Observemos que o cônego G. Bardy, em sua tradução de Eusebio de Cesaréia e em suas notas complementares, diz-nos, página 39 do tomo II (livros V a VII de Eusebio de Cesaréia): "Trata-se realmente da Índia, ou da Arábia do Sul?..." Esta observação é muito pertinente, se se considerar quantas vezes os célebres contos de As Mil e uma Noites chamam a Índia ao que não é mais que o conjunto das regiões ao sul do mar Vermelho. Mas ao mesmo tempo é muito perigosa para a lenda oficial, como veremos logo.
Voltemos agora para misterioso personagem de Bartolomeu. Em hebreu é Bar-Thalmai, mas sem o nome de circuncisão prévio, quer dizer, X...-bar-Thalmai. Esse nome aparece citado em livro dos Números (13, 22), Josué (15, 14), em II Samuel (3, 3 e 13, 37) e em I Crônicas (3, 2). Lemaistre de Sacy lhe dá como significado "filho daquele que detém as águas". Thalmai não significa exatamente isso, porque também pode ser "filho das fontes de cima", de tal (em hebreu: altura), e de may (em hebreu: fontes, águas). Então seria "filho das águas do alto".
A versão sinodal protestante nos precisa, em sua oitava revisão (Paris, 1962, Société biblique française édit.), que Bartolomeu era provavelmente o mesmo personagem que Natanael, citado em João (1, 45 a 50), ao qual Jesus encontraria entre a Betânia do outro lado do Jordão e Galiléia, para onde volta. Então seria Natanael-bar-Thalmai.
Sobre a sorte final de Bartolomeu, a Lenda dourada quer nos fazer acreditar que morreu em Albanópolis, em Armênia, esfolado vivo. Mas Armênia não está no caminho das Índias, nem no da Arábia meridional, mais curto. Consultemos, pois, de novo ao Flavio Josefo, quem nos revelará seu destino final, ao mesmo tempo que o de André, aliás Eleazar, aliás Lázaro, como vimos na passagem já citada. Vejamos, agora, o parágrafo que vem imediatamente depois, e que se refere ao Bartolomeu: "Algum tempo depois (do desterro de Eleazar), ele (o procurador Cuspio Fado) mandou capturar deste modo ao Bartholomaeus, cabeça dos bandidos que causara tantos males aos idumeus e aos árabes, e que fora encadeado. Cuspio Fado condenou-o a morte e purgou assim a toda a Judéia desses inimigos da segurança pública..." (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XX, I). É evidente que Bartholomaeus é a forma greco-latina de nosso Bartolomeu; parece, pois, que nos aproximamos da verdade. Retrocedamos um pouco e examinemos a opinião do cônego G. Bardy, quem considera que a viagem evangélica às Índias do apóstolo de tal nome é pouco provável, e que se tratou simplesmente da Arábia do Sul, a Arábia meridional, constituída pela Iduméia e a Nabatea, esta última reino de Aretas IV, que possuía além disso a cidade de Damasco, cujo etnarca, e não os judeus, tentaria capturar Saulo-Paulo quando este foi ali. (Cf. II Epístola aos Corintios, 11, 32). E a opinião do erudito cônego é muito plausível! Já demonstramos antes a impossibilidade e a falta de lógica de uma viagem às Índias do apóstolo Bartolomeu. Se a este lhe ocorreu evangelizar a Arábia do Sul (Iduméia e Nabatea), fez de uma maneira muito particular. Ali, o evangelho cheio de doçura que conheceremos partir do século IV, para os árabes idumeus e nabateos se apresentará sob a forma de bandos de zelotes bem armados, perfeitamente treinados para o combate e os saques consecutivos; o fogo do Espírito Santo lhes transmitia com tochas, e a imposição das mãos se realizava com a sicca, aquele sabre curto, meio adaga, meio cimitarra, e que deu nome aos sicários, ex-zelotes. Já encontramos, pois, ao Bartholomaeus citado por Flavio Josefo, e que causara "tantos males aos idumeus e aos árabes" (op. cit.).
Por outra parte, Cuspio Fado (e não Astyage, irmão do rei de Armênia), o procurador que mandou executar Bartholomaeus, entrou em funções no ano 45 de nossa era, um ano depois da morte do rei Herodes Agripa I, e por designação de Claudio César. Portanto, provavelmente Bartholomaeus foi executado em princípio do ano 47, já que Tibério Alexandre, sucessor de Cuspio Fado, entrou em funções no segundo trimestre do ano 47, e em seguida fez crucificar ao Simão-Pedro e ao Jacobo-Santiago, no mesmo período.
De modo que parece evidente que essa tripla execução pertence a um episódio global da repressão romana. Os protagonistas estão relacionados pelos fatos, e Bartolomeu, Simão-Pedro e Jacobo-Santiago foram capturados e condenados por suas atividades comuns: uma guerrilha nacionalista, complicada por necessidade vital com banditismo puro e simples aos olhos de Roma. Porque não esqueçamos que as incessantes guerras civis terminaram, naquela época concreta, por levar a fome a toda Judéia. E daí as invasões dos zelotes na Arábia meridional. Bartolomeu estaria encarregado da intendência e do aprovisionamento dos grupos ofensivos.
No que concerne a seu tipo de morte, devia ser o habitual: a cruz. Mas precedida obrigatoriamente de uma terrível flagelação. Também seria precedida de um interrogatório submetido a tortura. E, através dos autores antigos, sabemos que os verdugos romanos usavam em todo o Império luvas de crinas, manoplas ou manoplas de pele de tubarão, inclusive unhas de ferro, para depois da flagelação. E isto pôde dar nascimento à lenda de um Bartolomeu esfolado vivo.
14 - Iochanan, ou João o Evangelista
Não importa se forem partidários de Pascal ou de Voltaire, sua fé não será séria até que não tenha resistido à confrontação com um adversário...
JEAN GHEHENNO, Ce que je crois
Para a clareza da exposição, observaremos acima de tudo que convém distinguir a vários Joãos. Em primeiro lugar está João, o Batista, evidentemente. Foi encarcerado por ordem de Herodes Antipas na cidadela de Maqueronte, à beira do mar Morto, em 28 de maio do ano 31 de nossa era, e foi decapitado em 29 de março do ano 32, menos de um ano mais tarde.
Logo está João, o apóstolo, a quem se chama também "o discípulo bem-amado". Este será o que estudaremos aqui.
Está também João, o presbítero, de quem foi ouvinte Papias. Devia ser um dos setenta e dois discípulos enviados por Jesus de dois em dois (Lucas, 10, 1 e 17, fala de setenta, alguns manuscritos falam de setenta e dois).
Está, por último, João, de apelido Marcos, companheiro de Bernabé e de Saulo, de quem alguns exegetas declaram que é o mesmo que o Marcos evangelista, discípulo de Simão-Pedro, e de quem outros afirmam que é um personagem diferente. Os docetas (57) usavam preferentemente o evangelho de Marcos (cf. Irineu, Contra as heresias, III, XI, 7), para o versículo 31 do capítulo V, que contribuíam os discípulos de Valentín, e que sugeria que Jesus, enquanto estava com vida, tinha já o mesmo "corpo ilusório" afirmado implicitamente por João, 20, 17.
Sobre as origens familiares de João, o "apóstolo bem-amado", em Mateus descobrimos isto: "Passando (Jesus) mais adiante, viu outros dois irmãos, Santiago filho de Zebedeu, e João, seu irmão, em um barco, com seu pai Zebedeu, que compunham as redes, e os chamou. Eles, deixando logo o barco e seu pai, seguiram-lhe". (Mateus, 4, 21).
É evidente que se Jacobo (Santiago) e Iochanan (João) obedecem instantaneamente a esta chamada de Jesus, é que lhe conhecem já. A menos que fique em jogo uma fascinação hipnótica, não se vê como dois homens normais podem comportar-se assim, e menos ainda quando o pai, a quem com semelhante desenvoltura deixam plantado, com suas redes e seu barco, não estranha, nem protesta. Portanto, não é a primeira vez que Jesus os chama, o fato é habitual; reconhecem ao "filho de David", como mais tarde o reconhecerá a juventude judia de Jerusalém, a sua chegada em Jericó (cf. Mateus, 21, 9, e Marcos, 11, 9); a seus olhos é o rei legítimo, senão legal, e esta chamada é uma ordem formal.
Mas, quem é esse Zebedeu? Porque não o voltaremos a encontrar em nenhuma outra parte. Cita-lhe como pai de Santiago e de João, sem mais, em Mateus (20, 20-27, 56), em Marcos (3, 17), Lucas (5, 10), João (21, 1-3). Os Atos dos Apóstolos ignoram-no. Portanto, é evidente que os escribas anônimos do século IV não quiseram estender-se sobre este personagem. Isso significa que para o historiador, curioso e desprovido de complexos dogmáticos, apresenta muito interesse. Voltemos, pois, ao Mateus, e vejamos mais de perto: "...entre elas Maria Madalena e Maria a mãe de Santiago e José e a mãe dos filhos de Zebedeu" (Mateus, 27, 56).
A priori há três mulheres diferentes. Não obstante, sejamos desconfiados e vamos ao texto grego original: "En aîs Maria è Magdalenè kai Maria è toû Iakobous kai'Iosef mèter kai è méter tôn uiôn Zebedaiou ..." (Mateus, 27, 56).
Isto nos dá, traduzido corretamente:
"Entre elas estavam Maria Madalena, e Maria, a mãe de Santiago e de José, e mãe também dos filhos de Zebedeu ..." (op. cit.).
A mãe dos filhos de Zebedeu é a Maria mãe de Santiago e de José, pelos motivos que seguem: Por que se nomeia a todos os personagens em questão, salvo a essa "mãe dos filhos de Zebedeu"? Porque constituiria uma repetição, porque a acaba de nomear, e não se pode voltar a repetir. Porque se a È, em grego, significa o ou a, também significa ele ou ela, e se emprega correntemente para ele mesmo ou ela mesma. (Cf. Gran Dictionaire français-grec et grec-çfrançais, de G. Ozanneaux, Recteur d'Academie, Inspecteur général de l'Université, Paris, 1863, tomo II, página 607). Portanto, deve traduzir-se: "... e Maria, mãe de Santiago e de José, ela mesma mãe dos filhos de Zebedeu... "; e não ou e mãe dos filhos de Zebedeu..."; "e a mãe..." a mãe dos filhos de Zebedeu ..."
Esta última tradução falseia totalmente o sentido da frase, e tanto mais que não é correto repetir o artigo, dobrando-o. Esse truque é uma prova mais de que quer ocultar cuidadosamente que em realidade era a mãe dos filhos desse Zebedeu, porque se tratava da Maria, a mãe de Jesus. Não é acaso o carpinteiro, filho de Maria, e o irmão de Santiago, de José, de Judas e de Simão?... (Marcos, 6, 3).
Por outra parte, em Lucas lemos isto: "E igualmente Santiago e João, filhos de Zebedeu, que eram companheiros de Simão..." (Lucas, 5, 10).
O grego koinonoi tem o sentido de companheiros, associados. Em seu Vulgata latina, São Jerônimo traduz: "... que eram socii Simonis", quer dizer, associados.
Assim, os filhos de Zebedeu estão associados com os filhos de Judas da Gamala, e têm um barco em comum. Este barco se acha necessariamente na borda de Cafarnaum, já que a moradia de Simão-Pedro se encontra nessa localidade, tal como nos diz Marcos (1, 16 a 31), e Simão vive ali com André, seu irmão (Marcos, 1, 29).
Como não deduzir que se trata também do barco de Santiago e de João? Acontece o mesmo quase em todas partes, nos portos pesqueiros. O ou os proprietários de um barco geralmente empregam primeiro a seus irmãos ou a seus primos; assim, o barco e a pesca são coisas familiares. Mas isto implica, como é natural, uma proximidade de moradia. Além disso, Cafarnaum, ao noroeste do lago de Genezaret, chamado às vezes pomposamente o mar da Galiléia, é o porto de atraque de Jesus. Para convencer-se disso, basta relendo ao Marcos (4, 13; 8, 5; 11, 23; 12, 24), Marcos (1, 21; 2, 1), Lucas (4, 23), João (2, 12; 4, 46; 6, 17).
Provavelmente inclusive nasceu ali, porque se Nazaréh não existia naquela época, (58) bem teve que nascer em alguma parte. Agora bem, alguns exegetas protestantes modernos pensam que foi em Cafarnaum, e fundamentam sua opinião nesta passagem: "... e você, Cafarnaum, levantar-se-á até o céu?" (Mateus, 11, 23).
Esta elevação gloriosa da cidade a que Jesus acusará de ingratidão para a graça que foi outorgada (quer dizer, seu próprio nascimento), aparece explicitada nesta outra passagem: "... nos termos de Zabulon e Neftalim, cidade situada à beira do mar, (...) ao outro lado do Jordão, (...) esse povo viu uma grande luz..." (Mateus, 4, 13 a 16).
Pois bem, Cafarnaum está situada perto do mar e no território de Zabulon e de Neftalim, isso é exato. Não obstante, faremos observar a nossos distintos colegas que o país do outro lado do Jordão se chama hoje Transjordânia, e que também pode tratar-se da Besaida-Julias, situada em território de Neftalim, mas na borda oriental do Jordão. E em Betsaida possuíam bens, sem dúvida familiares, Simão-Pedro e André-Lázaro: "Era Felipe de Betsaida, a cidade de André e de Pedro" (cf. João, 1, 44).
Poderia recordar-se também a casa-forte (59) que a família davídica possuía deste modo em Gamala. De fato, a lenda dos humildes carpinteiros insuficientemente alojados em Nazaré terá que relegá-la ao campo das mentiras piedosas. A família de Judas-bar-Ezequías era rica, rica por atar ao longo das guerras sustentadas desde fazia mais de meio século à custas dos sírios, e também pelos dízimos cobrados às facções que permaneceram fiéis aos descendentes dos antigos reis. (Veja-se a este respeito a negativa de pagar o pedágio à entrada de Cafarnaum, precisamente porque ele era filho de rei. (cf. Mateus, 17, 24).
Até agora só conhecíamos, como irmãos de Jesus, aos quais nos citaram os Evangelhos, ou seja, ao Simão, Santiago, Judas e José. Nós descobrimos um quinto, André, aliás Lázaro. Mas esse segundo Santiago (chamado o Menor) e João, seu irmão, eram-no também de Jesus? Por isso descobrirmos sobre os "filhos de Zebedeu", resulta que eram meio-irmãos, nascidos do segundo matrimônio de Maria, depois da morte de Judas da Gamala, seu primeiro marido. Remetemos ao leitor a nossos argumentos anteriores, na obra precedente.
Com efeito, no Apocalipse fala-se da voz de "sete trovões": "Quando tiveram falado os sete trovões..." (Apocalipse, 10, 4). "Sela as coisas que falaram os sete trovões..." (op. cit., 10, 5).
Em um volume precedente demonstramos que esses sete trovões eram sete irmãos, (60) e temos em João um eco disso: "depois disto apareceu Jesus aos discípulos junto ao mar de Tiberíades, e apareceu assim: estavam juntos Simão-Pedro e Tomás, chamado Dídimo; Natanael, o de Caná da Galiléia, e os de Zebedeu e outros dois discípulos. Disse-lhes Simão-Pedro: "vou pescar". Os outros lhe disseram: "Vamos também nós contigo". Saíram e entraram no barco..." (João, 21, 1-3).
Sabemos que Natanael é o mesmo personagem que Bartolomeu (veja o capítulo 13). Estes últimos sete discípulos são, pois: Simão-Pedro, Judas, aliás Tomás, aliás Dídimo, aliás o Gêmeo (Taôma em hebreu), Bartolomeu, aliás Natanael, Santiago, o Menor, João, e outros dois que não se nomeiam. Por que? Porque que se trata, indubitavelmente, de André, aliás Eleazar, aliás Lázaro (irmão de Simão), e de Santiago, o Maior (irmão também de Simão-Pedro), o que faz sete, a família está completa, e aí estão os "sete trovões". Só falta Jesus, que seria o oitavo, mas como é substituído por seu irmão gêmeo, Tomás, desempenhando o papel de pseudo-ressuscitado, voltamos para sete.
O termo empregado para dizer "filho do trovão" é boanerges, e só no evangelho de Marcos (3, 17). São Jerônimo, contrariado, reproduz esta palavra em seu Vulgata latina, por não lhe conhecer nenhuma tradução possível nesta língua. O que significa isso? Pois simplesmente que essa palavra é intraduzível, tanto em grego como em latim como em hebreu. Assim, procuremos: Boan é um termo grego associado a toda expressão que evoque ruído ou fragor de algo. Anergastos designa todo ruído desordenado, tumultuoso, inarmônico. Quanto a erges, designaria a idéia de ativar, de estimular, de inspecionar uma obra qualquer, do grego ergon. Pelo contrário, em dialeto cretense, ergatones ou ergaones designa aos operários encarregados de inumar aos mortos no campo. E assim, com boanergaones, não teríamos a um manipulador do raio, a não ser a um cantor de salmodias fúnebres. Quanto ao Boanergastos, em um jargão muito popular esse pleonasmo poderia designar um ruído repetido, como um trovão rugindo ao longe. Mas nada em tudo isto nos demonstra que os "filhos do trovão" possuíssem o manejo oculto do raio, como pretendem nos fazer acreditar em Lucas (9, 54): "Senhor, quer que digamos que baixe fogo do céu que os consuma?..." Na antigüidade existia, efetivamente, uma seita, por certo que de caráter internacional, que dava em alguns lugares sacerdotes, e em outros bruxos, que conheciam o manejo do raio. É um fato provado, e ainda existia no seio do lamaísmo tibetano, na seita bon-po, os bonés negros, por volta de 1950, no Tibet oriental, antes da ocupação a China.
De todo modo, um erudito investigador britânico, John Marco Allegro, professor da universidade de Manchester (estudos bíblicos), acaba de proporcionar uma explicação tão sensacional como inesperada. Ele foi o primeiro representante de Grã-Bretanha na equipe internacional encarregada de preparar a publicação dos célebres manuscritos do mar Morto. Em sua obra, traduzida em oito idiomas, e intitulada De Champignon sacré et a Croix (Paris, 1971, Albin Michel éidt.), estuda o papel da Amanita muscaria nos antiqüíssimos cultos da fecundidade do Próximo Oriente. E aqui temos o que podemos conservar para nosso estudo: O termo de boanerges, como acabamos de ver, não significa nada do que Jesus pretende expressar em sua frase, relatada por Marcos em seu evangelho (3, 17), ao menos em grego. Por outro lado, não procede de nenhum dos dialetos aramaicos conhecidos. Pois bem, como já observamos em uma obra precedente, o hebreu conservou em seu vocabulário palavras procedentes das línguas mais antigas: caldeu, assírio, acádio, e inclusive sumério. Isso aconteceu com todas as línguas, constituídas por contribuições sucessivos. E John Marco Allegro, familiarizado com essas línguas mortas, descobriu que boanerges procedia diretamente do sumério, e que essa palavra não era a não ser a contração de uma curta frase nesse mesmo dialeto: GESH-PU-AN-UR, convertida logo em PU-AN-UR-GES, de onde esse termo, incompreendido pelos escribas dos séculos IV e V: BU-AN-ER-GES, convertido em boanerges, barbarismo que se tomava por grego.
Esta curta frase, em sumério, significa simplesmente "filho do trovão", e era tão somente o nome de um cogumelo alucinógeno, a Amanita muscaria, ou Amanita phalloide, a amanita matamoscas, a célebre Muchamore dos xamãs siberianos ou kamtchadales, nossa perigosa "falsa oronja". Esse nome, ou apelido, como se queira, deriva da crença própria dos homens da Suméria, segundo a qual nascia da voz mesma do raio ou do estrondo do trovão, já que se constatava sua aparição no chão imediatamente depois das tormentas.
Aqui deixaremos por um momento as revelações de John Marco Allegro, para voltar para nossa gramática acadia de M. Rutten, do Museu de Louvre (Paris, 1937, Adrien-Maisonneuve édit.), Eléments d'accadien. Os textos acadios mais antigos se remontam à dinastia semítica de Acad, quer dizer, a 2.800 anos antes de nossa era, e os últimos ao século I desta. Quer dizer, que não é surpreendente encontrar termos procedentes de Acad nos diversos dialetos aramaicos. O grupo oriental acadio das línguas semíticas deu nascimento ao assírio e ao babilônio. E no acadio (como no assírio), não há mais que quatro vocais, ou seja, a, i, u, e, que constituem o tetragrama sagrado por excelência, o nome divino dos hebreus: IEUA (iéuhah), em hebreu iod-he-vaw-he. Estes, apoiando-se nessa tradição, tinham-no só no cativeiro da Babilônia.
Agora bem, se houver uma tradição fundamental na exegese do Antigo Testamento, essa é a que qualifica ao deus de Israel elohim da tormenta, porque Yavé é, efetivamente, o deus do raio. Citemos simplesmente, como justificação: "O trovão anuncia que vem..." (Jó, 36, 33). "E mostrará (Yavé) como fere seu braço... (...) entre nuvens, tempestade e furiosos granizos" (Isaías, 30, 30). "No terceiro dia, ao amanhecer, houve trovões, relâmpagos, e uma densa nuvem sobre o monte (Sinai) (...). Todo o monte Sinai estava fumegando, porque sobre ele tinha descido Yavé no meio de fogos..." (Êxodo, 19, 16-18).
Recorde o papel do peyotl no México, ou dos cogumelos alucinógenas e teóforas da América do Sul.
Por outro lado, é seguro que, esotericamente, esse cogumelo, a Amanita muscaria, é o misterioso fruto do Jardim do Éden. Em Plaincourault, perto de Mérigni (Indre, França), ela é a que, engrandecida desmesuradamente, flanqueada por Adão e Eva, que velam seus sexos com as mãos. Esse afresco se remonta ao século XII. Portanto, o papel secreto da amanita ainda era conhecido naquela época nos ambientes cristãos heterodoxos mais ou menos "iniciados". Conseqüência imediata disso, para um primitivo, é evidentemente que o cogumelo que aparece depois da tormenta, sem que nada justifique seu broto do chão, é "filho do trovão", seu sinal e o testemunho da materialidade do deus do raio.
Conseqüência secundária: ao utilizar suas propriedades alucinógenas impregna-se da natureza, alguém se diviniza. E então aparecem os fenômenos de intoxicação psíquica. Aproximadamente uma hora depois da absorção da Amanita muscaria, o indivíduo é objeto de puxões nervosos, de tremores de todos os membros; seguem sacudidas tendinosas. Ao princípio permanece consciente; psíquica e interiormente está de bom humor. Logo começam as alucinações, os sonhos em vigília, as visões. O indivíduo empalidece, seus olhos se voltam frágeis. Ainda são possíveis alguns gestos voluntários e conscientes, logo sobrevêm uma tristeza ou uma alegria extremadas. Às vezes o indivíduo parece ébrio, dança ou salta sobre o lugar. Experimenta também a necessidade de confessar-se publicamente, de esvaziar-se literalmente de todos seus segredos. É uma verdadeira liberação, um desafogo. Todos estes dados os tiramos de um grande especialista, L. Lewin, em sua obra Phantastica (op. cit., cap. IV).
Não recorda isto nada ao leitor? Voltemos para os Evangelhos, a passagem no que se diz que se tinha ao Jesus por louco: "Ouvindo isto seus parentes, saíram para apoderar-se dele, pois dizia-se: Está fora de si..." (Marcos, 3, 21).
São Jerônimo, em seu Vulgata latina, texto oficial da Igreja católica, traduz por furorem versus, quer dizer, louco furioso. E nos Atos de João, apócrifo do século IV, redigido em grego, mostra Jesus dançando antes de sua captura ante seus discípulos e explicando-lhes o porquê em um curto discurso, totalmente incoerente: "Quem não dança, não sabe o que vai acontecer! ... Você que dança, olhe em mim, que falo, e vendo, participando, mantenho silencio sobre meus mistérios..." (Atos de João, XCIV).
Assim, e para resumir, nossos místicos extremistas, chefes da corrente zelote, eram drogados. Daí as "visões" proféticas. E ao qualificar Santiago e João de "filhos do trovão" (boanerges), Jesus lhes dá simplesmente o nome de sua droga, assimila-os a ela, algo assim como se a um bêbado inveterado lhe chamasse "bota de vinho", ou a um devorador de carnes semi-cruas, "rosbife". E a isso se reduz provavelmente todo o mistério dos pretendidos "manipuladores do raio". (Cf. JOHN MARCO ALLEGRO, Le champignon sacré et la croix, em concreto as páginas 225 a 230, onde o autor demonstra que os zelotes faziam uso da Amanita muscaria).
Maria, mãe de Jesus, aproveitava também as propriedades desse cogumelo sagrado? Não é impossível. Porque há documentos muito antigos que lhe atribuem a qualidade de profetisa: "E o anjo Gabriel entrou em casa da profetisa, e ela concebeu e iluminou a um filho".
Esta qualificação, in extenso, aparece reproduzida por São Epifanio, bispo de Salamina, e encontra-na em Codex sinaiticus e em Alexandrinus, conforme nos diz o abade E. Amann em sua tradução do Protoevangelio de Santiago. (Protévangile de Jacques, P. 19, nota 1).
Pode então admitir-se que, quando Maria concebeu Jesus de seu legítimo marido Judas da Gamala, e enquanto ignorava ainda que estava grávida, ao utilizar com fins vaticinadores segundo seu costume (profetisa) o cogumelo sagrado, teve a visão de um personagem fabuloso, que ela identificou logo com o anjo Gabriel, e percebeu intuitivamente que estava grávida, que daria a luz um filho, etcétera.
O que explicaria que, continuando, ao retornar desse estado ao estado de vigília habitual, não recordasse já tal alucinação. E daí a frase do Protoevangelio de Santiago: "Mas Maria tinha esquecido os mistérios que lhe revelara o anjo Gabriel", e o fato de que ela não revelasse jamais nada dessa concepção milagrosa aos irmãos menores de Jesus. (61)
Sobre o fato de que João o Evangelista é irmão de Simão-Pedro, e por conseguinte irmão também de Jesus, dado que Pedro o era, (62) temos a prova definitiva na Crônica de George Hamortholos, documento do século IX, e que tende a demonstrar que seu autor possuía ainda os cinco livros de Papias: Comentários às palavras do Professor. Voltemos para Evangelho de João: "Disse-lhe Jesus: "Apascenta meus cordeiros (...) Na verdade, na verdade te digo: Quando foi jovem, você se rodeava e foi aonde queria; quando envelhecer, estenderá suas mãos e outro rodará e se levará aonde não queira". Isto o disse indicando com que morte havia (Pedro) de glorificar a Deus. Depois acrescentou: "me siga ... "(João, 21, 15, 18-19).
Então vem a passagem em que Jesus diz de João: "Eu quero que ele fique assim até que eu venha; que tens tu com isso? Segue-me tu". (João, 21, 22). E nesses versículos trata-se unicamente de Simão-Pedro e de João, o Evangelista. Pois bem, em sua Crônica, Georges Hamortholos nos diz de João que foi "morto pelos judeus, cumprindo, igual a seu irmão, a palavra que Cristo pronunciara sobre eles..." (Op. Cit.) Esse irmão é, portanto, evidentemente Simão, e não é de Santiago de quem se trata aqui.
Por conseguinte, João é irmão de Simão-Pedro, e portanto irmão de Jesus, e morreu em Judéia, como eles, o que suprime toda indecisão sobre as diversas tumbas que se afirma que são as suas. Mas, sobretudo, isso implica que tiveram a mesma mãe (e possivelmente o mesmo pai), de onde a frase de João confirma: "Jesus, vendo sua mãe e ao discípulo a quem amava, que estava ali, disse à mãe: 'Mulher, eis aí a seu filho'. Logo ao discípulo: 'Eis aí a sua mãe'..." (João, 19, 26).
E isto expõe então outro problema, o das relações de identidade entre o misterioso Alfeu e Simão, o Leproso.
Em Mateus (10, 3), Marcos (3, 18), Lucas (6, 15), e Atos (1, 13) inteiramo-nos de que há um Santiago (Jacobo) que é filho de Alfeu, e esse Leví, sentado no posto de pedágio, e por conseguinte publicano, é o mesmo que Mateus, como já vimos precedentemente (veja o capítulo 12). Isso confirma que o chamado Alfeu é também da família, e seu filho Santiago outro tanto.
Agora bem, o grego alphos significa herpes branco, quer dizer, psoriasis. Não é difícil adivinhar que se trata de um nome helênico que acompanhava, como era costume, o nome hebreu de circuncisão, e que tal nome era deste modo um apelido. Qual era então o nome de circuncisão?
Estamos em nosso direito de supor que se tratava de Simão, o Leproso, cuja moradia se achava em Betânia, e que vivia com Marta e Maria, irmãs de Lázaro, aliás André, irmão de Jesus, irmãs do chamado Jesus (Mateus, 26, 6; Marcos, 14, 3) como foi demonstrado antes (veja o capítulo 9). Então seria um mesmo personagem, com diversos nomes, provavelmente um tio avô de Jesus, já que era o pai de Mateus-Leví, por sua vez tio do chamado Jesus. E ao estudar a personalidade da jovem Maria, irmã de Jesus, veremos por que o ostracismo legal comprometido por seu apelido (a psoriasis naquela época freqüentemente era tomada como uma lepra), impondo-lhe uma vida à parte, fora de Jerusalém, como ela.
Por outro lado, Alfeu é a forma helenizada do hebreu Eliphas, que significa "deus o purificado". Seria então o famoso nome de substituição que se impunha em Israel a um doente, no curso de um ritual especial, em lugar do nome de circuncisão, a fim de desviar uma enfermidade ou um perigo. Eliphas tinha substituído então ao Zebedeu, ameaçado de lepra (em realidade de psoriasis), e logo traduzido ao grego por Alfeu, de alphos (herpes branco), porque significaria a purificação.
Dos versículos nos quais se cita aos dois irmãos, Santiago e João, como "filhos de Zebedeu", resulta que Santiago é provavelmente o maior. Acabamos de ver que procediam do segundo matrimônio de Maria, mãe de Jesus, já que a morte de Judas da Gamala, seu primeiro marido, situar-se-ia por volta do ano 6 de nossa era, data da revolução do Censo. Esse segundo matrimônio, conforme à lei judia, pode situar-se portanto por volta do ano 7 de nossa era. Santiago teria nascido no ano 8, e João, que viria em seguida, por volta do 9 ou 10.
O prazo legal que separaria a morte, publicada e certificada, de Judas o Gaulanita, e o novo matrimônio de Maria deveria ser muito curto, já que com esta segunda união do que se tratava era de dar um protetor legítimo e eficiente aos filhos do chefe zelote morto em combate. Os romanos, com efeito, esforçavam-se por suprimir por todos os meios possíveis à descendência davídica, conforme diz Eusebio da Cesaréia em sua História eclesiástica (III, XII, XX, XXXII).
E fica um eco das privações que esta morte conduziu ao lar familiar na obra atribuída a Clemente de Roma: "A essas palavras, Pedro respondeu: '... Porque eu e André, meu irmão ao mesmo tempo carnal e ante Deus, não só fomos criados como órfãos, mas sim além disso, por causa de nossa pobreza e de nossa situação penosa, acostumamos desde a infância ao trabalho...'." (Cf. Clemente de Roma, Homilias clementinas, XII, VI).
Por conseguinte, João contaria uns vinte e quatro ou vinte e cinco anos na época da crucificação de seu meio-irmão maior Jesus, no ano 35 de nossa era, época de tal morte, quando Jesus teria, como já se disse, e segundo São Irineu, uns cinqüenta anos de idade.
Segundo a tradição eclesiástica, João teria morrido sob o reinado de Trajano, quer dizer, por volta do ano 98, que foi quando começou tal reinado. João contaria, por conseguinte, oitenta e oito anos. Isto nos parece muito, tendo em conta os acontecimentos trágicos nos quais se viu necessariamente envolto. Porque seu irmão Santiago (o Menor) morreu no ano 63, quer dizer, à idade aproximada de cinqüenta e cinco anos. A opinião de vários historiadores é que João morrera na Palestina, e portanto muito antes do que diz a lenda.
Sobre este tema citaremos, uma vez mais, Georges Hamartholos (chamado Jorge, o Monge), quem, em sua Crônica do ano 850 nos conta que "Papias, testemunha do acontecimento, diz que João morreu às mãos dos judeus". (Cf. Migne, Patrologie grecque).
O Martirológio de Síria, que é do século IV, fixa em 27 de dezembro a morte dos dois irmãos, Santiago e João, que passaram juntos a melhor vida. Tudo isto implica uma dupla inverossimilhança, das duas tumbas eretas em Éfeso. Haveria, pelo menos, uma a mais. (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, III, XXXIX, e e VII, XXV, 16).
À morte de Jesus, seu irmão maior, João teria recebido dele a missão de velar por Maria, a mãe de ambos; e daí a célebre passagem: "Jesus, vendo sua mãe e ao discípulo a quem amava, que estava ali, disse à mãe: 'Mulher, eis aí a seu filho'. Logo disse ao discípulo: 'Eis aí a sua mãe'...".(João, 19, 26). O texto acrescenta que, a partir desse momento João tomou em sua casa, o que implica que antes devia viver em casa de seus outros filhos, e confirma o que dizíamos antes, ou seja, que João era filho de Maria, e portanto irmão de Jesus.
Entretanto, esse texto parece falseado, por causa de um manuscrito descoberto recentemente. David Flusser, em seu livro Jesus, citando o descobrimento desse apócrifo, (63) diz que as palavras reais de Jesus deveriam ser: "Pega seus filhos e vai!". (op. cit., P. 28).
A presença verossímil, ao pé da cruz, de Simão, Santiago e Judas, conhecidos como discípulos de Jesus, e portanto, sujeitos ao risco de ser capturados pelos legionários de guarda naquele lugar, faz-nos duvidar da veracidade de tal episódio. A menos que o manuscrito estivesse mal traduzido, que a passagem fora mais ou menos decifrável, e que terei que ler: "Pega suas filhas e vai...", porque segundo os canônicos ao pé da cruz patibular só há mulheres.
Seja o que for, o episódio de João tendo que encarregar-se de Maria em sua casa parece muito suspeito aos olhos do historiador desconfiado. Com efeito, segundo São Irineu, discípulo e ouvinte dos "padres apostólicos" ("que conhecera os apóstolos"), Jesus morreu com cinqüenta anos, "próximo à velhice". Como foi crucificado por volta do ano 34 ou 35 de nossa era, nasceu em 16 ou 17 antes desta. Maria, sua mãe, núbil legalmente com idade de doze anos e meio, pôde tê-lo quando tinha uns quinze anos. Ela nascera, portanto, por volta do ano 32 antes de nossa era, o que significaria que nesse momento contaria aproximadamente sessenta e cinco anos.
Pois bem, a quem se fará acreditar que João se ocupou de evangelizar a Ásia, e que viveu nela, como assegura Eusebio da Cesaréia? (Cf. História eclesiástica, III, I). Quer dizer, que esteve sempre caminhando, velando, cuidando e subserviente às necessidades de uma mãe anciã. Porque naquela época, e mais ainda em todo o Oriente Médio, uma mulher de mais de sessenta e cinco anos, e depois de passar por todas as tragédias que sabemos, aparentaria muito mais. Achamo-nos historicamente muito longe da imaginária de Saint-Sulpice, em que Maria aparenta sempre uns quinze anos, e nos apresenta como uma jovem tímida e bem educada. Seguro que o apostolado itinerante de João não podia acompanhar-se de semelhante carga. (64) Mas isto não é tudo. Igual a Simão-Pedro e que Jacobo-Santiago, seus meio-irmãos, desaparece totalmente dos Atos dos Apóstolos depois do sínodo de Jerusalém, no ano 47. O que se faz dele? Mistério. Porque vinte e três anos mais tarde, se dermos crédito ao Tertuliano, encontra-se em Roma, no ano 70, quer dizer, seis anos depois do incêndio da cidade e do varrido efetuado entre quão cristãos residiam ali. Que fazia, pois? Apostolado, claro! Mas, neste caso, por que não se sabe nada de seu trabalho na capital do Império romano?
Chega então o reinado de Domiciano, segundo filho de Vespasiano, que governará o Império desde ano 81 até o 96. Em 81, João teria uns setenta e um anos. Ao comprometer-se na perseguição ordenada por esse imperador contra todas as seitas e sociedades secretas, sejam as quais forem (os cristãos não são os únicos afetados), João e outros sofrerão o martírio, segundo a história oficial. Será submerso em uma cuba de azeite fervendo, às portas de Roma. Mas sairá dela fresco e bem disposto, claro está, Tertuliano chega inclusive a acrescentar que "revigorado", e conseguirá fugir, apesar da guarda e dos espectadores, pela Porta Latina, de onde seu nome de São-João-porta-latina. Aqui caímos em pleno delírio piedoso; julgue-se, se não. A Porta Latina. Porta Latina, abre-se, efetivamente, sobre o caminho que, ao sul de Roma, conduz para as catacumbas de São Calixto.
Está próxima às termas de Caracalla, e se situa a apenas mil e quinhentos metros do Coliseu. Pois bem, está aberta na muralha de defesa construída por ordem do imperador Aureliano, muralha que foi construída entre os anos 270 e 275 de nossa era, quer dizer, finais do século III, a fim de proteger à capital do Império romano das invasões bárbaras. Ao lado desta porta se levanta a capela de São Giovanni in Oleo, quer dizer, "São João no azeite", lugar tradicional no qual se afirma que teve lugar o milagre. Porque, como milagre, é e bem gordo isso de sair intacto de um banho em uma cuba de azeite em ebulição, e logo fugir por uma porta que ainda não existe, quão mesmo a muralha da qual forma parte.
Observar-se-á, além disso, que Eusebio da Cesaréia, que redige sua História eclesiástica no século IV, ignora totalmente a vinda de João à Roma, e a fritura em azeite fervendo. Entretanto, Eusebio leu De praescript haeretic de Tertuliano, morto no ano 240, onde figura este episódio. E não o teve em conta. Por outra parte, a tradição oriental situava este episódio em Éfeso. Alguém perde, a verdade! O mais provável (se é que João foi à Roma, coisa que resulta bastante duvidosa) é que, importunados por suas prédicas e escandalizados por seus ataques contra a religião do Império, os paroquianos agarrassem-no e atirassem-no dentro de um recipiente de azeite frio ou, mais simplesmente ainda, esvaziaram-lhe uma ânfora de azeite em cima da cabeça. E tentou fugir, todo viscoso, não seria pela Porta Latina, ainda inexistente. Logo lhe apanhariam de novo, já que o encontramos em Patmos, uma das ilhas Espóradas, ao norte do mar Egeu. O que prova que a aventura do azeite, se admitir sua realidade, não procedia de uma condenação a morte legal, já que o banho de azeite fervendo não é um castigo ordenado por um magistrado, e no caso de uma condenação a morte prévia, não teria visto tal pena comutada por uma deportação livre, depois do novo delito de fuga. Toda esta lenda não descansa sobre nada plausível.
Foi relevado desta deportação à Patmos no ano 98, primeiro ano do reinado de Nerva, imperador muito benevolente, e foi residir em Éfeso, cidade de Jonia, também sobre o mar Egeu. Em sua estadia em tal cidade foi onde morou, claro está, que: "O dia do Senhor (um domingo), à terceira hora (às nove da manhã), produziu-se um grande tremor de terra, uma nuvem se elevou de repente ante os olhos de todos e o transportou à Jerusalém, ante a soleira da moradia se achava a Virgem Maria, mãe de Deus. Empurrando a porta, entrou..." (Cf. Méliton, Livre du Passage de Très-Sainte-Vierge Marie, Mère de Dieu, capítulo IV e seguintes). E o bom São Melitón, que foi bispo de Sardes, em Lídia, conta-nos, maravilhado todo ele, como os santos apóstolos, apesar de estarem "dispersos por toda a terra", chegaram com os mesmos meios sobrenaturais que João à mansão de Maria, quem subiu aos céus levada pelos anjos, deixando-lhes dessa ascensão memorável um testemunho evidente: seu formoso cinturão azul.
Conhecemos outros exemplos destes: em Constantinopla, em Soissons, em Quintin, em Notre-Dame de Paris, em Chartres, em Assis, em Prato (Italia), em Montserrat (Cataluña), quer dizer, quatro na Francia, do total de oito. Não em vão a França é a "filha maior da igreja".
Como isto nos ares, por cima de Jerusalém, desenvolvia-se no ano 98, e Maria nasceu, aproximadamente, como estabelecemos antes, no ano 32 antes de nossa era, quando teve lugar essa ascensão aos céus ela contaria, portanto, 32 + 98 = 130 anos. O que é muito para uma viagem assim. Não ria você, leitor. Porque, ante o grande estupor do mundo protestante, e dos consternados teólogos e exegetas católicos, o Papa Pio XII fez desta lenda da Ascenção da Virgem, em carne e osso, um dogma definitivo, e um artigo de fé para toda a Igreja católica. Mas terá que observar que, quando o bom São Melitón compôs ou recolheu esse relato, chamado inicialmente Transitus Mariae, quer dizer, no século IV, ignorava ainda que os escribas anônimos, que operavam ao mesmo tempo que ele, imaginariam confiar ao João sua mãe Maria no Evangelho de João (19, 27), já que os mostra separados desde fazia muito tempo, nem que mais tarde morresse em Éfeso, em lugar de Jerusalém.
Para concluir, recordando que em Éfeso não faz ainda muitos anos mostravam-se várias tumbas diferentes do apóstolo João, e sabendo por outra parte que houve vários personagens com este nome na história balbuciada dos primeiros séculos, nós manteremos uma prudente reserva.
E mais quando, igual à Crônica de Georges Hamartholos, um manuscrito do século IV de Felipe de Sida (por volta do ano 430) contribui-nos a afirmação de Papias, quem ensinava que "João morreu em Judéia, muito antes da destruição de Jerusalém por Tito, no ano 70". O que destrói, evidentemente, toda a lenda.
Deixemos, pois, esses relatos infantis acumulados sobre essa figura tão interessante do discípulo "que Jesus amava", deixemos aos historiadores eclesiásticos enredar-se a mais não poder em suas múltiplos contradições, e nos limitemos a considerar simplesmente que Iochanan-bar-Zabdi, aliás João filho de Zebedeu, morreu na Palestina, no curso das represálias romanas exercidas contra o movimento messianista ou zelote, como todos seus irmãos e meio-irmãos, e que se a lenda aceitar a mentira, a história, pelo contrário, exige ter aparelhada a verdade. Porque o que em troca sim é certo, é que João participou também na luta messianista. E na História eclesiástica de Eusebio da Cesaréia lemos o seguinte, que resulta bastante desconcertante: "Também João, aquele que repousou sobre o peito do Senhor e que foi sacerdote (em hebreu: cohen), e levou o petalon, que foi mártir e didascalo, repousa em Éfeso". (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, III, XXXI, 3).
"O trono (em grego: tronos) de Santiago, daquele que foi o primeiro que recebeu do Salvador e dos apóstolos o episcopado da Igreja de Jerusalém, e a quem as divinas Escrituras designam habitualmente como o irmão de Cristo, conservou-se até nossos dias". ((Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, VII, XIX). O petalon era uma insígnia pontifícia, própria do supremo sacerdote de Israel. Está descrito no Êxodo (28, 36-38) como uma lâmina de ouro puro, com a inscrição gravada "Consagrado ao Yavé", e estava fixado sobre a tiara do pontífice, em meio de sua cinta frontal. (65)
Assim, João seria, em uma espécie de heresia associado à corrente zelote, o equivalente do pontífice supremo da ortodoxia judia. Mas se tratava de um cisma, embora dentro da grande linha da Lei recebida do Sinai. E ante esta constatação de um João, rival do cohen-ha-gadol, por lógica devemos varrer a imagem de um João enquadrando-se dentro de todas as elucubrações heréticas dos fundadores cristãos de Saulo-Paulo. Porque esta rivalidade entre o João e o pontífice supremo saído das classes dos saduceus implica que jamais o citado João imaginou um Deus em três pessoas, uma das quais constituiria seu próprio irmão. E logo, em seus discípulos, acharemos a prova, quando estes dizem: "Nem sequer ouvimos que exista um Espírito Santo..." (Cf. Atos dos Apóstolos, 19, 2).
Por outra parte, os tronos episcopais não aparecerão sob o aspecto de cadeiras, de pedra ou de mármore, até que os cristãos possuam basílicas, quer dizer, pelo menos até o século IV. Esse trono de Santiago, que na opinião dos exegetas católicos devia ser de madeira, e provavelmente de cedro, era significativo da autoridade de Santiago, do mesmo modo que o petalon o era de João. Era, portanto, um trono real, e não uma cadeira que simbolizasse a autoridade espiritual.
Observemos, além disso, que na passagem de Eusebio citada anteriormente, Santiago recebera "do Salvador e dos apóstolos" a autoridade sobre a igreja de Jerusalém, quer dizer, toda a Igreja primitiva. O que varre definitivamente a pretendida "primazia de Simão-Pedro", tão cômoda para assentar as pretensões da futura Igreja de Roma, embora Simão-Pedro não estivesse jamais em Roma, e embora foi indiscutivelmente o primeiro bispo da Antioquia, o que o situaria esta última imediatamente depois da de Jerusalém. Foi, efetivamente, quem consagrou ao Evod, primeiro bispo de Antioquia. (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, III, XXII).
Voltando para o duplo poder da corrente zelote, constataremos que o chefe temporário está sempre acompanhado de um chefe espiritual:
- Judas da Gamala com o cohen fariseu Saddoc.
- Jesus-bar-Juda (Jesus) com o Iochanan-bar-Zakariah (o Batista). (66)
- Jacob-bar-Juda (Santiago) com o Iochanan-bar-Zabdi (João).
- Simão-bar-Kokheba com rabbi Akiba-Ben-Ioseph.
E isto é uma prova mais de que João, "o apóstolo bem-amado" jamais foi outra coisa que um militante zelote, como todos seus irmãos. Não obstante, ainda nos parece necessário aqui um último resumo, como aconteceu com a biografia de Simão-Pedro.
É evidente que se o apóstolo João morreu na Judéia muito antes do ano 70 (data da destruição de Jerusalém), tal como testemunha Papias, citado por Felipe de Sida, quem no século IV ainda possuía sua Exegese das sentenças do Senhor, é que foi executado ali pelos romanos como zelote, já que naquela época Roma só perseguia a estes, dado que a perseguição do ano 64 consecutiva ao incêndio da capital do Império ainda não transbordara os limites da cidade. (67) E tinha outras coisas que fazer, em lugar de redigir um evangelho que não aparece citado mais que, pela primeira vez, na obra de Irineu, quer dizer, por volta do ano 190 de nossa era...
Conclusão inevitável: o fato de que os irmãos e discípulos de Jesus fossem todos zelotes militantes, e perecessem no curso dos combates que respondiam a esta mística, como acabamos de demonstrá-lo, prova de maneira definitiva que o próprio Jesus não foi jamais outra coisa que o chefe supremo desse movimento, tal como já desenvolvemos extensamente em uma obra precedente.
15 - As "línguas de fogo" do Pentecostes
Receberá seu batismo! Esse segundo batismo anunciado por Jesus, e que caiu sobre os apóstolos um dia de tormenta que a janela estava aberta!...
GUSTAVE FLAUBERT, La Tentation de Saint Antoine, IV
"Quando a água curva um bastão, minha razão o endireita...", disse La Fontaine em seu Animal dans la Lune. E é bastante evidente; mas só o é para a gente com sentido comum, e a ingenuidade humana, a credulidade faminta de coisas sobrenaturais "a todo custo", não o entendem assim.
Neste breve estudo consagrado ao "milagre" do Pentecostes, e que não tem outro objetivo que restabelecer o clima real no que pôde nascer sua lenda, nos limitaremos a citar os textos concretos, e que não podem ser discutidos. Releiamos, pois, os Atos dos Apóstolos: "Ao cumprir o dia do Pentecostes, estando todos juntos em um lugar, produziu-se de repente um ruído proveniente do céu como o de um vento que sopra impetuosamente, que invadiu toda a casa em que residiam (os apóstolos). Apareceram, como divididas, línguas que pareciam de fogo, que se posaram sobre cada um deles, ficando todos cheios do Espírito Santo; e começaram a falar em línguas estranhas, conforme o Espírito outorgava-lhes expressarem-se. Residiam em Jerusalém judeus varões piedosos, de quantas nações há sob o céu, e havendo-se deslocado a voz, juntou-se uma multidão, que ficou confusa para lhes ouvir falar com cada um em sua própria língua. Estupefatos de admiração, diziam: 'Todos estes que falam, não são galileus? Pois como nós os ouvimos cada um em nossa própria língua, em que nascemos? Partos, Medos, Elamitas, os que habitam Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, o Ponto e a Ásia, Frígia e Panfília, o Egito e as partes de Líbia que estão contra Cirene, e os forasteiros romanos, judeus e partidários, cretenses e árabes, ouvimo-los falar em nossas próprias línguas as grandezas de Deus!'. Todos, fora de si e perplexos, diziam-se uns aos outros: 'O que quer dizer isto?'. Outros, escarnecendo, diziam: 'Estão carregados de mosto'..." (Cf. Atos dos Apóstolos, 2, 1 a 13).
Antes de mais nada, e dirigido aos leitores que desconheçam as diversas liturgias, tanto judias como cristãs, recordaremos que a Páscoa judia tem lugar na lua cheia que segue ao equinócio da primavera. O sol encontra-se então no signo de Áries (mês de Nisán), e a Lua, ipso facto, no signo de Libra. A Páscoa segue um período de cinqüenta dias (cinqüenta, em grego: Pentekostès), que constitui um ciclo de sete semanas (sete vezes sete dias), seguido de que faz cinqüenta, dia crucial para os cabalistas e os místicos judeus. Essa Páscoa comemora a "saída do Egito". O dia que faz cinqüenta, chamado Chabuoth em hebreu, corresponde à entrega das pranchas da Lei ao Moisés em Monte Sinai: Matan Torah. Para realizar na alma do cabalista uma "ascensão" simbólica para Deus e receber a iluminação pessoal, existe um ritual, que por certo variou no curso dos séculos, e é o ritual do Tikun Chabuoth, observado fielmente na noite do Pentecostes por místicos e cabalistas judeus. E é isso, e nenhuma outra coisa, o que observaram os díscipulos e irmãos de Jesus naquela noite do Chabuoth do ano de sua crucificação.
É seguro que, antigamente, esse ritual compreendia fumigações compostas por produtos vegetais anagógenos, (68) e a ingestão de vinhos de ervas nos quais se puseram em infusão produtos vegetais alucinógenos. Sobre o uso desses produtos, basta relendo tudo o que concerne às escolas de profetas e à embriaguez em rituais dos cohanim: I Samuel, 9, 9; 10, 10; 19, 20; Isaías, 28, 7; Salmos, 75, 9; Isaías, 29, 9; Miquéias, 2, 11; Êxodo, 15, 20; Juízes, 4, 4; II Reis, 22, 14; Nehemías, 6, 14; Isaías, 8, 3.
Por isso é que dom J. Dupont O.S.B., professor na abadia beneditina de Saint-André, tradutor e anotador dos Atos dos Apóstolos no marco da Bíblia da Escola bíblica de Jerusalém, esclarece discretamente as coisas em suas notas, que nós resumiremos:
a) há uma afinidade entre o Espírito e o vento, já que em hebreu Espírito significa sopro;
b) a forma das chamas se relaciona aqui com o dom das línguas; por sua forma e sua mobilidade, a língua simboliza a chama;
c) o fenômeno do Pentecostes "vincula-se no carisma da glossolalia, freqüente nos primeiros anos da Igreja". Encontram-se antecedentes no antigo profetismo israelita. Estavam anunciados "transportes" desse mesmo estilo para o fim dos tempos;
d) no que concerne à compreensão da mensagem expressa por um dos "possuídos" pelo Espírito Santo, e isso para todos os olhares, fosse qual fosse sua nacionalidade, tratava-se de uma repetição alegórica do que acontecera no Sinai, onde a voz de Deus ouvia-se em setenta e duas línguas diferentes, tantas como nações conhecidas havia então. Por último, diz-nos dom Dupont, o milagre das línguas aparece aqui como "o símbolo e a antecipação maravilhosa da missão universal dos apóstolos".
Moderemos, pois, nosso entusiasmo. Tal como sublinha dom Dupont, é indubitável que, por tudo o que acabamos de ver, tal relato foi "hábil", deu-lhe uma trama simbólica, e é inútil querer encontrar nele uma realidade histórica concreta.
Quanto à embriaguez verbal dos apóstolos, que acabavam de sair da noite do Tikun Chabuoth e de suas fumigações e ingestões de alucinógenos, o R.P.J. Dupont a qualifica, de forma bastante plausível, de glossolalia: "O fenômeno do Pentecostes vincula-se no carisma da glossolalia, freqüente nos primeiros anos da Igreja..." (Cf. Actes des Apôtres, Editions du Cerf, Paris, 1964, P. 2, nota A.).
E o que é a glossolalia? Perguntar-se-á o leitor. O Nouveau Petit Larousse, em sua edição de 1969, dará-lhe de forma bastante sucinta sua definição: glossolalia, N. F. "Enfermidade perturbadora da linguagem, pela qual o doente cria palavras, dotando-as de significado." (Grande Enciclopédia Larousse, t.5, P. 273).
É tudo, e é mais que suficiente. Isso significa que "certos doentes mentais" formulam, em um jargão próprio deles, "ensinos" recebidos do mesmo Deus, e que alguns ingênuos se esforçam por encontrar nisso significados proféticos. Em 1785, o cândido Willermoz foi vítima de uma alucinação deste tipo, e seu jargão demencial incitou inclusive ao L.C. de Saint-Martin a jogar ao fogo, entusiasmado, seus próprios livros! (69) (Cf. Alice Joly, Un mystique lyonnais, páginas 230 a 240).
O manuscrito da biblioteca de Grenoble (papéis de Prunelle de Lière, Livre del Initiés, P. 25) proporciona-nos numerosos casos. Citemos, por exemplo: "Ser puro, ser sozinho, plenitude em triplo ur, inacessível ao sentido, vista infinita, inocente amor, vivam nele...? (1), perturbações dos ur, são inacessíveis a sua emanação, três vezes afastada do centro do ser. Ousou, esse ser saído do ser mesmo, atribuir-se à produção. O voulia, seus puros ornos, que tinha em seus seos..."
O ritual da Ordem Martinista de Papus, composto pelo Teder, conservou alguns ecos disso, com a chamada a um certo Noudo-Roabts (op. cit., páginas 32 e 80), termo que está diretamente extraído dessa assombrosa linguagem.
16 - Menahem o "consolador"
...e Menahem, que fora criado com Herodes, o Tetrarca, e Saulo. Atos dos Apóstolos, 13, 1
Contrariamente ao que se está acostumado a afirmar, Menahem não era um filho de Judas da Galiléia, a não ser só um de seus netos, e a cronologia histórica está aí para demonstrá-lo. Mas de quem era filho? No estado de nossa documentação, não podemos avançar nenhum nome válido. É um "filho de David" e um membro da família real, isso é tudo. Mas afirmar que é o filho de Simão-Pedro, de Santiago ou de André, é impossível. Tudo o que sabemos dele o devemos ao Flavio Josefo, como sempre: "Não obstante, Menahem, filho de Judas, o Galileu, aquele grande sofista que em tempos de Quirino reprovara os judeus que, em lugar de obedecer só a Deus, eram tão covardes para reconhecer aos romanos como amos, Menahem, depois de atrair junto a ele algumas pessoas de alta condição, tomou pela força Massada, onde se achava o arsenal do rei Herodes, e depois de armar numerosas pessoas que não tinham nada a perder, e a ladrões que lhe uniram e aos que utilizava como guarda, retornou à Jerusalém como rei, erigiu-se em chefe da revolução, e ordenou continuar o assédio do alto do palácio..." (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, XXXII). (70)
Isto tem lugar sob o procurador Gessio Floro, que entrara em funções no ano 63, nono ano do reinado de Nero. Esse ano, Saulo-Paulo fora absolvido em Roma, pelo tribunal imperial ante o qual pedira a comparecer. E a revolução de Menahem se produziu na primavera do ano 64, pouco antes da Páscoa, como sempre. A grande guerra judia estalaria dois anos mais tarde, no ano 66, e terminaria com a destruição total de Jerusalém, no ano 70.
A fim de estimular aos combatentes palestinos em sua luta contra Roma, e a fim de lhes fazer acreditar na predição do Apocalipse (difundida já desde o ano 28, em vida de Jesus -seu autor confessado- e não em 94 ou 96) (71) realizar-se-ia, e que seguiria à chegada do famoso "reino de Deus" na terra, incendiaram Roma. Este incêndio seria o anúncio do final dos tempos. Saulo-Paulo seria quem deu a ordem. E não lhe podia negar isso ao Menahem, com quem fora criado, e que além disso o tinha sujeito por uma espécie de chantagem que já desvelamos em "O homem que criou ao Jesus Cristo."
No momento, recordemos simplesmente uma determinada passagem dos Atos dos Apóstolos: "Havia na igreja de Antioquia 72 profetas e doutores: Bernabé e Simão, chamado Níger, Lucio de Cirene, e Menahem, irmão de leite do tetrarca Herodes e Saulo..."(Cf. Atos dos Apóstolos, 13, 1).
A chegada desse Menahem fora anunciada pelo próprio Jesus, em vida: "E eu rogarei ao Pai, e lhes dará outro consolador..." (João, 14, 16).
"Se eu não me for, o consolador não virá a vós..." (João, 16, 7).
Esse termo de consolador (em grego: paraklétôs) não significa somente isso, mas também, e sobretudo, defensor, conselheiro. E em hebreu, o grego paraklétôs, que deu nosso Paráclito, diz-se simplesmente menahem! Uma vez mais, os escribas anônimos que compuseram nos séculos IV e V os atuais evangelhos nos fizeram tomar, astutamente, o Pireo por um homem, mas invertendo a fórmula. A um homem, sucessor do mais humano de Jesus, fizeram-no passar por uma entidade, espécie de deus secundário, que com muita dificuldade podem explicar e justificar frente à Israel. E no ponto no qual pretendiam fazer esperar uma intervenção celeste, Jesus queria dizer, simplesmente: "Enviar-lhes-ei a meu sobrinho...".
Mas continuemos a leitura de Flavio Josefo, embora esteja censurado e interpolado: "Como (ao Menahem) faltavam-lhe máquinas, e não podia ir abertamente a sapa por causa dos disparos que os assediados (legionários romanos, mercenários de Agripa, levita regulares) lançavam do alto, recorreu a uma mina. Começaram a trabalhar de longe, e quando a conduziram até debaixo de uma torre, saparam os fundamentos e a sustentaram depois com peças de madeira, às quais prenderam fogo antes de retirar-se. Quando essas madeiras se queimaram, a torre se desmoronou. Mas os assediados previsram o que podia acontecer, e uma parede que tinham construído com extrema diligência surpreendeu e deteve os assediantes. Assediados não deixaram de enviar recado ao Menahem e aos outros chefes dos sediciosos, para lhes pedir que pudessem retirar-se com segurança, e o concederam somente aos judeus e às tropas do rei Agripa". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, XXXII).
Menahem continua então cercando às tropas romanas que ficaram sozinhas, e estas evacuaram então o Stratopedon, e se retiram às torres reais de Hippicos, de Fazael e de Mariamna. Isto aconteceu no 6º dia de setembro do ano 64. Fazia, portanto, seis meses que Roma tinha ardido. Ao dia seguinte, os partidários de Menahem, depois matar uma parte da guarnição de Roma e incendiado o Stratopedon, capturaram Ananías, o supremo sacerdote, assim como Ezequías, seu irmão, refugiados nos esgotos do palácio, e executaram-nos, vingando assim a morte de Santiago, o Menor, lapidado por ordem do citado Ananías no ano precedente. A seguir sitiaram as três torres reais, onde os romanos continuaram resistindo.
Mas Menahem, envaidecido por seus êxitos, perdeu de vista a doutrina dos zelotes: "Deus é o único rei", e logo se tornou um insuportável tirano, que chegou inclusive a revestir a púrpura real e a coroa de ouro. Então Eleazar, filho de Ananías, reuniu a seus partidários saduceus e, aproveitando que o citado Menahem entrara com grande pompa ao Templo santo para oferecer ali um sacrifício, atacou ao guarda de Menahem, capturou-o ou matou-o. Alguns fugiram para a cidadela de Massada, entre eles outro Eleazar, parente de Menahem. Quanto ao próprio Menahem, foi procurado ativamente, e por último o capturaram em uma localidade chamada Ophlas, onde estava escondido. Conduziram-no à Jerusalém "e o executaram em público, depois de fazer-lhe sofrer uns torturadores inauditos. Do mesmo modo trataram aos principais ministros de sua tirania, e em especial ao Absalón". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, XXXI).
Assim morreu Menahem, neto de Judas da Gamala e sobrinho de Jesus, sobre cujo nome, e devido a uma surpreendente confusão, construir-se-ia a lenda da existência de uma pessoa divina nova: o Espírito Santo. O que logo surpreenderia muito aos discípulos de João, o Evangelista, já que nos Atos dos Apóstolos lemos o seguinte: "No tempo em que Apolo se achava em Corinto, Paulo, atravessando as regiões altas, chegou a Éfeso, onde achou alguns discípulos, e lhes disse: 'recebestes ao Espírito Santo ao abraçar a fé?'. Eles lhe responderam: 'Nem sequer ouvimos que exista um Espírito Santo!'... "Disse-lhes: 'Pois que batismo recebestes?'. Eles lhe responderam: 'O batismo de João'..." (Cf. Atos dos Apóstolos, 19, 1-3).
Evidentemente, arrumaram-as para fazer acreditar que se tratava de discípulos de João, o Batista. Mas isso acontecia no ano 54, ano em que Saulo-Paulo estava em Éfeso. Como imaginar que o Batista, que morreu no ano 31, tivesse então discípulos nessa cidade de Jonia, assentada à beira do mar Egeu? Jamais houve mandeanos (nome dos discípulos de Batista) na Grécia. Em troca, Éfeso está associada à estadia de João, o Evangelista, e é simplesmente aos seus a quem encontra Saulo-Paulo. E, por conseguinte, a gente não pode a não ser assombrar-se ante o fato de que o discípulo "que Jesus amava", que devia escrever o "evangelho espiritual", ignorasse a existência do Espírito Santo, conclusão aniquilam-lhe, já que nesse mesmo evangelho fala dele. E aí é onde surpreenderemos uma vez mais aos falsificadores anônimos do século IV com as mãos na massa.
Porque, tenhamos em conta a versão oficial de discípulos de João, o Batista, em Éfeso, no ano 54, embora tivesse morrido vinte e dois anos antes. Não lhes ensinou a existência do Espírito Santo? Então, como pode lhes falar dele em João (1, 29 a 34), em Mateus (3, 11), em Marcos (1, 8), em Lucas (3, 16)?
Se, pelo contrário, e mais plausivelmente, em Éfeso do que se trata é de um grupo de discípulos de João, o Evangelista, resulta igualmente incoerente. Porque, se João ignorar a existência de um Espírito Santo, como pode falar dele em seu evangelho? E se conhecer sua existência, como seus discípulos imediatos podem ignorar semelhante postulado teológico de partido?
A verdade é que o evangelho de João não é de João. Aparece com São Irineu, no ano 190, citado pela primeira vez, e desconhece-se seu autor.
E, como faz observar Ernest Renan com razão, se esse evangelho existisse na época de Marcion, quer dizer, por volta do ano 150, data média de sua doutrina pessoal, que emprego não faria dele, em lugar do de Lucas, e que conclusões não tiraria! Mas o fato de que Marcion ignore totalmente o evangelho atribuído ao João demonstra que naquela época, e em todas as comunidades cristãs em que Marcion passou um tempo, especialmente em Roma, desconhece-se ainda esse texto capital. E essas comunidades marcionitas são precisamente as principais bases de partida da nova religião: Sinope, Éfeso, Hierápolis, Esmirna, etcétera.
O que nos reforça em nossa opinião de partido nesta disgressão, ou seja, que no pensamento de Jesus, esse "consolador" cuja vinda previa para depois da sua, esse paraklétôs, era um homem de carne e osso, seu próprio sobrinho, Menahem, consolador em hebreu. Quem acabou muito mal, como vimos na leitura de Flavio Josefo.
NOTAS COMPLEMENTARES
Sem afirmar nada de maneira absoluta, pode supor-se que Menahem bem podia ser o filho de Eleazar, aliás Lázaro, aliás André, à leitura das duas velhas versões de Flavio Josefo: "Porque nesses dias, Maneo, sobrinho de Lázaro, a quem Jesus ressuscitou da tumba, já podre..." (Cf. Flavio Josefo, Guerras da Judéia, V, VII, manuscrito eslavo).
Esse texto foi manipulado pelos monges copistas ortodoxos, já que não há nenhuma possibilidade de que Flavio Josefo falasse da pseudo-ressurreição de Lázaro. Tomemos, portanto, a versão grega: "Maneo, filho de Lázaro, depois de ter fugido para o Tito, contou-lhe que desde o décimo quarto dia de abril, até o primeiro dia de julho, tinham evacuado 115.880 corpos mortos pela porta em que ele tinha o mando". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, V, XXXVII, manuscrito grego).
Se esse nome de Maneo é a forma helenizada de Menahem, este último seria, pois, um neto de Judas da Gamala, e seria o filho de André, aliás Lázaro, sobrinho de Jesus, quão mesmo o Menahem oficial. E então não seria o fato de querer proclamar-se rei o que provocou sua execução, a não ser o de transgisir com Tito, coisa que foi considerada como uma traição.
17 - Simão-bar-Cleofás
Deus não tem necessidade de nossas mentiras. LEÃO XIII
Aqui temos a outro membro da estirpe davídica que, por isso mesmo, terminou tragicamente sua vida, sob o reinado de Trajano. "Depois de Nero e Domiciano, sob o reinado daquele cujo tempo examinamos agora (Trajano), levantou-se uma perseguição contra nós parcialmente e em algumas cidades, segundo conta a tradição, a conseqüência de um levantamento dos povos. Simão, filho de Cleofás os povos, por isso sabemos consumiu sua vida no martírio. Com toda segurança alguns de seus hereges acusaram ao Simão, filho de Cleofás, de ser da raça de David e cristão. Como era cristão (messianista, e portanto zelote N. do A.) foi atormentado de diversas maneiras durante vários dias, e depois de assombrar profundamente ao juiz e a quem rodeava, teve um final semelhante à paixão do Senhor". (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, III, XXXII).
O Chronicon Paschale situa esta morte no ano 105, precisando-nos que Simão foi também crucificado: "...Simeon, filius Cleophae, qui in Hierosolymis episcopatum tenebat crucifigitur cui succedit lustus..." (Cf. Chronicon Paschale: ad annum 107).
Isto acontecia em Jerusalém, onde o citado Simão era "bispo e teve como sucessor Justo". Tratou-se, portanto, de uma nova revolução zelote, que terminou com uma execução de tipo rigorosamente romano: a cruz.
Mas Simão era bispo de Jerusalém tão somente in partibus infidelium, porque a igreja de tal nome (a comunidade messianista zelote) não podia residir ali, dado que a aproximação à cidade estava proibida a todo judeu de raça, sob pena de morte. De fato, desde ano 70, a Igreja de Jerusalém tinha sua sede em Bolota, na Perea (cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, III, V, 3), mas foi nessa cidade onde crucificaram ao Simão.
A revolução do ano 105, no curso da qual foi crucificado tal Simão, "filho de Cleofás", foi seguida de outra, nos anos 115-117, por parte dos judeus do Egito. (73) Esta tampouco teve futuro. E agora chegamos à última, a que abocou na dispersão total da nação judia, ao ficar Jerusalém totalmente arrasada, e sem que pudesse identificar-se absolutamente nada de sua antiga topografia, no ano 70 de nossa era, segundo Flavio Josefo; mais de um milhão de mortos, perto de cem mil prisioneiros levados como escravos: esse foi o balanço da revolução de Menahem, o "consolador" anunciado por seu tio Jesus. E desse pseudo-profeta uns ardilosos astuciosos souberam fazer um terceiro deus, em menos de quatrocentos anos.
18 - Simão-bar-Kokheba
O trágico na vida dos homens são menos seus sofrimentos que seus fracassos.
THOMAS CARLYLE
Também aqui encontramamo-nos em presença de uma verdadeira "guerra Santa", e poderemos seguir, até o aplastamento final, o afã contínuo por observar religiosamente a Lei mosaica.
Ainda existem poucos documentos descobertos sobre a revolução de Simão-bar-Kokheba. Resumiremos aqui os trabalhos dos diversos especialistas neste tema:
- de M.P. Prigent, professor na faculdade de teologia protestante da universidade de Estrasburgo, autor de duas conferências no Centro de Estudos Orientais da universidade de Genebra;
- de M. Valentín Nikiprowelszky, professor do Collège de France, especialista em história da corrente zelote, e que prefaciou a reedição das obras de Flavio Josefo, em sua tradução de Arnauld d'Andilly, no Editions Lidis;
- de M.A. Dupont-Sommer, professor em Sorbone, diretor na Ecole des Hautes-Etudes, em seus Nouveaux aperçus sur les manuscrits de la Mer Morte;
- de M. Gérard Nahon, em seu livrinho Les Hébreux, etcétera.
Antes que nada, terá que estabelecer o clima particular no qual viviam Judéia e Galiléia, depois da terrível repressão de Tito.
O Templo está arrasado. E, tal como diz o Talmud: "os chacais se instalaram na convocação do Sancta Santorum..."
Nas moedas romanas cita-se a Judéia como "Judéia capta", quer dizer, Judéia cativa. Como Jerusalém e seus extensos arredores estavam proibidos a todo judeu de raça, o Sanedrín, convertido agora em simples corte de justiça religiosa, deslocar-se-ia sucessivamente, ao desejo das suspeitas romanas, de Yabné a Uscha, ao Schefaram, ao Beth-Sheorim, ao Séforis, ao Tiberíades.
Eram tempos de luto. Os chefes de Israel ordenaram então penitência para comemorar o aniquilamento do santo Templo, e criaram o Ticha b'Ab, jejum total e pés descalços durante vinte e quatro horas, leitura das Lamentações de Jeremias, e luzes das sinagogas apagadas. Durante os oito dias que precediam ao Ticha b'Ab, não se comia carne, não se bebia vinho, não se cortava o cabelo, e se postergavam bodas e noivados. Isso constituiria, na Idade Média, o famoso "Sabbat negro" das comunidades judias da Alemanha.
Apesar do enorme golpe demográfico causado pela derrota, tentaram voltar a cultivar as terras afastadas de Jerusalém; teriam que viver apesar de tudo, por Israel do manhã, porque não se perdeu a esperança.
Os camponeses judeus, convertidos em "escravos de César", não eram outra coisa que servos medievais. Alguns "colaboradores" prudentes, em geral os saduceus, conservaram graças a sua covardia durante a revolução seu patrimônio familiar, e às vezes inclusive o aumentaram. A história é um eterno voltar a começar. E estavam também os cristãos ...
Gozavam de um certo número de privilégios, porque a maioria, se não todos, eram sírios ou gregos, o que lhes permitia residir na nova Jerusalém, proibida aos judeus. E esse favor acentuaria um pouco mais o ódio entre essas duas facções religiosas.
Mas, como diria mais tarde Gérard de Nerval em Aurélia, "existe um segundo sentido dos acontecimentos humanos..." Assim, estimulado pelas provas de um longínquo passado, às quais aconteceram consoladoras glórias, Israel rogava pela reconstrução do santo Templo, "logo e em nossos dias...", como reza a fórmula ritual. Mas da esperança à ilusão às vezes não há mais que um passo, e a pressa é má conselheira. O ingênuo povo imaginará rapidamente que os "dias do Messias" não estiveram jamais tão próximos. Foi então quando a corrente zelote, essa corrente que se acreditava definitivamente extinta dos suicídios de Massada, os queimados vivos da Cesaréia Marítima e os crucificados de Jerusalém, reapareceu de novo, como se levantaria de repente um tufão vingador. Um "príncipe de Israel", Simão-bar-Kokheba, reuniram aos "maquis" da Alta Galiléia, aos dos estepes desérticos, e levantou o estandarte da última revolução judia cunhada com a estrela de David. Era de estirpe davídica, porque descendia também ele de Judas da Gaulanita. Era, portanto, um sobrinho neto de Jesus, e prova disso é que Rabbi Akiba-Ben-Ioseph, o célebre doutor e cabalista, (74) o apresenta como o Messias-Rei, liberador da nação judia. Deu-lhe o nome místico de Simão-bar-Kokheba, quer dizer, Simão filho da Estrela, alusão a célebre profecia: "Um astro se levanta de Jacob, um cetro se eleva de Israel, ferirá os flancos de Moab, abaterá a todos os filhos de Set, Edom se converterá em sua posse, e se apropriará de Seir, seu inimigo. Israel manifesta sua força; e aquele que sai de Jacob, reinará como soberano... (Cf. Números, 24, 17-19, Oráculo de Balaam, filho de Beor). (75)
Também o espectro de Judas da Galiléia devia estremecer-se de alegria quando se remontava ao Sheol cada tarde de cada Sabbat, já que seus princípios se respeitavam escrupulosamente: o poder espiritual o exercia Rabbi Akiba, e o poder temporal Simão-bar-Kokheba.
De todo modo, esse entusiasmo geral tropeçou também com alguns céticos. E Rabbi Iochanan-Ben-Torta não vacilou em declarar, zombador: "Akiba, antes te brotará erva das mandíbulas, que o Filho de David chegue..." (Cf. Talmud de Jerusalém, Ta'anith, IV, 7). Esta ironia, conservada pelos historiadores talmudistas, contribui-nos entretanto, a prova da filiação davídica de Simão-bar-Kokheba, porque, senão fosse assim, Rabbi Akiba jamais o apoiasse e assistido com sua autoridade nesta revolução. Mas esse cepticismo era próprio dos intelectuais, fartos de tantas guerras inúteis, porque o povo, entretanto, seguia. Encontramo-nos no ano 132, sob o imperador Adriano.
E de repente, a tempestade brotada dos guerrilheiros zelotes varreu literalmente as legiões de Tineius Rufus, legado imperial. A insurreição generalizou-se. Simão-bar-Kokheba, "príncipe de Israel" (já não ocultava esta condição) cunhou moedas oficiais que levavam em cunho: "Pela liberdade de Jerusalém". Constituiu a seguir um exército regular, nomeou governadores regionais, percebeu os impostos em dinheiro e os dízimos em espécies.
Mas três anos mais tarde, a "última batalha" tocou a seu fim, e no ano 135 Julio Severio aniquilou aos últimos rebeldes. Fugindo de Ein-Gueddi, nas bordas desoladas do mar Morto, quartel general do "Filho da Estrela", resultaram dizimados pouco a pouco, perseguidos pelas legiões romanas, superiores em número e armamento, e fortificaram-se nas grutas de Nahal Hevert e de Murrabaat, para morrer nelas.
Como acabaram? Não se sabe exatamente. O que é seguro é que foram vencidos sobre tudo pela fome. Julio Severio dispunha de 65.000 homens. De modo que puderam rodear facilmente todo o maciço.
No curso das escavações de 1953 descobriram nessas grutas, que se abriam a escarpados vertiginosos, esqueletos, sobretudo de mulheres e de meninos, mortos de fome e de sede. Ainda estão em estudo os arquivos e os manuscritos. O saque dos rebeldes, composto de objetos que provinham de templos pagãos, de baixela e de vasilhas de cobre, estava acompanhado de cestos que continham crânios e ossaturas humanas. De onde procediam? Mistério. Eram provavelmente os restos de mortos judeus, em espera do pequeno sepulcro de pedra, arca final de todos os defuntos em Israel.
O que fizeram de Simão-bar-Kokheba? Morreu no curso dos últimos combates, e sua cabeça provavelmente foi levada ante Julio Severio, segundo o costume da época. Quanto ao Rabbi Akiba, foi feito prisioneiro e mantido encarcerado durante dois anos, e no ano 135, quando caiu Beitar, onde morreu o "Filho da Estrela", foi esfolado vivo, e logo assado a fogo lento, na Cesaréia Marítima, ante as autoridades romanas. Suas últimas palavras foram para proclamar sua fé: "Escuta, Oh, o Israel: Yavé é nosso Deus, Yavé é um só..." (Cf. Deuteronômio, 6, 4).
Outros nove doutores, discípulos deles, sofreram suplício com ele, e só um escapou aos romanos: o célebre Simão-bar-Iochai. Para isso, viveu doze anos, com seu filho, nas pedreiras próximas à Cafarnaum, à beira do lago de Genezaret. Seria ali, nas trevas só rasgadas pela luz da lamparina de azeite, onde comporia o Sepher-ha-Zohar ou Livro do Esplendor, conforme reza uma lenda tardia.
Esta última revolução, que inicialmente se suscitou com a intenção de opor-se à reconstrução de Jerusalém sob o aspecto de uma cidade totalmente pagã e vedada aos judeus por ordem do imperador Adriano, custou a vida de seiscentas mil pessoas de ambos os sexos. Nasceu judia desapareceu como entidade política e geográfica, e a população foi vendida nos mercados de escravos de todo o Império romano, ou foi deportada por cidades inteiras, em qualidade de "escravos de César".
O nome de Simão-bar-Kokheba, ou "Filho da Estrela", converteu-se então no Simão-bar-Kozab, ou "Filho da Mentira" através de um trocadilho, já que Koseba voltava Kozab (em hebreu: mentira). E aqui voltaremos a encontrar Jesus, seu tio avô, com seu conhecimento dos truques sabidos por todos os titeriteiros ambulantes.
No Apocalipse encontramos a seguinte "revelação de Jesus Cristo" (op. cit. 1, 1), importante alusão a um indiscutível ilusionismo: "Mandarei minhas duas testemunhas para que profetizem, durante mil duzentos e sessenta dias, vestidos de saco. Estes são duas oliveiras e os dois castiçais que estão diante do Senhor da terra (adonai-ha-aretz). Se alguém quiser lhes fazer mal, sairá fogo de suas bocas, que devorará a seus inimigos" (Apocalipse, 11, 3-5).
Pois bem, em seu Discurso preliminar ao Dictionnaire des hérésies, des erreurs et des schismes, dedicado ao monsenhor de Choiseul, arcebispo de Albi (Besançon, 1817), o abade Pluquet diz o seguinte a respeito de Simão-Ben-Koseba: "Quando Adriano quis enviar uma colônia a Jerusalém, o impostor Barcochebas (sic) anunciou-se aos judeus como um Messias. Com a estopa acesa que levava na boca, e por meio da qual soprava fogo, persuadiu ao povo de que, com efeito, era o Messias; os principais rabinos publicaram que era o Cristo, e os judeus o ungiram e o proclamaram seu rei". (Op. cit., P. 131).
Aqui terá que entender o termo Cristo no sentido judaico tradicional: Messiah, Messias em hebreu. Não há nenhuma alusão ao Jesus Cristo, por parte dos judeus, claro está. Mas voltemos para Apocalipse. Que o redigisse Jesus em vida, por volta do ano 27 ou 28 de nossa era, como demonstramos em uma obra precedente, (76) ou ditado depois de sua morte ao João, "o discípulo bem-amado" não muda o fato de que fora ele seu autor oficial: "Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para instruir a seus servos sobre as coisas que têm que acontecer logo". (Apocalipse, 1, 1).
Pois bem, a nafta e o petróleo conhecem-se da mais remota antigüidade. Nas civilizações da mesopotâmia e em Fenícia se utilizava o asfalto para o calafetado dos navios e a construção das estradas. O petróleo servia deste modo para o sistema de iluminação, para a limpeza e para fins medicinais. (Cf. Michel Mourre, Dictionnaire d'histoire universelle, tomo II, P. 1.638: Pétrole). A nafta é uma espécie de betón líqüido, transparente, ligeiro e muito inflamável. O petróleo destilado parece-lhe enormemente. Encontra-se na Persia, nas bordas do mar Caspio, na Sicilia e na Calabria.
É evidente que essa misteriosa "água" que verte o profeta Elias sobre a lenha de seu altar, no topo do monte Carmelo, (77) e que se acende imediatamente, ante sua prece, não é outra coisa que nafta, acesa com ajuda de uma lupa, ou de um cristal que fizesse as vezes dela. E o "truque" de Simão-Ben-Koseba consistia em conservar em sua boca uma bola de estopa cheia de petróleo, e cuspi-lo repentinamente, através da chama de uma pequena tocha sustentada diante dele. Mas para a época e a um ignorante, o rosto queimado do adversário o seria por um prodígio inexplicável, e a profecia do Apocalipse se realizou...
Evidentemente, em nossos dias todo mundo viu um ilusionista que, nas feiras, nos circos ambulantes, ou inclusive em uma praça pública de bairro, "cospe fogo" desta maneira. Mas retrocedamos vinte séculos, nos situemos no centro de uma massa popular totalmente subjugada pelas superstições mais comuns, e admitiremos que o problema se expõe desde outro ângulo.
Pois bem, em uma obra precedente já vimos que o segredo da pólvora era conhecido pelos sanedritas. (78) Acabamos de estabelecer que o emprego do petróleo e da nafta, em matéria de "milagres" religiosos, também o era. Assim, ao afirmar com antecedência que esses dois representantes oficiais, essas duas "testemunhas", cuspirão com sua própria boca fogo sobre seus adversários, Jesus em seu Apocalipse nos demonstra que se acostumara com esses truques, que provavelmente ele utilizou, (79) e Celso tinha razão em seu terrível Discurso verdadeiro ao classificá-lo entre os magos, termo que, em nossos dias, é sinônimo de ilusionista, já que há truques que ainda não foram explicados.
E isto nos leva ainda mais longe na via das constatações. Ao adotar e realizar o truque discretamente aconselhado no Apocalipse para assentar melhor suas pretensões de Messias liberador, Simão-Ben-Koseba, príncipe de Israel, revelou-se não só como filho de David (indispensável para desempenhar esse papel), mas também como discípulo de Jesus de Nazaré, cujo verdadeiro nome era Jesus-bar-Juda, já que, acompanhado pelo Rabbi Akiba, pretendia cumprir a profecia da "testemunha" que cuspiria um fogo mortal.
E em Eusebio da Cesaréia lemos o seguinte: "Um homem chamado Barchochebas estava então à liderança dos judeus. Esse nome significa estrela. Pelo resto, era um ladrão e um assassino, mas, com seu nome, impunha-se aos escravos como se fora uma luz vinda do céu para lhes ajudar, e milagrosamente destinada a iluminá-los em suas desgraças". (Cf. Eusebio da Cesaréia, Histórias eclesiásticas, IV, VI, 2).
Traduzamos: era um zelote, um sicário (de onde a acusação de que era um assassino), cobrava o dízimo messianista, (80) de onde a acusação de ladrão. Mas continuemos: "O mesmo Justino, recordando a guerra que teve então lugar contra os judeus, acrescenta isto: 'E efetivamente, na guerra judia que teve lugar agora, Bar-Cochebas, o chefe da revolução dos judeus, conduziu a terríveis suplícios só aos cristãos, se não renegavam e não blasfemavam de Jesus Cristo'... " (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, IV, VIII, 4, citando ao Justino, em I Apologético, XXXI, 6).
Pode demonstrar-se melhor que o "Jesus Cristo" do ano 135, época da revolução de Simão-Ben-Koseba, é o criado integralmente por Saulo-Paulo, quer dizer, um Jesus totalmente estranho ao ideal zelote e, sobretudo, ao Jesus da história real, ao filho de David crucificado por Poncio Pilatos, e que se Simão-Ben-Koseba acreditou ter que realizar a promessa do Apocalipse é que se sentia sucessor de seu verdadeiro autor, e não queria ouvir nada sobre esse cristianismo obra de Saulo-Paulo, e que a seus olhos isso constituía a maior traição ao nacionalismo judeu? O ódio que os judeus extremistas sentiam para Saulo-Paulo provavelmente estava relacionado com a morte de Simão-Pedro e de Jacobo-Santiago, no ano 47. Suspeitavam que foram entregues por Saulo-Paulo ao Tibério Alexandre, quem os fez crucificar em Jerusalém, como já vimos no começo. De todo modo, a acusação de Eusebio da Cesaréia contra Bar-Kokheba nos oferece algumas dúvidas, se se tiver em conta que seu alter ego, Rabbi Akiba, era um feroz adversário da pena de morte.
Agora bem, Saulo-Paulo não fora durante tanto tempo seu desumano adversário, chefe de uma tropa ao serviço de Roma e dos Herodes, como para não achar-se na necessidade de ter que justificar aos olhos de Roma seu passo ao judaísmo nazareno, e para isso deveria mostrar-se como fiel vassalo, e pactuar alguns compromissos importantes.
A um ex-colaborador é muito difícil escapar a seu passado e liberar-se da tutela de seus antigos chefes. E ainda lhe é mais difícil apagar tal passado e converter-se em amigo daqueles a quem se perseguiu. A história é um eterno voltar a começar.
Acreditam útil resumir brevemente a sorte de cada um dos personagens evangélicos, à luz do que descobrimos no curso de nossas investigações. Vejamos, pois, essa recapitulação do mais eloqüente:
Jesus: crucificado no ano 35 em Jerusalém, sob o procurador Poncio Pilatos.
Judas Iscariotes: enforcado e estripado no ano 35, em Jerusalém, por ordem dos discípulos imediatos. (81)
Mateus, aliás Leví: desaparecido sem deixar rastro imediatamente depois da morte de Jesus. Poderia ser executado pelos discípulos.
Felipe: desaparecido sem deixar rastro imediatamente depois da morte de Jesus.
Judas, aliás Tadeu, aliás Lebeo, aliás Tomás: decapitado no ano 45 na Judéia, sob o procurador Cuspio Fado.
Bartolomeu, aliás Natanael: crucificado no ano 47 em Jerusalém, sob o procurador Cuspio Fado.
Simão-Pedro: crucificado no ano 47, sob o procurador Tibério Alexandre, ao mesmo tempo que seu irmão Santiago o Maior.
Santiago o Maior: crucificado no ano 47, em Jerusalém, sob o procurador Tibério Alexandre, ao mesmo tempo que seu irmão Simão-Pedro.
André, aliás Lázaro: capturado no ano 51 pelo procurador Antonio Félix, enviado à Roma, ante o imperador, liberado em troca de um resgate por Nero César, voltado para a Judéia e desaparecido no ano 56.
João: quase com toda segurança lapidado em Jerusalém, no ano 63, ao mesmo tempo que seu irmão Santiago o Menor.
Santiago o Menor: lapidado em Jerusalém, no ano 63, ao mesmo tempo que seu irmão João, sob Ananás, supremo sacerdote saduceu, sendo procurador titular Albino.
Ao terminar a redação deste capítulo, o autor quer render uma justa comemoração a todos esses homens que souberam morrer, de uma morte freqüentemente espantosa, para que seus compatriotas e seus filhos gozassem do bem mais prezado: a liberdade. A desmitificação do cristianismo inserida necessariamente em uma desmitificação das massas das quais abusou. Pascal evocou muito bem, em uma de suas frases, sabiamente evocadora, o aspecto aberrante de toda guerra militar, justificada pelo fato de que o adversário vive "ao outro lado do rio..." Mas Henri de Montherlant justificou por sua vez outro aspecto dos combates sem quartel que enfrentam às vezes aos homens: "A guerra civil é a boa guerra, aquela em que se sabe a quem se mata e por que se mata..."
A guerra militar nem sempre pode justificar-se. Recordemos as palavras amargas de Anatole France: "A gente crê morrer pela pátria, e morre por alguns industriais!..."
Mas a que levaram a cabo os ferozes zelotes contra os ocupantes romanos e suas tropas mercenárias foi uma guerra "Santa", justa, embora o obscuro destino não lhes proporcionasse a vitória. Por isso, deveria respeitar sua memória, embora terei que lavar sua história de todas as imposturas acumuladas pelos séculos. E isto, o autor destas páginas devia dizê-lo.
19 - Maria, mãe de Jesus
Ela elevou os olhos ao céu e disse: Quem sou eu, Senhor, para que todas as nações da Terra um dia me benzam?..." Porque Maria esquecera os mistérios que lhe revelara o arcanjo Gabriel...
Protoevangelio de Santiago, XII, 2
O capítulo que tratasse dos "filhos de David" e não desse o máximo de informações inéditas sobre Maria, a mãe de todos eles, seria um capítulo incompleto. Por isso é importante apresentar todo um pequeno universo humano que, a partir de agora, permanecerá à margem da religião nova montada por aquele aventureiro de quão místico foi Saulo-Paulo. (82)
Como já dissemos em nossa primeira obra, (83) e segundo as afirmações dogmáticas da Igreja católica, ignoramos tudo que possa referir-se aos pais de Maria, mãe de Jesus; e tal Igreja, considerando este terreno como terrivelmente perigoso para a lenda cristã, nega-se, por conseguinte, a ensinar nada oficial a este respeito. Não obstante, nós, que não nos atenemos a essa prudente reserva, e por motivos diametralmente opostos, abordaremos o problema das origens familiares da mãe de Jesus da história.
As genealogias reproduzidas nos evangelhos de Mateus e de Lucas, por contraditórias que sejam, só se aplicam ao pai oficial de Jesus, quer dizer, ao evanescente José da lenda, cujo suposto nome de circuncisão, segundo Lucas (3, 24), era Ioseph-bar-Heli, e segundo Mateus (1, 16), era Ioseph-Ben-Iacob. Como se vê, os escribas do século IV não ficaram de acordo ao compor seus relatos.
Nos canônicos não têm nada sobre Maria, e é um apócrifo célebre, do qual a Igreja tira abundante informação para suas necessidades iconográficas, o Protoevangelio de Santiago, que nos diz que seu pai se chamava Joaquim e sua mãe Ana, em hebreu Hannah.
Esse silêncio reprovador e rabugento dos exegetas oficiais nos oculta, evidentemente, algo, coisa que cabe ao historiador sincero, curioso por natureza, a desentranhar o motivo secreto de tal silêncio. Em primeiro lugar afirmaremos que Maria procedia de uma família bastante rica, por surpreendente que resulte esta afirmação. Este fato o estabelecemos seriamente a partir de uma constatação do mais corriqueiro: a da riqueza indiscutível da família davídica em geral, quer dizer, a importância dos bens que possuía, mais a importância dos diversos ganhos recebidos por seus membros. Sobre estes, remetemos ao leitor a nossa obra precedente e a seu capítulo intitulado "O dízimo messianista". (84) Sobre os bens imóveis desta família podemos tomar já em conta com toda certeza a casa familiar de Gamala, aquele ninho de águias penduradas por cima da borda oriental do mar da Galiléia; a moradia de Cafarnaum, citada em Mateus (4, 13) e em Marcos (1, 29) como propriedade de Simão e André, irmão de Jesús; (85) a de Séforis, destruída durante os anos 6 aos 4 antes de nossa era pelas legiões de Varo, legado de Síria, durante a primeira revolução de Judas da Gamala, marido de Maria e pai de Jesus; esta moradia desapareceu, evidentemente, no incêndio de tal cidade. Podemos acrescentar a de Betsaida, "a cidade de André e de Pedro" (João, 1, 44), já que, repitamo-lo, eram irmãos de Jesus, no sentido carnal de termo. (86)
Conhecemos também a passagem da História eclesiástica de Eusebio da Cesaréia, no qual o autor mostra aos "parentes carnais do Salvador, bem para vangloriar-se, ou simplesmente por dizê-lo..." (cf. Eusebio da Cesaréia, op. cit., I, VII, 11-14), que nos revela as verdadeiras origens da família herodiana. Pois bem, para conhecer a genealogia de uma família, para vangloriar-se, terá que ser familiar dela, mais ou menos próximo. E mais tarde abordaremos o problema do matrimônio de Herodes, o Grande, com uma "filha de David", parenta de Jesus, por ser meio-irmã de sua mãe Maria.
Observaremos, de passagem, que Tischendorf considera como autênticos os nomes dos pais de Maria (cf. Tischendorf, De evangeliorum apocryphum origine et usu). E, efetivamente, nas lendas judias, Maria chamam-na filha de Heli, aliás Jehohakim, que de fato é o mesmo nome (Heliakim). Assinalaremos, a este respeito, a concordância do Talmud de Babilônia (op. cit., Sanedrín: f° 67) com o Talmud de Jerusalém (op. cit., fº 77).
O Protoevangelio de Santiago nos diz o seguinte: "Havia um homem rico, rico em excesso, chamado Joaquim, que levava suas oferendas ao Templo em quantidade dupla, dizendo: 'O que sobre será para todo o povo' (depois dos sacerdotes)..." (Cf. Protoevangelio do Santiago, 1, 1). E Eustaquio, bispo de Antioquia e mártir († 360), contribui os mesmos dados, sem considerá-los como legendários, a não ser dando-os por certos. (Cf. Commentaire sur l'oeuvre des six jours, in Patrologie grecque, tomo XVIII, col. 772).
Sobre a filiação real e davídica de Maria, observemos de passagem que o mesmo Protoevangelio de Santiago nos mostra à faxineira da Ana, mãe de Maria, aconselhando a sua ama que rodeie a diadema real que possui, para afastar a tristeza causada por sua esterilidade (cf. Protoevangelio de Santiago, II, 2). Sua união com Joaquim, da mesma filiação davídica que ela, está testemunhada por outro documento antigo: "Quando ele (Joaquim) tinha vinte anos, tomou por esposa Ana, filha de Isacar, e de sua própria tribo, quer dizer, da raça de David..." (Cf. Pseudo-Mateus, I, 2).
Do mesmo modo, o abade Emile Amann, doutor em teologia, ao traduzir e comentar o Protoevangelio de Santiago consagrado à Maria, à suas origens e à sua infância, pode observar que, segundo o próprio texto: "Joaquim (o pai de Maria) é 'extremamente rico'; eis aí uma resposta direta às acusações judias sobre a pobreza de Maria..." (Cf. E. Amann, Protoevangelio de Santiago, P. 181, Imprimatur de 1 de fevereiro de 1910, Letouzey Edith., Paris, 1910). Encontramo-nos, pois, muito longe da família miserável que nos apresenta sem cessar para nos enternecer.
Conhecemos, com efeito, a acusação injuriosa de Toledoth Ieshuah (A geração de Jesus), que afirmava que este era o filho bastardo de Maria e de um mercenário romano chamado Pantero. Paralelamente, o Talmud nos contribui um eco disso: "Descobri em Jerusalém um manuscrito genealógico no qual está escrito que este (Jesus) é o filho bastardo de uma mulher adúltera..." (Cf. Rabbi Simão-Ben-Azzai, Talmud).
Estimamos que se trata aí de uma ignorância voluntária da verdadeira acusação inicial, porque é indubitável que semelhante delito por parte de Maria conduzisse-lhe sérias dificuldades, por crime de adultério. A Lei de Moisés implicava, com efeito, a lapidação para a mulher a que se reconhecia culpada de tal delito (cf. Levítico, XX, 10). Em troca, nenhum autor judeu pretendeu jamais que esta arriscasse nada neste campo. Pelo contrário, e como já se sublinhou, Jesus conta ao menos com quatro mulheres culpadas desse importante delito em Israel entre sua mais ilustre antepassada, (87) e sua indulgência para elas se estende inclusive às prostitutas, que entretanto são severamente rechaçadas pela Lei de Moisés e pelos profetas. Provavelmente ao que os talmudistas faziam alusão era a essa ascendência molesta, mas logo mal compreendida pela tradição oral.
Seja o que for, e ao escolher semelhante ascendência, o "filho de Deus" estaria muito mal inspirado se logo condenasse à mulher adúltera que um dia lhe apresentou para que a julgasse (João, VIII, 3 a 11). Mas voltemos para Maria, sua mãe. (88)
Segundo São João Damasceno, em sua Homilia sobre o Natal da Bem-aventurada Virgem Maria (Patrologia, XCVI, col. 664-667), Maria teria nascido em Séforis, na Galiléia, a alguns quilômetros de Nazaré atual (então inexistente), e muito perto de Presépio da Galiléia. Para embrulhar melhor o problema, os escribas anônimos que "arrumaram" os evangelhos antigos no século IV, tiveram a idéia de situar o nascimento de Jesus em Belém da Judéia, a uns dez quilômetros ao sul de Jerusalém, e não já na Galiléia, e sim na Judéia. E tudo isso a fim de que nascesse na cidade onde o próprio David tinha nascido. Mas, já que era descendente de David por linha de sangue, Jesus podia muito bem prescindir de tal mentira para continuar sendo-o, indiscutivelmente, do mesmo modo que jamais um Delfin da França precisou nascer em Paris, em l'Île de la Cité, berço dos Capetos, para ser logo rei legítimo. Porque entre Presépio da Galiléia e Belém da Judéia há, a vôo de pássaro, uns cento e dez quilômetros...
É evidente que semelhantes enganos foram premeditados. É muito provável que Maria, galiléia de nascimento, como precisa João Damasceno, permanecesse em sua província natal e entre sua família para iluminar a seu "primogênito" (Lucas, 2, 6-7), e sem dúvida também aos seguintes (Marcos, 6, 3). E o famoso censo de Quirino não serve para nada, como já demostramos, (89) e menos quando se tem em conta que Jesus não nasceu nessa época, a não ser uns vinte e três anos antes.
Observemos de passagem que em dezembro de 1969, o professor Harmut Stegemann, doutor em teologia protestante da universidade de Bonn, publicou uma tese segundo a qual Jesus não teria nascido nem em Belém da Judéia nem Nazaré da Galiléia, e sim em Cafarnaum, quer dizer, na Galiléia, à beira do lago de Genezaret, e ao extremo norte deste. Teria se falado de "Jesus de Nazaré" porque (no século IV) ignorava-se a raiz aramaica de tal nome. Este significaria, em realidade, mais ou menos: "Guardião da justiça de Deus". Observemos também que tal doutor protestante nos contribui aqui uma confirmação do papel tipicamente messiânico, no sentido zelote do termo, de Jesus da história.
A imprensa da Alemanha federal reproduziu numerosas passagens dessa tese, às vezes em primeira página, em especial a Kölnische Rundeschau, que pouco antes do Natal de 1969 consagrou um editorial a essa autêntica "bomba" lançada por um teólogo conhecido. Assim, o teólogo Stegeman considera que há motivos fundados para pensar que Jesus nasceu em Cafarnaum, onde se estabeleceram seus parentes. Por nossa parte, estamos de acordo com esse exegeta sobre o fato de que Jesus não nasceu, em modo algum, em Belém da Judéia. Mas sim que pôde ter nascido em Presépio da Galiléia, perto de Séforis, onde nasceu sua mãe, muito perto dessa Nazaré que se criaria no século VIII para dar satisfação aos peregrinos, depois de havê-la imaginado simplesmente no século IV.
Mas Presépio da Galiléia é uma localização perigosa para a verdade, quão mesmo Séforis, já que se acham a pouco menos de trinta e cinco quilômetros a vôo de pássaro da Gamala, a cidade refúgio dos zelotes, pendurada de seu esporão rochoso, como um falcão escrutinando a planície, ao outro lado do lago de Genezaret. É a famosa "montanha" que sai repetidamente nos evangelhos, montanha que se guardam bem de nos nomear... E Cafarnaum está a menos de quinze quilômetros, muito perto do feudo familiar de Judas da Gamala, aliás Judas, o Gaulanita, ou Judas da Galiléia (Atos, V, 37), o herói da revolução do Censo, o primeiro marido de Maria, o pai de seus cinco primeiros filhos e de suas duas filhas.
Por isso é provavelmente que o primeiro ato deste último, quando levantará o estandarte de sua primeira revolução, no ano 6 de nossa era, consistirá em apoderar-se de Séforis, do palácio de Herodes, de seu arsenal e de seu tesouro. E, por essa eleição, pode suspeitar existência de uma relação entre a primeira investida das unidades de zelotes que descendiam do ninho de águias da Gamala, e a localidade aonde nasceu Maria, esposa de Judas da Galiléia, seu chefe, e mãe de seus filhos. Segundo o Protoevangelio do Santiago, ela nasceria no ano 14 antes de nossa era, de modo que quando teve lugar a crucificação de Jesus contaria quarenta e nove anos, e vinte e seis quando este foi submetido, à idade de doze anos, ao exame de sua maioria de idade civil e religiosa ante os doutores da Lei. Então ele se convertia, como todos os pequenos judeus do mundo, em um Ben-ha-torah, um "filho da Lei". (90) Esta cronologia daria como resultado que Maria deu a luz à idade de quatorze anos.
Mas estes dados são falsos. De toda nossa investigação, dos desacoplados e das severas confrontações cronológicas às quais nos entregamos há uns dez anos, resulta que Jesus nasceu por volta do ano 16 ou 17 antes de nossa era, (91) e se Maria deu a luz quando contava quinze anos (as meninas, em Israel, eram núbiles a partir dos doze anos e meio), ela deveria nascer ao redor do ano 32 antes de dita era. Por outra parte, o mesmo João Damasceno nos dá em seu De fide orthodoxia (IV, Patrologia, XCIV, col. 21.157) a genealogia de Maria. Como é natural, só nos fala de José, e não de Judas da Gamala. Vejamo-la reproduzida a seguir:
David
teve de Betsabé, esposa de Uria Estirpe de Salomão Estirpe de Natán
Mathan Mathat Pantheros
Jacob...(irmãos carnais) ... Heli Bar-Pantheros
Joaquim
José (quem se casou com) Maria
No concernente à vida de Maria depois da crucificação de Jesus, sua morte e a época desta, já tratamos estes temas no estudo do destino de João (veja o capítulo 14), portanto não voltaremos sobre isso.
Por outra parte, no primeiro volume já chamamos a atenção do leitor sobre a inexistência de uma mulher apresentada sob o nome de Maria de Magdala. Com efeito, Tertuliano, que investiga à própria Magdala (aliás Tariquea segundo alguns, e que nós consideramos errôneo), não pôde recolher ali informação alguma; Maria Madalena era totalmente desconhecida naquele lugar. Esta investigação, efetuada entre os ambientes cristãos, deveria recolher, entretanto, uma tradição, por mínima que fosse, se esta mulher tivesse existido. Mas não houve nada disso. Tertuliano nasceu por volta dos anos 150/160 de nossa era, e morreu por volta de 240. Sua viagem produziu-se por volta do ano 200. E logo nada mais... Pois bem, os Atos dos Apóstolos, as Epístolas de Paulo, as de Pedro, de Santiago, de João e de Judas, a História eclesiástica de Eusebio da Cesaréia, todos estes textos, que se afirmam que são sérios, todos eles ignoram também a existência de tal mulher.
O mesmo acontece com a maioria dos apócrifos neotestamentários. O que é pior ainda: alguns deles identificam Maria, mãe de Jesus, com aquela que os evangelhos canônicos denominam como Maria de Magdala, quando, na ressurreição de Jesus, este pede a sua primeira interlocutora que não lhe toque fisicamente, por não ter remontado ainda até seu Pai. Comparemos simplesmente esses textos, e o leitor ficará informado. Vejamos, primeiro, o evangelho de João: "No primeiro dia da semana, Maria Madalena veio muito de madrugada, quando ainda era de noite, ao sepulcro, e viu retirada a pedra (...) Maria ficou junto ao monumento, do lado de fora, chorando. Enquanto chorava, inclinou-se para o monumento, e viu dois anjos vestidos de branco, sentados um à cabeceira e outro aos pés de onde estivera o corpo de Jesus. Disseram-lhe: "por que choras, mulher?" Ela lhes disse: "Porque levaram a meu Senhor e não sei onde o puseram". Dizendo isto, voltou-se para atrás e viu Jesus que estava ali, mas não reconheceu que fosse Jesus. "Disse-lhe Jesus: "Mulher, por que choras? A quem buscas?" Ela, acreditando que era o hortelão, disse-lhe: "Senhor, se tu o levastes, dize-me onde o puseste, e eu o levarei". Disse-lhe Jesus: "Maria!". Ela, voltando-se, disse-lhe em hebreu: "Rabboni!", que quer dizer Mestre). Jesus lhe disse: "Não me toques, porque ainda não subi ao Pai"... (João, 20, 1 a 17).
Observar-se-á que a hipotética Maria de Magdala fora à horta de José de Arimatéia com a intenção de retirar dele o cadáver de Jesus, e levar-lhe. E isto, extraído do mais célebre dos evangelhos canônicos, aquele no qual se apóiam todos os mistagogos das seitas cristãs heterodoxas mais descabeladas quão mesmo os fiéis das igrejas ortodoxas até não poder mais, isto confirma o que já demonstramos no primeiro volume deste estudo, (92) ou seja, que os fiéis de Jesus contavam levando seu cadáver para retirar a seu destino final o que levava de lhe denigrirem a primeira inumação. Se não lhe podia deixar na tumba oferecida por José de Arimatéia, era porque esta, em realidade, não era outra coisa que a fossa infamante (fossa infâmia), em que se tornava aos corpos dos condenados a morte depois de sua execução.
Segunda conclusão, José de Arimatéia era, efetivamente, o Ioseph-har-ha-mettim, o "José da fossa dos mortos" que já desvelamos em uma obra precedente, e não um "conselheiro distinto" como pretende Marcos (15, 43). (93)
Mas voltemos para a misteriosa Maria de Magdala: Vejamos agora o Evangelho dos Doze Apóstolos, que o grande Orígenes considerava como um dos mais antigos evangelhos conhecidos, anterior inclusive ao Lucas atual: "As mães deste país viram a morte de seus filhos e vão à tumba para ver o corpo daqueles aos que choram... Ela abriu os olhos, porque os tinha baixados, para não olhar ao chão por causa dos escândalos. Disse com alegria: 'Mestre! Meu Senhor e meu Deus! meu filho! ressuscitaste, ressuscitaste de verdade...' E queria agarrá-lo e beijá-lo na boca. Mas ele a impediu e lhe rogou, dizendo: 'Mãe, não me toque. Espera um pouco ... Não é possível que nada carnal me toque até que eu vá ao céu. Entretanto, este corpo é aquele com o que passei nove meses em seu seio... Sabe estas coisas, OH minha mãe, sabe que sou eu, a quem você alimentou. Não duvide, mãe, de que eu sou seu filho. Sou eu, quem a deixou em mãos de João quando eu estava pendurando da cruz. Agora, minha mãe, apresse em advertir a meus irmãos e dizer-lhe (Cf. Evangelho dos Doze Apóstolos, 14º fragmento).
Pois bem, o evangelho de João, no versículo 17 do capítulo XX, menciona a mesma ordem de Jesus a Maria de Magdala, de que fosse advertir a seus irmãos. Todo o desenvolvimento é, portanto, idêntico nos dois evangelhos. Só que, enquanto no dos Doze Apóstolos a interlocutora de Jesus é sua mãe Maria, nos de João, de Lucas, de Marcos e de Mateus, trata-se de Maria Madalena.
Vejamos agora o Evangelho de Bartolomeu. Seguimo-nos encontrando ante o sepulcro, a manhã da ressurreição: "E Jesus gritou na língua divina: "Marikha! Marima! Thiath!. O que significa: 'Maria! Mãe do Filho de Deus!' Maria conhecia o significado destas palavras. Virou-se e disse: 'Mestre! Filho de Deus Todo-poderoso!... Meu Senhor e meu filho!...' E El Salvador lhe disse: 'Saúde a ti, que levaste a vida do mundo inteiro! Saúde, minha mãe, minha arca Santa! Saúde a ti, minha mãe, minha cidade e meu lugar de repouso!... Vá junto a meus irmãos para lhes dizer que ressuscitei que entre os mortos'..." (Cf. Evangelho de Bartolomeu. 2º fragmento).
Vejamos ainda o Evangelho de Gamaliel, que ainda não foi publicado com divisão em capítulos e versículos. Foi descoberto no ano 1956, em um convento de Etiópia, pelo R.P. Van den Oudenrijn, da universidade de Friburgo, com outros quatro manuscritos. Forma parte do que se chama os apócrifos etíopes, e, como todos os outros já conhecidos, pertenceu ao velho fundo primitivo dos cristãos coptos do Egito e da Abisinia, junto com o Evangelho dos Doze Apóstolos e o de Bartolomeu. E este Evangelho de Gamaliel nos confirmará também o valor de nosso descobrimento.
Muito cedo, Maria, mãe de Jesus, foi junto à tumba de seu filho. Coisa que resulta ainda muito mais plausível, porque é mais humano que o fato de nos apresentar a uma mulher de costumes duvidosos, que não pertencia à família, como a primeira em apresentar-se com o defunto, deixando à mãe alheia a este piedoso dever. E Maria, mãe de Jesus, segundo este evangelho não encontrou o corpo de seu filho, mas sim discutiu com um desconhecido, que ela supôs que era o hortelão, igual nos textos canônicos já citados.
"Isto senhor é o que entristece, porque nessa tumba não encontrei o corpo de meu filho bem-amado, para chorar sobre ele, o que teria consolado minha tristeza... E agora, se forem o guardião desta horta, vos conjuro a que me informem"... E Jesus lhe disse: "Maria... Já derramaste suficientes lágrimas até agora... Olhe-me no rosto, minha mãe, para te convencer de que sou seu filho..." E ela disse então: "Então ressuscitaste, Oh, meu senhor e meu filho...". (Cf. Evangelho de Gamaliel, extratos).
É perfeitamente evidente, para qualquer que o veja com boa fé, que a cena relatada por esses três evangelhos antigos é absolutamente idêntica à descrita em João (20, 1-18), mas lá onde este último põe em cena a uma tal Maria de Magdala, desconhecida pelos textos neotestamentários posteriores (Atos dos Apóstolos, Epístolas diversas, História eclesiástica, etc.), os antiqüíssimos manuscritos coptos citados nos falam por sua vez, de Maria, mãe de Jesus...
E vamos ver agora um argumento que reforçará o que demos na obra precedente (94) sobre a identidade absoluta entre a Maria, mãe de Jesus, e Maria de Magdala.
Tomemos para isso o importante estudo que o abade Loisy, ilustre exegeta e probo historiador, consagrou precisamente a esse episódio de Maria na tumba, na manhã da ressurreição, em seu enorme trabalho intitulado Le quatrième évangile: "Segundo São Efrén (Exposé de la concordance des évangiles, Moesinger, 268), as palavras: 'Não me toque...', etc., Jesus dirigiu-as à sua mãe, e parece seguro que o Diatessaron de Ticiano contava da mãe de Jesus o que nosso Evangelho conta de Maria de Magdala. O mesmo acontece com um tratado da Antioquia do século IV, falsamente atribuído ao Justino Mártir (Questions et réponses de l'orthodoxie, Q. 48, cf. Harnack, no Theol.-Literatur-Zeitung, 1899, P. 176), que não depende de São Efrén, mas sim poderia depender também de Diatessaron. É lícito, portanto, perguntar se Taciano, em lugar de interpretar nosso evangelho (de João) por uma tradição apócrifa, não conheceria, pelo contrário, por um ou outro caminho, o dado primitivo, e se o evangelista que conduziu à mãe de Jesus ao pé da cruz não lhe teria dado um papel capital no relato da ressurreição, e logo esse papel seria atenuado em uma redação posterior, e transladado a Maria de Magdala para concordar com a tradição sinótica... Efrén diz que Maria duvidara da ressurreição, tal como lhe havia predito Simão (cf. Lucas, 2, 35). (Sobre essa "dúvida", veja-se nosso livro: Évangiles synoptiques, tomo I, P. 359)". (Cf. Alfred Loisy, Le quatrième évangile, Paris, 1921, E. Nourry, édit., P. 504).
Já lemos São Efrén: "Maria duvidava da ressurreição..." Efrén é o pai da Igreja siríaca, assistiu ao concílio de Nicéia, foi amigo de São Basilio e o pai da Escola mística da Edesa. Nasceu por volta do ano 306, e morreu em 373. Suas conclusões exegéticas fizeram chiar os dentes a alguns mistagogos de pequenos cenáculos heterodoxos. Pior para eles; este tipo de problemas ultrapassa seu entendimento.
Porque se Maria, efetivamente (segundo a profecia do velho Simão quando teve lugar a apresentação de Jesus ao templo pouco depois de seu nascimento [Lucas, 2, 25 e 34-35]: "e uma espada atravessará sua alma...", deveria sofrer a pena mais terrível que possa sentir uma mãe, é que então tinha que enfrentar-se com o mais horrível desespero ante a morte de seu filho, e isso implicava que não acreditasse em sua futura ressurreição nem na deificação que lhe aconteceria, e portanto, que jamais dera fé a suas palavras. O que aparece confirmado por Mateus (12, 46-50), Marcos (3, 21), João (7, 2-4). Realmente, esquecera ao arcanjo Gabriel, se é que alguma vez houve tal arcanjo.
O certo é que toda a documentação contribuída pelo abade Loisy e citada in extenso antes, reforça nossa tese, ou seja, que na tradição primitiva era a Maria, mãe de Jesus, a quem se dirigiu Jesus ressuscitado, e não a Maria de Magdala. E esta ignorância geral dos textos neotestamentários ulteriores, como a dos Padres da Igreja já citados, prova-nos que jamais houve uma mulher com tal nome no séquito de Jesus, ao menos não uma mulher distinta à sua mãe. Maria, mãe de Jesus, e Maria de Magdala são uma só e mesma pessoa.
Por outro lado, uma tradição eclesiástica pretende que esta Maria de Magdala morreu em Éfeso, onde foi inumada. Em finais do século IX, o imperador Leão VI o Sábio devolveu seus restos à Constantinopla. É fácil compreender que se tratava de Maria, mãe de Jesus, morta e inumada em Éfeso... As lendas provenzais do desembarque das três "Marias" em Saintes-Maries-de-la-Mer e dos trinta e três anos de penitência lacrimosa de Maria de Magdala no topo do pico de Sainte-Baume, (95) onde morreu, foram elaboradas no século XI para esconder a verdade. Logo voltaremos para este tema das diversas tumbas de Maria.
E agora voltamos de novo, através de outra série de argumentos, às conclusões de nossa obra precedente, quer dizer, que Maria, esposa de Judas da Gamala, mãe de Jesus e de suas irmãs e irmãos, é a mesma Maria Madalena, e portanto que jamais existiu uma cortesã de alta linhagem que levasse tal nome.
Quanto à explicação admitida pelo abade Loisy, ou seja, que se transferiu um personagem real a outro puramente imaginário, simplesmente para que o evangelho de João concordasse com os de Mateus, Marcos e Lucas, não acreditam que seja válida. Porque então ficaria por justificar a criação inicial de uma Maria de Magdala. Esta explicação é muito singela, já a demos em nossa primeira obra. (96) Só faltaria:
a) suprimir toda alusão que permitisse adivinhar que o Apocalipse era em realidade muito anterior aos evangelhos, e que a história dos "sete trovões" era uma perigosa chave do problema;
b) suprimir a prova de que esses "sete trovões" eram sete irmãos, um dos quais era Jesus, o primogênito, e que todos eram filhos de Maria, quão mesmo as jovens às quais os evangelhos canônicos chamam "suas irmãs" (cf. Marcos, 6, 3). Fazendo isto podia ao fim afirmar a virgindade perpétua de Maria;
c) fazer acreditar que a mulher que no sepulcro, ante aquele a quem ela toma pelo hortelão, desespera-se pela morte de Jesus, e por conseguinte não crê absolutamente na ressurreição prometida, não podia ser Maria, sua mãe. E por parte de uma mulher estranha à família, isso resultava mais plausível.
Claro que ficam outros pontos curiosos nesta impostura dos escribas do século IV. Por exemplo, magdala pode significar também penteadora, perfumeira, em aramaico. Maria, em um momento dado de sua vida, depois da morte de seu marido Judas da Gamala, bem pôde ver-se na obrigação de fazer subsistir a seus filhos, e ficar a exercer esta profissão junto a algumas mulheres da aristocracia Iduméia.
Com efeito, segundo o Talmud de Babilônia (cf. Shabbath, 104 B, e Hagigag, 4 b), Maria teria exercido a profissão de penteadora, mas segundo o mesmo Talmud de Babilônia (Sanedrín 106 b), ao descender dos reis de Israel, teria se comprometido com um héresch, palavra hebréia que significa bem um carpinteiro, bem um mago. (97)
Por outra parte, a aldeia de tal nome evoca curiosamente a cidade zelote, já que, com uma só letra de diferença, Magdala é o anagrama da Gamala, só sobra a letra daleth. E é sabida a importância das transposições de letras na cabala. Não se atreveriam a falar de Maria de Magdala e acrescentariam a daleth (d) para velar melhor esse nome que convinha não voltar a pronunciar jamais: Maria de Gamala, porque senão se estabeleceria imediatamente uma relação evidente com Judas da Gamala.
Temos um exemplo dessas transposições de letras na toponimia da França, e é o da célebre gruta de Lourdes. Na época de Maria Bernarda Soubirous ainda se chamava a essa gruta Massabielle. Pois bem, esse nome não é mais que a transposição anagramática de Beelissama, espécie de Astarté importada pelos navegantes fenícios, e cujo nome não era outra coisa que a deformação afeminada de Bell-Samîn, o "Senhor dos Céus". E na gruta de Massabielle, no começo de nossa era, celebrava-se o culto a essa mesma deusa Beelissama. Durante muito tempo, na gruta onde Bernarda acreditou ver a Virgem Maria, quando contava uns quinze anos, houve um bloco de mármore desconhecido nos Pirineus, e que era um resíduo dessas liturgias pagãs. Esse bloco desapareceu rapidamente. Possivelmente foi o condensador daquele que se desprendeu, em 11 de fevereiro de 1858, forma-pensamento que impressionou o psiquismo da menina. Um altar religioso sempre está mais ou menos carregado magneticamente. (98)
Voltando para a Maria, mãe de Jesus, constataremos que os manuscritos mais antigos do evangelho de Mateus nos precisam que "Jacob engendrou ao José, o marido de Maria, e José engendrou ao Jesus" (cf. Mateus, 1, 16). Fato confirmado por Saulo-Paulo: "... a respeito de seu filho, nascido da semente de David segundo a carne". (cf. Paulo, Epístola aos Romanos, 1, 3). É evidente que esta semente não vem de Maria, mas sim de José, afirmação que prova que naquela época dava ao Jesus ainda um pai perfeitamente carnal, o que excluía a virgindade de sua mãe. Se duvidássemos disso, não teríamos mais que reler a Vulgata latina de São Jerônimo, versão oficial da Igreja católica, e leríamos nela que: "...de Filio suo, qui factur est ei ex-semine David secundum carnem..." (cf. Epistula ad Romanos: I, 3). Os originais gregos mais antigos utilizam o termo spermatos, que significa o esperma masculino, quão mesmo o termo semine utilizado por Jerônimo.
Ocumenius (cf. Patrologia grega, CXVIII, col. 217) e Teofilacto, bispo da Acrida na Bulgária antes de 1078 (cf. Patrología grega, CXXII, col 293), dizem-nos: "Santiago, a quem o Senhor designou com antecedência bispo de Jerusalém, era o filho de José o carpinteiro, o pai segundo a carne, do N. S. Jesus Cristo".
Assim, até finais do século XI, nas igrejas do Oriente não se ignorava que Jesus tivera um pai perfeitamente carnal, e que o Espírito Santo não tinha tido nada a ver nesta geração.
Voltemos, pois, a genealogia de Maria, dada por João Damasceno (supra, p. 138). Vemos nela que seu pai chamava-se Joaquim, e seu avô X...-bar-Pantheros. Trata-se, evidentemente, do mesmo Panthero da Toledoth Ieshuah que já vimos. E é avô de Maria, o pseudo-amante mercenário de Roma.
E se Maria nasceu no ano 32 antes de nossa era, se seu pai a engendrou aos vinte anos, se ele mesmo foi engendrado pelo seu quando este contava também vinte anos (a idade limite do matrimônio dos jovens no Israel antigo), isso nos dá a data descoberta por Daniel-Rops em Jesus em seu tempo (P. 68), porque 32 + 20 + 20 = 72, data muito próxima a de 78 dada por tal autor (evidentemente antes de nossa era).
E portanto, teria morrido no curso das lutas civis que rasgaram durante seis anos à nação judia sob o reinado sangrento de Alexandre Janeo. Este rei, que pertencia à dinastia asmonea (os macabeus, 99) contemplou sadicamente, de terraço de seu palácio em Jerusalém, e rodeado de suas concubinas, a crucificação de oitocentos de seus adversários, enquanto se procedia, ante seus olhos, a degolar suas esposas e filhos (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XIII, XXII). O avô de Maria devia participar dessas lutas fratricidas, porque, ao helenizar seu nome, segundo o costume judeu da época, fez-se de Panthero, Pantherôs, em grego pantera. E este nome não podia designar a um homem particularmente pacífico.
Pelo que antecede podemos admitir que a família de Maria pertencia também ao clã dos kanaim, ou zelotes, o que justifica que lhe escolhessem um marido dentro do mesmo meio, ou seja, Judas-bar-Ezequías, futuro Judas da Galiléia.
No que concerne à virgindade perpétua de Maria, "antes durante e depois" dessa união tão humana com o herói judeu que devia ilustrar seu nome com grande rapidez, acreditam que fizemos justiça a esta inverossimilhança em nossa primeira obra. (100) E nem sequer o moderno tema da partenogênesis, mediante o qual uma fêmea se fecunda e dá a luz sem a colaboração de um macho, afirmação muito discutida no que se refere a sua possibilidade no seio da humanidade ou dos animais superiores, este tema não poderia sustentar-se como explicação plausível para essa concepção milagrosa por parte da Maria dos evangelhos. Porque se o fato pode produzir-se em teoria no seio da humanidade, a mulher não poderia parir jamais outra coisa que uma criatura de seu próprio sexo, quer dizer, uma filha. E jamais se pôs em dúvida o sexo masculino de Jesus, quanto mais que a Igreja católica possui em seus templos, religiosamente conservados pelo clero e os fiéis, dezenove prepúcios do menino divino, todos eles o qual mais autêntico, o que constitui uma prova definitiva de tal masculinidade.
Não obstante, aos argumentos apresentados na primeira obra, (101) convém acrescentar a confissão implícita dos teólogos. Nos Diaconales de monsenhor Bouvier, bispo de Le Mans, membro da congregação do Indice, inseridos em Dissertatio in sextum decalogi praeceptum et Supplementum ad Tractatum de Matrimonio (Le Mans, 1827, exemplar da Bibloteca real), descobrimos este estudo de um caso particular:
"Pergunta-se: 1º) Se um homem e uma mulher, bem instruídos de sua comum impotência ou de um deles, podem contrair matrimônio com a intenção de prestarem-se mútuo socorro e de permanecer sempre na castidade.
"R. Sánchez (I; 7, disp. 97, nº 13) e muitos outros teólogos que cita, afirmam que o matrimônio é lícito neste caso, e apóiam sua opinião nas provas seguintes: os que contraíram matrimônio, embora afetados por uma mesma enfermidade, podem viver juntos como irmão e irmã, evitando o perigo de cair no pecado; portanto, se pensarem razoavelmente que não terá que temer tal perigo, podem casar-se com vistas a ajudarem-se mutuamente, apesar do conhecimento que têm de sua impotência. Assim foi como a bem-aventurada Virgem e São José contraíram verdadeiro matrimônio, com a intenção formal de conservarem-se castos e de não fazer uso do coito.
"Mas a opinião mais geral de outros teólogos é que semelhante matrimônio não é lícito, já que, conforme dizem, um matrimônio assim seria nulo se não houvesse esperança de consumá-lo. Seria uma verdadeira impostura, uma profanação das cerimônias religiosas, e por conseguinte um sacrilégio, o fato de contrair voluntariamente um matrimônio nulo; jamais devem autorizar-se semelhantes uniões. Quanto ao exemplo contribuído mais acima, negam que seja aplicável nesse caso, já que o matrimônio da bem-aventurada Maria e de São José era válido". (Op. cit., Supplementum, 1º Quest.).
Era válido... Do que antecede, umas quantas conclusões se impõem por si mesmas:
a) o marido verdadeiro de Maria não era impotente, e ela não era estéril, já que seu matrimônio seria nulo, o que a maioria dos doutores católicos negam, como acabamos que ver;
b) não se trataria, pois, do tal José, já que no momento de sua união com Maria contaria uns oitenta e um anos, (102) se se der crédito aos diversos Evangelhos da Infância. Pelo visto morreria por volta dos cento e onze anos, e uns trinta anos antes é duvidoso que se achou ainda em estado de procriar. Além disso, o matrimônio de um homem em estado de impotência sexual estava proibido pela Lei judia, e o desgraçado marido não tinha então mais que duas semanas para lhe devolver a liberdade a sua esposa; (103)
c) se os teólogos cristãos afirmarem em sua grande maioria (op. cit., dixit) que o matrimônio de Maria era válido, e o marido não podia ser José, essa união se consumou, pois, com o Judas da Galiléia, aliás Judas da Gamala, de onde o nascimento de Jesus e de seus irmãos e irmãs menores.
Ficam ainda um conjunto de documentos ainda mais provadores a este respeito, e não os silenciaremos, tendo em conta a autoridade de seus autores.
Sabemos por Eusebio da Cesaréia que Orígenes, o grande didáscalo alexandrino, a quem o Papa Leão XIII qualificava de "o maior dos Padres da Igreja do Oriente", adquirira em propriedade as Escrituras conservadas pelos judeus e redigidas em caracteres hebreus. Para as ler, aprendeu tal língua. Logo "fez-se à busca das diversas edições daqueles que, além da versão chamada dos Setenta, traduziram as sagradas Escrituras; e, além das traduções correntes e em uso, as de Aquila, de Simmaco e de Theodotion". (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, VI, XVI, I, 2).
Dessas quatro versões do Antigo Testamento conformou seus célebres Tetraples, texto sinótico onde os versículos de cada versão estão dispostos frente a frente em quatro colunas, com o fim de estabelecer comparações.
A versão chamada dos Setenta (setenta tradutores "inspirados" dão uma versão idêntica do texto, mas a história de tal "inspiração" está fundada na carta de Aristeo, apócrifo do século II) foi realizada a pedido de Ptolomeo, filho de Lagus, no século III antes de nossa era, para a célebre Biblioteca de Alexandria. Nesse texto, a célebre passagem de Isaías (7, 14) aparece traduzido assim: "Por isso o Senhor lhes dará ele mesmo um prodígio: uma virgem conceberá, e dará a luz a um filho que será chamado Emmanuel".
Pois bem, esta é a única versão dos Setenta que utiliza a palavra grega parthenos (virgem). As outras versões utilizam o termo neanis, quer dizer, jovem. Quem foram seus autores? Simmaco, Theodotion e Aquila.
Simmaco era ebionita (aliás nazareno). Tinha legado suas obras a uma tal Juliana, que as deu diretamente ao Orígenes (cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, VI, XVII). Portanto era quase contemporâneo de Orígenes, e vivia, pois, no século II, tenhamo-lo em conta.
Ao Theodotion de Éfeso não lhe conhecemos apenas, mas devia ser um personagem importante do cristianismo, já que o grande Orígenes conserva sua tradução de Isaías.
Este, original de Sinope, a cidade onde nasceu Marción, viveu também no século II de nossa era. Primeiro foi discípulo de Taciano, fez-se marcionita e logo ebionita em Éfeso. A Igreja ortodoxa não rechaçou sua tradução da Bíblia, e sua versão de Daniel ainda em nossos dias continua utilizada pelas igrejas do Oriente.
Fica Aquila de Ponto. Arquiteto originário também de Sinope, parente do imperador Adriano, recebeu deste o encargo de reconstruir Jerusalém por volta dos anos 130-135. Primeiro sentiu-se seduzido pela religião judia, mas a seguir converteu-se ao cristianismo, cuja comunidade estava autorizada a residir nessa cidade, proibida aos judeus. Logo voltou para judaísmo, e por volta do ano 138 de nossa era redigiu uma versão da Bíblia que leva seu nome e que durante muito tempo preferiu-se à dos Setenta.
Assim, no século II, notemos bem, estamos em presença de quatro textos gregos da mesma passagem de Isaías, e os quatro se apoiavam em um texto hebreu inicial. A lógica nos impõe, portanto, recorrer simplesmente a este último. Tomemos por conseguinte a Bíblia do rabinato francês, em Isaías, 7, 14, e vejamos que termo hebreu utilizou o profeta. O texto francês da versão masorética está redigido assim: "Ah, certo! O Senhor lhes dá um sinal de si mesmo. Eis aí que a moça está grávida, e dará a luz a um filho, ao que chamará Immanuël". (Isaías, 7, 14).
O hebreu não permite distinguir quem tem razão, dentre a versão do rabinato francês (moça) ou da de Theodotion de Éfeso, de Aquila do Ponto, e de Simmaco (jovem). Mas há outros argumentos, estes irrefutáveis, que não permitem admitir nem por um instante a tradução dos Setenta: virgem. Porque moça ou jovem, no espírito do profeta Isaías, é necessário e indevidamente o mesmo, já que segundo a Lei judia a jovem não podia conceber fora do matrimônio, sob pena de morte, e portanto converter-se em moça.
Se se tratava de uma virgem a quem nenhum homem tinha fecundado, é que foi o Eterno, através de seu ruah elohim (espírito santo), o progenitor do menino por nascer. Tese dogmaticamente afirmada pela Igreja católica, as igrejas do Oriente e o protestantismo.
Agora bem, para um profeta do século VIII antes de nossa era (Isaías viveu sob o reinado de Ezequías), imaginar que Yavé se rebaixasse e se degradasse, através de seu ruah, violando as leis naturais que ele estabelecera, e atuasse sobre o sistema reprodutor de uma adamita, contrariamente a suas prescrições do Sinai, era algo pura e simplesmente impensável... (104)
Com efeito, no Deuteronômio lemos o seguinte: "Se não se encontraram os sinais da virgindade da jovem (no matrimônio), levarão a jovem à porta da casa de seu pai, e as pessoas da cidade a lapidarão até que mora" (Deuteronômio, 22, 20-21).
Dito de outro modo, Yavé ditou uma lei no Sinai, segundo a qual quão virgem fora depositária de sua oculta atividade fecundadora deveria ser lapidada até a morte, assim que se constatasse que levava o futuro Emmanuel... A isso chama-se tentar ao diabo!
Por outra parte, Yavé administra a si mesmo uma severa sanção, porque na Gênese se lê isto: "Quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a superfície da terra e nasceram filhas, então os filhos de Deus (os anjos) viram que as filhas dos homens eram agradáveis e tomaram por esposas quantas preferiram..." (Gênese, 6,. 1-2).
Desse incubado coletivo, o célebre livro de Enoch nos proporciona todos os detalhes: esta obra, muito antiga, aparece já citada por dois fragmentos recolhidos no século I antes de nossa era por Alexandre Polyhistor, e conservados por Eusebio da Cesaréia (cf. Princípios evangélicos, IX, XVII, 8). Além disso, o Livro dos jubileus, composto pouco depois do ano 135 antes de nossa era, cita-o sob o título de Livro da queda dos anjos.
"E o Senhor disse ao Gabriel: 'Vá a esses bastardos e a esses réprobos, e aos filhos das cortesãs, e os faz desaparecer, a esses filhos dos Veladores do Céu'..." (Op. cit., 10, 9).
"E o Senhor disse ao Mikael: 'Vê, encadeia Semyaza e a seus companheiros, que se uniram às mulheres a fim de manchar-se com elas em toda sua impureza. E quando todos seus filhos estejam degolados, e quando eles mesmos virem o fim de seus bem-amados, encadeia-os para setenta gerações sob as colinas da terra, até o dia que se consome o Julgamento eterno'..." (Op. cit., 10, II).
"Logo Mikael, Gabriel, Rafael e Phanuel se apoderarão deles nesse grande dia, e os precipitarão à fogueira ardente, a fim de que o Senhor de todos os Espíritos os castigue por sua iniqüidade..." (Op. cit., 54, 6).
Esse texto é, portanto, a condenação formal de toda fecundação de uma mulher por uma criatura espiritual. Partindo desse princípio, a Igreja católica afirmou a possibilidade dos demônios de fecundar a uma mulher (incubat), ou de acoplar-se de noite com um homem (succubat). (105)
Não inventamos nada. Tomás de Aquino estudou esses fatos com detalhe em sua Suma teológica, esses princípios são de fé, porque também aí "Roma falou", mas como, para um católico de estrita observância, não oferece discussão possível.
Vejamos o texto oficial de Tomás de Aquino: "Terá que dizer, com São Agustín, que muitos afirmam saber por sua própria experiência, ou pelo que contam outros, que os Faunos e os Silvanos, chamados íncubos pelo vulgo, freqüentemente foram maus para com as mulheres, e obtiveram delas gozos sexuais; portanto, seria imprudente negá-lo. Agora bem, se do coito demoníaco houver algum que nasça, não é pelo esperma dos demônios nem pelo corpo que estes revestem, mas sim pelo esperma do homem, que serve de súcubo ao demônio que desempenhou logo o papel de íncubo com uma mulher..." (106)
Tira-se daqui e fica de lá... O célebre teólogo não nos deu o motivo dessas copulações diabólicas nem o interesse que o diabo podia ter nelas. Acrescentemos que todos os Padres da Igreja, em sua cândida ingenuidade, acreditavam na existência de glifos, de dragões, etc. São Jerônimo nos afirma que "Toda Alexandria pôde ver um sátiro vivo...". O mesmo o contemplou! E uma manada de centauros, ao encontrar Jesus no deserto, renderam-lhe comemoração (cf. Vieu de Paul l'ermite, VII, VIII). São Agustín nos diz: "Eu era já bispo de Hipona, quando fui à Etiópia com alguns servidores de Cristo para pregar ali o evangelho. Vimos muitos homens e mulheres sem cabeça, com dois grandes olhos no peito..." (cf. São Agustín, Sermões, XX-XIII). Não nos burlemos deles; a televisão francesa, no curso de um debate, apresentou a um catedrático do Instituto des Hautes Etudes, que afirmou sua crença no valor dos pactos selados com Satanás, embora estes não apareceram "a não ser na época em que tinha lugar os contratos em sua boa e devida forma...". O diabo mantém-se comum na atualidade, ele não é um espírito retrógrado!
Quão mesmo o Livro de Enoch, o Zohar Hadash (seção Yitro) precisa-nos que Samael, o anjo tentador, e seu par feminino Lilith, corromperam o primeiro casal humano, Samael com Eva, e Lilith com Adão. O Sepher Ammudé-Schiba nos conta a mesma lenda, mas Lilith chama-se Heva, e Samael converte-se em Leviathan. Outro texto, o Sepehr Emmeck-Ameleh nos transmite o mesmo tema. Como se vê, a sexualidade "de grupo" não é nada novo.
Então, tendo em conta essa tradição religiosa que considera com horror toda copulação psico-pneumática entre uma criatura humana e uma criatura espiritual, como supor nem por um instante que o profeta Isaías pudesse imaginar a fecundação de uma mulher, embora virgem, pelo Eterno, o Deus inacessível de Israel? E mais quanto que o "Messias" dos cristãos não se chamou Emmanuel, a não ser só Jesus, e que não viveu jamais em um tempo em que Israel tivesse que temer uma dupla ocupação, "procedente do Egito e de Assíria" (op. cit., 7, 18-20), a não ser uma única ocupação, a de Roma, quer dizer, do outro lado dos mares. A profecia não coincide com os fatos históricos e sua época, e o Messias anunciado não se chama Jesus.
Voltemos para Maria, mãe de Jesus. A primeira esposa do pseudo-José teria chamado Salomé, teria sido a filha de Aggeo, irmão de Zacarias, e portanto prima irmã de João, o Batista, conforme nos diz Nicéforo, citando ao Hipólito de Porto. Ou também teria chamado Escha, traduzido às vezes por Estha ou por Esther, segundo outras tradições. Tampouco aqui os fabricantes de lendas puderam ficar de acordo, tendo em conta as dificuldades da época em matéria de relações epistolares.
Por outra parte, um certo número de observações complementares contribuem com provas mais contundentes neste terreno. E é indubitável que o que nossos teólogos modernos constróem sobre a "divinização" da mãe de Jesus deixaria absolutamente estupefatos aos discípulos de seu filho.
Em primeiro lugar, Jesus despreza a sua mãe. Julgue-se:
1. "Mulher, o que há em comum entre eu e você?..." (João, 2, 4). Observar-se-á que se situa, de forma bastante descortês, antes dela na frase.
2. "Alguém lhe disse então: 'Sua mãe e seus irmãos estão fora e desejam te falar'. Ele, respondendo, disse ao que lhe falava: 'Quem é minha mãe e os quem são meus irmãos?...' E estendendo sua mão sobre seus discípulos, disse: 'Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Porque quem fez a vontade de meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, e minha irmã, e minha mãe'..." (Mateus, 12, 47-50).
Essa passagem, muito precisa, demonstra-nos perfeitamente que no caso de seus irmãos, não se trata de discípulos, porque estes acreditariam nele. (107)
Agora bem, segundo o dogma clássico, Jesus é uma das três "pessoas" da Trindade, em qualidade de Filho; portanto, participou "antes do tempo" (Concílios de Éfeso, da Calcedonia, de Constantinopla II) na dotação privilegiada que foi próprio da alma lhe preexistam de Maria, ou seja, sua concepção imaculada, livre de pecado original. (Cf. Tomás de Aquino, Suma teológica, XXVII; Pio IX, Definição do dogma da Imaculada Concepção).
E entretanto, de tudo isso, Jesus, deus encarnado, não se lembra. E daí seu desprezo pelas mulheres em geral, e por sua mãe em particular: "Simão-Pedro disse: 'Que Maria saia dentre nós, porque as mulheres não são dignas da vida eterna...'. E Jesus disse: 'Eu a atrairei a fim de voltá-la varão, para que se converta em um espírito lhe vivifiquem semelhante a vós, os varões... Porque toda mulher masculinizada entrará no Reino dos Céus'..." (Cf. Evangelho conforme Tomás, manuscrito copto do século IV, P. 118).
"E Tomás perguntou: 'Quando oramos, de que maneira devemos orar?'. E Jesus respondeu: Orem no lugar onde não haja nenhuma mulher'..." (Cf. Diálogo do Salvador, manuscrito copto, P. 142).
"A mulher não é digna da vida eterna..." (Cf. Jesus: Loggion, 101).
Devemos convir que tudo isto contradiz muito nossos dogmas modernos.
E mais quando no instante de sua morte, segundo o novo dogma do Encargo, promulgado pelo Papa Pio XII, ela entraria "em carne e osso", a instâncias de seu Filho, no Paraíso, levada por uns anjos que vieram procurá-la. E tampouco disto se lembra Jesus, o Filho, quem de acordo com o Pai e com o Espírito Santo lhe concedeu de antemão esse privilégio inaudito. E entretanto, essa decisão, anterior ao nascimento de Maria, tomaram em comum as três "pessoas" da Trindade.
Por último, Maria não concedeu nenhum valor às revelações do arcanjo Gabriel. Vejamos de novo o que dizem os Evangelhos:
1. "Porque Maria esquecera os mistérios que lhe revelara o arcanjo Gabriel..." (Cf. Protoevangelio de Santiago, XII, 2).
2. "Porque seus irmãos tampouco acreditavam nele..." (Cf. João, 7, 5).
Assim, Maria não lhes revelara quem era em realidade seu irmão maior, e isso porque formulara em alta voz sua aceitação de ser fecundada pelo Espírito Santo, e seu parto foi tão milagroso como essa mesma fecundação, porque logo permaneceu igual virgem como antes. E tudo isso não a surpreendia o mínimo!
Entretanto, se ela não lhes tinha crédulo tudo que de maravilhoso tinha acompanhado à chegada de seu filho maior, mediante essa revelação ela lhes evitava duvidar dele, e Judas, seu neto, (108) não poderia já entregar ao Jesus e prejudicar-se ao fazê-lo, já que essa traição não era necessária para a Redenção, dado que a ameaça de crucificação, procedente dos romanos, pesava sempre sobre a cabeça de Jesus.
Voltando para a mistificação do Encargo, "em carne e osso", pois o é, e grande, embora se tenha elevado ao nível dogmático, ante o estupor de todo o mundo protestante, expor agora aos católicos de estrita observância algumas pergunta embaraçosas:
O que pensar, por exemplo, disto?:
"Mas não se tem nenhuma prova da partida de João; pode inclusive conjeturar-se que a viagem de João à Éfeso não foi anterior ao ano 58. Nessa data Paulo se deteve, passou um tempo ali e evangelizou a Igreja de Éfeso, apesar de que tinha como regra não compilar no campo de outro, isso significa que, naquela época, o apóstolo João não tinha adquirido ainda os direitos sobre a Igreja de Éfeso. Pois bem, no ano 58 Maria estava com setenta e seis anos, e nessa idade parece bastante inverossímil uma mudança de residência que conduzisse uma viagem tão fatigante e tão longa como a de Jerusalém à Éfeso; portanto, Maria não teria abandonado Jerusalém, e teria morrido ali". (Cf. Dom H. Leclercq, Dictionnaire d'archéologie chrétienne et de liturgie, VIII, col. 1.382).
Deixemos a Dom Leclercq com suas ilusões cronológicas e atentemos só às suas conclusões, lógicas até não poder mais.
Aqui citaremos Patrice Bousset, conservador da Biblioteca histórica da Cidade de Paris: "No século IV se ignora tudo referente às circunstâncias de tal morte, mas no século seguinte há duas teorias opostas, a da sepultura em Jerusalém e a de sepultura em Éfeso. E no século VI se afirma a existência de uma tumba e de uma igreja consagrada à Virgem em Getsemani, tumba que estaria convocada no mesmo lugar da casa em que viveu e morreu Maria. A basílica, reconstruída em princípio do século VII, seria destruída no século XI. Segundo a tese da morte em Éfeso, Maria passou os últimos anos de sua vida em uma casa que João construira para ela nos arredores da cidade, teria morrido em tal casa e enterrada pelos apóstolos. Naturalmente, umas escavações permitiram encontrar "a casa da Santíssima Virgem" em Éfeso, do mesmo modo que em Jerusalém se mostrava aos peregrinos o terreno sobre o qual Maria emitiu seu último suspiro". (Cf. Patrice Boussel, Des reliques et de leur bon usage, 8.) E por que não? Terei que atrair aos peregrinos.
O leitor convirá em que essas contradições e esses testemunhos opostos fazem cair toda a lenda Mariana. Porque ainda no século VI, Grégoire de Tours assinala a presença de relíquias do corpo da Virgem em uma igreja de Auvernia, e no século IX se fala de outras novas em Luçon. Mais adiante, como é evidente, e à medida que ia perfilando a lenda da ascensão de Maria, mãe de Jesus, aos céus, levada pelos anjos, fez-se desaparecer essas comprometedoras relíquias. Mas esqueceram de censurar os numerosos manuscritos existentes.
E, o que é mais, em 1952 descobriram no monte das Oliveiras, perto de "Dominus Flevit", convocações de tumbas contemporâneas à época de Jesus. Nelas se acharam um certo número de sepulcros pequenos, de redução, nos quais se depositava os ossos descarnados e secos, depois de uma permanência mais ou menos longa nas tumbas clássicas de duas câmaras funerárias. Sobre esses pequenos sepulcros de redução estava inscrito o nome do defunto, ou em grego, ou em aramaico. Entre eles descobriram, agrupados, os de Jairo, Marta, Maria, Simão-bar-Jona (aliás Simão-Pedro), Jesus, Salomé e Filón de Cirene (cf. R.P. Luc H. Grollengerg, Atlas biblique pour tous, P. 177). É evidente que são falsos, que foram rubricados em uma época para os séculos IV-V- no qual do que se tratava era de deslumbrar aos peregrinos. E isso demonstra que naquela mesma época a lenda cristã não possuía ainda todo seu caráter maravilhoso. E concretamente a ascensão de Jesus não tinha sido ainda establecida. (109) E partindo dessa base, como imaginar a de Maria, sua mãe?... E se eram autênticos é ainda mais grave, já que nos demonstra que Jesus foi inumado em carne e que não houve jamais ressurreição alguma, já que o cadáver se decompôs e logo os ossos foram juntados em um sarcófago de redução. E então a mesma conclusão se impõe para o caso de sua mãe, Maria. Se duvidássemos disso, não teríamos mais que recordar as questões provocadas pelas três tumbas diferentes situadas em Jerusalém, Getsemani e Éfeso, e pelas relíquias corporais conservadas em Auvernia e em Luçon.
Em outro campo, o da arte, temos a mesma constatação.
Nenhuma tradição cristã, nenhum documento canônico mostra Maria recebendo em seus braços o corpo de Jesus, à descida da cruz. Nenhum documento deste tipo pinta a Maria banhada em lágrimas ante seu filho crucificado. E isso é significativo. (110)
Para chorar a seus filhos mortos, as mães antigas tiveram às vezes acentos de uma trágica beleza. E o primeiro voccero corso, aquele hino imprecatório com o que se abria toda vingança, punho em alto, na soleira do famoso "palácio verde", foi indubitavelmente clamado por uma delas, sob o fúnebre mezzaro negro.
Sempre ignoraremos como se comportaria Maria a noite da morte de Jesus. Conforme nos conta Flavio Josefo, os zelotes tinham como princípio não lamentar-se jamais, nem em seu próprio suplício nem ao contemplar o de outros. E tanto por seu passado familiar, que acabamos de ver, como pelo exemplo do marido morto em combate, Myrhiam-bath-Ioachim teria como máxima o verso de seu antepassado o salmista: "Que o eterno seja sempre a rocha de meu coração..." (Cf. Salmos, 73, 26). E semelhante atitude engrandece àquela mulher que foi a muito digna esposa de Judas o Gaulanita, muito mais que as afetações lacrimosas das pseudo-tradições marianas. Maria, "mãe dos sete trovões", não podia derramar lágrimas.
NOTAS COMPLEMENTARES
Enquanto corrigíamos as provas da presente obra, nosso amigo Francis Mazières nos indicou que se acabava de abrir a tumba da Virgem Maria em Éfeso. Essa tumba resultou estar completamente vazia, o que demonstra a veracidade do encargo de Maria em carne e osso. Absolutamente luminosa idéia! Agora não fica já mais que abrir as de Jerusalém, de Getsemani, recuperar os fragmentos corporais que se disputaram as cidades da Idade Média, e ninguém poderá negar já o prodígio. Quão mesmo nós, o leitor se persuadirá de que a tumba de Éfeso foi já aberta no século IX pelo imperador Leão VI, e que os restos que esta continha foram transferidos à Constantinopla. Sob o nome de Maria de Magdala... Inumada já em Saint-Maximin, perto de Sainte-Baume... Um milagre mais!
20 - As grandes famílias
Aquele que possui mulher e filhos proporcionou reféns à Fortuna, já que são obstáculos para as grandes empresas, tanto virtuosas como malignas...
FRANCIS BACON Du mariage au célibat
Em sua primeira obra, L'Enigme de Jésus-Cristo, Daniel Massé, fazendo-se eco das tese anteriores de Arthur Heulhard (de verdadeiro nome Arthur Nivernoys), diz-nos que Maria, mãe de Jesus, foi durante um tempo a filha política de Herodes, o Grande: "sua mãe, viúva, tornara a casar-se, com Herodes, o Grande", (op. cit., P. 98).
Daniel Massé equivoca-se uma vez mais. Mas terá que reconhecer a este autor que, através de uma massa enorme de afirmações diversas, às vezes incontroladas ou errôneas, em ocasiões teve brilhos de uma intuição absolutamente fulgurantes. Como nas obras que sucederam não nos contribuiu a prova desta aliança matrimonial, vimo-nos na obrigação de procurá-la. Não foi uma tarefa nada fácil, já que os monges copistas manipularam suficientemente o texto inicial de Flavio Josefo para que os manuscritos medievais que chegaram até nós (os únicos, lástima!) constituam um labirinto de contradições e de incoerências totalmente desconcertante. Necessitamos de uma maior paciência, de inumeráveis horas (a maioria delas noturnas), de reflexão e de verificações, para chegar a estabelecer essa prova desencorajadora da aliança matrimonial entre as famílias davídica e herodiana, que, não obstante, não afeta diretamente Maria, mãe de Jesus.
Mas a conclusão é realmente gratificante, porque faz que este último, durante um tempo, fora sobrinho de Herodes, o Grande, primo por aliança de seu filho e sucessor Herodes Arquelao, de seus outros filhos Herodes Antipas e Herodes Filipo I, tio por aliança das princesas Berenice e Drusilla, sem esquecer a seu amável primo Saul-bar-Antipater, futuro "São Paulo". Quanto a sua mãe Maria, esposa e viúva de Judas da Gamala, converte-se não na esposa, a não ser na irmã política do próprio Herodes, o Grande... (111)
Como bem se vê através desta breve exposição genealógica, o problema merecia que lhe consagrassem numerosas horas de investigação. De todo modo, e sem antecipar conclusões, podemos já assegurar ao leitor que, por parte da família davídica, não se tratava de outra coisa que de um plano bem maturado e preconcebido, que tinha como objetivo a retomada do trono de Israel, então composto pelos reino da Judéia e da Samaria. E disso permanece uma confissão de Jesus, confissão que demonstra que jamais pensou em outra coisa: "Jerusalém, Jerusalém, que matas aos profetas e apedreja aos que lhe são enviados! Quantas vezes quis reunir a seus filhos à maneira que a galinha reúne a seus frangos sob as asas, e não quis!..." (Cf. Mateus, 23, 47).
E daí as relações com o território impuro de Samaria, apesar das proibições judias. Porque se, frente ao poderio romano, conseguia reunificar a Judéia e a Samaria, Israel podia esperar sua liberação, enquanto que se um filho de Herodes continuava ocupando o trono e reinando sobre esse conjunto, Roma continuava sendo a potência ocupante.
E agora passemos à demonstração histórica desta assombrosa aliança.
O abade Migne, em seu Dictionnaire des apocryphes (tomo II, Paris, 1858), diz-nos que a Igreja do Oriente tomou como válido um texto intitulado Do nascimento da Virgem e atribuído a São Cirilo da Alexandria. Segundo essa tradição manuscrita, Ana (em hebreu Hannah), a mãe de Maria, era por sua vez filha de um tal Stolano e de sua esposa Emerantia, nomes gregos que, segundo costume da época, acompanhavam aos sobrenomes hebreus, já que o nome de circuncisão desse Stolano seria Mathan, como veremos seguidamente.
Segundo esse manuscrito, Ana casou-se com dezoito anos com Joaquim, que tinha vinte, e de quem o Protoevangelio de Santiago diz que pertencia à estirpe de David como Ana, que era um homem muito rico e que pertencia à estirpe sacerdotal, já que em certas épocas foi pontífice no Templo (cf. abade Emile Amann, O Protévangile de Jacques, Paris, 1910, Letouzey & Ané, Imprimatur do 1-2-1910).
Observemos que Eli, sua forma completa de Eliakim, e também Iehojakim são um mesmo nome. (Cf. Talmud de Babilônia; Sanedrín, fº 67, e Talmud de Jerusalém, fº 77).
Recordemos tudo isto: filiação davídica, sacerdotal, e uma grande riqueza familiar. Essas três qualidades são muito importantes, já que permitem situar à família de Maria e de Jesus em um nível social bastante elevado.
Em primeiro lugar, e durante vinte anos, Ana não pôde conceber nenhum filho. E só aos trinta e oito anos pôde dar a luz por fim a uma filha, que recebeu o nome de Maria (em hebreu Miryâm), filha que mais adiante se converteria em esposa de Judas da Gamala e mãe de Jesus. Esse mesmo ano Ana enviuvou, e então se casou em segundas núpcias, "conforme mandava o Senhor" (op. cit.), com seu cunhado, um tal Clopas, porque não tinha podido dar um filho ao Joaquim, seu primeiro marido. E este era, efetivamente, o costume que se impunha imprescritivelmente em Israel. (Deuteronômio, 25, 5).
O mesmo ano desse novo matrimônio legal, Ana deu a luz uma segunda filha, a que se deu deste modo o nome de Maria (II) em lembrança de quão prodígios tinham precedido (segundo a lenda) ao nascimento da primeira, e que nos relata o Protoevangelio do Santiago.
Esse segundo marido, necessariamente irmão do primeiro, morreu antes do nascimento da Maria II, e Ana o chorava ainda quando um anjo lhe apareceu e a ameaçou a que se preparasse a contrair novas núpcias. De fato, ela seguia na obrigação legal de casar-se com o terceiro irmão, ao não ter podido dar a luz a nenhum varão que pudesse perpetuar o nome do pai defunto, e não é absolutamente necessário imaginar uma aparição angélica para obter a aplicação da lei judia, coisa comum naquela época.
E temos, pois, Ana casada com seu segundo cunhado, que se chamava Salomão (e não Salomé, como põe por engano o texto grego). Um ano mais tarde nascia uma terceira filha, a que se voltou a pôr o nome de Maria (III). E pouco depois, conforme nos diz o Livro do nascimento da Virgem, Ana era viúva pela terceira vez.
Isto é muito menos seguro, e o constataremos em seguida, no exame de outros documentos que nos contribuirão o por que das mortes dos dois primeiros maridos, tão próximas que não podiam a não ser estar integradas em uma catástrofe geral.
Completando a tradição desse texto do Nascimento da Virgem, o Dictionnaire de Bible do abade Vigouroux (tomo I, Paris, 1925, Letouzey & Ané, Imprimatur do 28-10-1891, 1ª edição), diz-nos que Ana era filha de Mathan, cohen, quer dizer, sacerdote pontífice, nascido em Belém da Judéia, e que ela era a última das três filhas do chamado Mathan, chamadas Maria, Sovei e Ana. Como se vê, a árvore genealógica começa a perfilar-se.
Provavelmente para mascarar este caminho, que resultará ser do mais revelador, a Igreja católica declararia de uma vez por todas "fazer profissão de fé de não saber nenhuma das circunstâncias que acompanharam o natal de Maria, e não nos dizer nada dela já que a Escritura e a tradição apostólica não lhe tinham contribuído nada..." (cf. O Protévangile de Jacques, op. Cit., P. 49, citando ao célebre hagiógrafo Adrien Baillet). Entretanto: "Não vacilo em considerar esses nomes (os dos familiares de Maria) como autênticos -diz-nos o não menos célebre exegeta Tischendorf. Com efeito, em meados do século II (por volta de 150) lhes podia conhecer melhor. Que necessidade havia, pois, de forjar outros novos?..." (Cf. Tischendorf, De evangeliorum apocryphorum origine et usu, 1851).
O historiador independente tem interesse em ser mais curioso.
Para isso é necessário estudar um pouco esse nome de Maria, sobretudo do ponto de vista onomástico, já que se converterá em uma das chaves do enigma por resolver. Maria não é nome hebreu comum. Não se encontra citado mais que uma só vez no Antigo Testamento, no caso da irmã de Moisés (cf. Êxodo, 15, 20; Números, 12, 1; 20, 1; 26, 59; Deuteronômio, 24, 9; Miquéias, 6, 4). E isso é bastante estranho: uma só mulher se chamou assim em toda a história de Israel, ao menos dentre os personagens históricos conhecidos.
Hiller, em seu Onomasticum sacrum (Tubinga, 1706, P. 173), demonstrou que na forma hebréia Miryâm, a terminação am não tem nenhum significado preciso, que é uma simples forma final. Esse nome derivaria simplesmente do árabe marja (o j tomado aqui por um i, quer dizer, acentuando o caráter gutural de r). Teria o significado de "grossa, forte", termos sinônimos de beleza feminina nessas regiões do Oriente Médio. A forma assíria é marû. Hiller nos precisa além que a pontuação masorética -os pontos vocais em hebreu- dá miryâm, mas versões diversas fazem supor que dá maryâm. Já o temos! Quando mais adiante nos encontrarmos em presença de um nome de origem hebraica que se pronuncie Mariamna, recordaremos que Flavio Josefo simplesmente compilou aos historiadores e panegiristas de Herodes, o Grande, Nicolás de Damasco e seu irmão Ptolomeo de Ascalon, e que estes eram sírios, quer dizer, árabes. Eles utilizaram a forma árabe de marja (Maria em grego), acrescentando a desinência helênica am, já que redigiam suas Histórias em língua antiga.
Voltemos agora para segundo marido de Ana chamado Clopas, aliás Cleophas (cf. João, 19, 25, e Lucas, 24, 18). Nos manuscritos iniciais dos evangelhos canônicos, redigidos como se sabe em grego, esse nome aparece transcrito como Klopa, contração do grego Kleopatros, que significa "(nascido) de um pai ilustre"; portanto, tem o mesmo significado que Antipas ou Antipater, em grego Antipâtros: "(nascido) de um pai ilustre".
O nome hebreu Abraham, que significa "pai elevado de uma multidão", e que procede de Abram, que significa "pai elevado", é o que melhor lhe corresponde. Em língua árabe dá Ibrahim. Pelo contrário, a forma ortográfica da Klopa mostra uma derivação de uma raiz aramaica.
Passemos agora a seu feminino Cleópatra (em grego Kleopâtra), que logo encontraremos como duplo helênico de Mariamna em hebreu. Numerosas princesas egípcias levaram esse nome entre as procedentes das dinastias selêucida e ptolemaica. A mais célebre foi, indubitavelmente, Cleópatra VII, nascida em Alexandria no ano 66 antes de nossa era, e morta na mesma cidade no ano 30 antes da mesma, aos trinta e seis anos de idade. Foi filha de Ptolomeo XI o Auletes, e se casou, segundo o costume do Egito, com seu próprio irmão Ptolomeo XII. Foi amante sucessivamente de Julio César e de Antonio, corrompeu literalmente a este último e fez com ele iniciando-o nas orgias, clássicas e homossexuais, comuns e compartilhadas, nas quais ela era perita. Uma rainha de Síria levou também esse nome. Significava, quão mesmo Klopa, "(nascida) de um pai ilustre".
Concluamos já que, quando vemos aparecer esse nome aplicado a uma princesa judia, esposa de Herodes, o Grande, é que haverá uma possível associação de idéias com a do Egito, e provavelmente pelas mesmas razões. (112)
E agora voltemos para a história.
No evangelho de João se diz que Clopas tinha uma esposa chamada Maria: "Estavam, junto à cruz de Jesus sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria a de Cleofás..." (Cf. João, 19, 25). Pois bem, os manuscritos gregos dos evangelhos canônicos jamais apresentam uma construção gramatical deste tipo para explicar semelhantes relações conjugais.
Assim, por exemplo, em Mateus (27, 19), à esposa de Pilatos a chama em grego guné (mulher, esposa); em Lucas (17, 32), à esposa de Lot a chama igual; e em João (4, 7), a mulher de Samaria recebe o mesmo qualificativo. Assim: "...Juana, mulher de Chuza, intendente de Herodes...", traduz-se: "... Iokana, guné Kouza ..." (op. Cit.) Pelo contrário, a frase de João (19, 25): "... Maria, mulher de Cleofás...", está composta de modo totalmente distinto: "... Maria é tou Klopâ...", quer dizer: "... Maria (filha) de Klopa ...", e não "mulher de".
Essa é a antiga tradução da citada passagem do evangelho de João. A nova versão não é mais que uma modificação mais, destinada a nos fazer perder o fio do enigma. Vejamos a prova: Existem uns Atos apostólicos (Actus apostolorum) atribuídos a um tal Abdías, que seria bispo de Babilônia, quer dizer, em realidade de Roma, segundo o vocabulário petrino convencional. Esses Atos, redigidos primeiro em hebreu, logo traduzidos por seu discípulo Eutropio ao grego, e logo do grego ao latim por Julio, o Africano, a Igreja católica os considera apesar de tudo como uma obra redigida inicialmente em latim, e datada do século VI (cf. J.A. Fabricius: Codex Apocryphum, Novum Testamentum, Hamburgo, 1703). E nesses Atos apostólicos de Abdías, Maria II aparece não como a mulher, mas sim como a filha de Clopas, como afirmávamos antes. E há ainda outro testemunho disso: "Clopas era irmão de José, e ao morrer Clopas sem filhos, José, segundo alguns, casou-se com sua mulher e procurou filhos a seu irmão. Maria (Maria de Clopas), aqui mencionada, seria um de seus filhos". (Cf. Teofilacto, bispo de Acrida na Bulgaria, por volta do ano 1078, na Patrología grega, tomo CXXIII, col. 293).
Este autor confunde, portanto, ao José e àquele Salomão com o que Ana, mãe da Maria I, teria se casado em terceiras núpcias. Como já demonstramos a inexistência de tal José, (113) imaginado para fazer desaparecer ao Judas da Gamala, temos que voltar para o Salomão citado pelo documento atribuído ao Cirilo de Alexandria e intitulado O Nascimento da Virgem. Mas segue em pé o segundo testemunho: Maria II era a filha de Clopas, e não sua esposa.
Voltamos, portanto, a estar em posse das ferramentas e as chaves necessárias para forçar a porta do tenebroso calabouço aonde a Igreja dos primeiros séculos encerrou a verdade histórica. Retornemos, pois, à dinastia herodiana, e, para começar, façamos o inventário do verdadeiro harém que possuiu Herodes, o Grande, conforme os costumes de sua época, já que Flavio Josefo nos diz a respeito que "esse príncipe gozava com o abuso da liberdade que nos dá a Lei de possuir várias esposas..." (Cf. Flavio Josefo, A guerra dos judeus, I, XVII).
Terá que acrescentar, em favor dele, que foi durante toda sua vida um grande amante da beleza feminina, e que jamais escolheu a suas esposas por suas riquezas familiares, a não ser acima de tudo por sua beleza, e já só por isso lhe será perdoado muito! Não obstante, tampouco esqueceu associar a isso nobres origens, já que Flavio Josefo nos diz que mandou queimar as genealogias dos hebreus, depositada no Templo, a fim de não permitir que nenhuma delas pudesse, como no caso da primeira Mariamna, humilhá-lo incessantemente, tendo em conta suas próprias origens não reais.
A lista de suas esposas e dos filhos que estas lhe deram nos proporciona o texto das Antigüidades judaicas (XVIII, I) e o Da guerra dos judeus (I, XVII), em sua versão grega. O mesmo pode dizer-se da versão eslava: Herodes, o Grande se casou, pois, sucessivamente, com:
1º: Doris, que foi mãe de Antipater. Foi repudiada pela primeira vez quando o rei decidiu casar-se com Mariamna I, que lhe segue. À morte desta, Doris foi reintegrada a pedido de seu filho no favor e o leito de Herodes, e logo repudiada pela segunda vez quando teve lugar o complô de Antipater, e então foi despojada de todos seus bens e jóias. Era provavelmente uma grega de Decápolis, federação helenística de dez cidades, situadas ao leste do lago de Tiberíades, e que Pompeyo tinha liberado da dominação judia no ano 62 antes de nossa era. Com efeito, este nome se encontra, em sua forma balcânica de Dorisca, na Hungria, Yugoslavia e Transilvania, onde visivelmente é de origem grega.
2º: Mariamna I, filha do rei Alexandre e da rainha Alexandra. Era, pois, a neta de Hircano II, rei e supremo sacerdote, e de Aristóbulo II, rei e supremo sacerdote. Pertencia, portanto, à dinastia asmonea, chamada dos macabeus. Foi executada por uma falsa acusação de adultério, por ordem de Herodes, o Grande, quem, quando teve reconhecido seu engano, esteve a ponto de perder a razão. O rei teve dela cinco filhos: duas filhas e três filhos. O maior, Alexandre, casou-se com Glapyra, filha de Arquelao, rei da Capadocia, e o menor, Antígono, casou-se com a filha de Salomé I, irmã de Herodes, o Grande, quão mesma tinha acusado de adultério a Mariamna I.
3º: Mariamna II, filha de Simão, cohen e pontífice, e que foi elevado ao pontificado pelo Herodes com ocasião de tal matrimônio. Teve um filho chamado Herodes Filipo I (que se casaria com Herodias, neta por sua vez de Mariamna I e de Herodes), e que morreu no ano 34 de nossa era. Primeiro foi criado em Roma, e designado mais tarde como sucessor de Herodes, o Grande, em segunda posição, depois de seu meio-irmão Arquelao. Entretanto, foi apagado desta sucessão quando descobriu o complô no qual participou sua mãe Mariamna II, e sobre o que teremos que voltar.
4º: Malthaké, a Samaritana, possivelmente, apesar de tudo, de origem grega também (Decápolis), já que seu nome, Maltakia em grego, significa "doçura, brandura". Deu ao rei dois filhos: Arquelao e Antipas, e uma filha, Olympia. Morreu durante os enfrentamentos contra Roma, frente a César Augusto, dos membros da dinastia herodiana e seu filho Arquelao. Possivelmente aproveitaram a ausência destes para suprimi-la. Também pôde perecer durante a guerra civil que enfrentou aos partidários de Achiab, tio avô de Salomé II, aos de Arquelao. Já analisamos este episódio das lutas dinásticas em nossa primeira obra. (114)
5º: Cleópatra de Jerusalém. Esta indicação de origem e de residência precisam que foi judia. Teria um filho, segundo os historiadores modernos (em seguida teremos a prova), e dois segundo seus predecessores, chamar-se-iam Herodes e Filipo. Este último teria sido educado em Roma também, quão mesmo seu meio-irmão Herodes Filipo I, filho de Mariamna II. E então se expõe a pergunta: por que ele, e não seu irmão maior? Como não se encontra nenhum rastro válido desses dois personagens, geralmente se considera que se trata simplesmente de um texto corrompido nos manuscritos gregos, ao ter dado lugar um mau declínio à introdução da "e" entre o Herodes e Filipo, quando terei que ler simplesmente Herodes Filipo. Mais adiante veremos que, com efeito, não é mais que o mesmo personagem que Herodes Filipo I, filho de Mariamna II, o que implica que esta última não seja outra que a citada Cleópatra de Jerusalém.
6º: Pallas, de quem Herodes teve um filho chamado Fazael.
7º: Fedra, que foi mãe de uma filha chamada Roxana.
8º: Elpide, que lhe deu uma filha chamada Salomé (Salomé III).
9º: X ..., filha de um de seus irmãos, e portanto sua própria sobrinha. O costume do Oriente Médio permitia a um tio casar-se com a filha de seu irmão ou de sua irmã. Sob o Claudio César e a proposição de Vitelio, o Senado romano confirmou por unanimidade este costume e a legalizou (cf. Tácito, Annales, XII, VI-VII). Desta união Herodes não teve filhos.
10º: X' ..., sua prima irmã, provavelmente nabatea e filha de um irmão ou de uma irmã de sua mãe Cypros I, tampouco desta união teve Herodes descendência.
Pois bem, primeira observação: Flavio Josefo enumera com toda precisão a dez esposas, e antes tinha declarado que Herodes, o Grande, tinha tido nove (cf. Antigüidades judaicas, XVII, I), portanto há uma repetida. E isso é assim nas diversas versões de Flavio Josefo, tanto na grega como na eslava, tanto nas Antigüidades judaicas como na guerra dos judeus. Este engano terá que imputá-lo aos copistas medievais, quem em sua paixão por fazer desaparecer de tal autor tudo que pudesse revelar a verdade histórica, jamais tiveram a suficiente inteligência e fria razão para controlar suas censuras, interpolações, etcétera.
Sabendo que procuramos uma esposa da dinastia davídica, vejamos quais das esposas de Herodes, o Grande, respondem a dita exigência. Observar-se-á que a versão eslava da guerra dos judeus fala apenas de uma Mariamna, filha de um supremo sacerdote. Por instinto, o copista retificou o número das esposas, mas fazendo-o cometeu outro engano!
Vejamos agora em que condições se casou Herodes, o Grande, com a segunda Mariamna, depois de mandar executar à primeira, fundando-se em uma denúncia caluniosa de sua irmã Salomé I, quem queria desembaraçar-se dessa cunhada a que odiava e de seu marido, de quem fez o amante daquela. Flavio Josefo nos diz o seguinte: "Ele (Herodes) pensou em voltar a casar-se, e como não procurava seu prazer na mudança, quis escolher a uma pessoa em quem pudesse depositar todo seu afeto. E assim tomou uma puramente por amor, à maneira que vou contar. Simão, filho de Boeto Alexandre (115) que era pontífice e de uma raça muito nobre, tinha uma filha de uma beleza tão extraordinária que não se falava de outra coisa em Jerusalém. O rumor chegou até Herodes. Quis vê-la, e jamais amor algum a primeira vista foi maior que o que este sentiu por ela. Julgou que não devia abusar de seu poder raptando-a, como poderia fazê-lo, por medo de passar por um tirano, e acreditou que melhor seria casar-se com ela. Mas como Simão não era de uma tão grande qualidade como para tão alta aliança, nem tampouco de uma condição nada desprezível, quis elevá-lo a uma grande honra a fim de fazê-lo mais considerável. assim, privou do supremo sacerdócio ao Jesus, filho de Phabet, a deu, e se casou com sua filha". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XV, XII).
Israel jamais teve a não ser duas dinastias reinantes em toda sua história. A dinastia asmonea, chamada dos macabeus, que precedeu a não judia dos Herodes, não reinou mais de um século, do ano 135 aos 37 antes de nossa era. Não se beneficiava de nenhuma profecia ilustrativa. Em troca era muito distinta no caso da dinastia dos filhos de David, que governou Israel desde ano 1015 até o 107 antes de nossa era, bem de fato, bem legitimamente. Em seu caso possuía a promessa de Yavé, expressa ao rei David pelo profeta Natán: "Ocorrerá que quando seus dias tenham chegado ao cúmulo e tenha repousado com seus pais, eu farei subsistir a semente que sairá de suas vísceras e farei estável seu reino (...) E eu farei estável o trono de seu reino para sempre (...) Por isso serão estáveis sua casa e seu reino para sempre ante mim. Seu trono permanecerá firme para sempre!" (Cf. Samuel, 7, 12 a 16).
Esta promessa se realizou durante mais de um milênio, às boas ou às más. Tudo isso está, pois, muito claro. A "raça muito nobre" a que faz alusão Flavio Josefo para referir-se a Mariamna II e a seu pai Simão é, indubitavelmente, a de David, tanto mais que, por outro lado, é de filiação sacerdotal, e por conseguinte descendente deste modo de Aarão. E daí que fora elevado ao supremo sacerdócio. A nova esposa de Herodes, o Grande, era assim de sangue real e filha do pontífice de Israel.
Temos, pois, por conseguinte a prova absoluta de que o rei contou efetivamente, entre suas esposas, com uma "filha de David". Mas quais podiam ser os laços familiares diretos desta Mariamna II com a Maria, mãe de Jesus? Essa é a segunda parte do enigma que temos que resolver.
Antes que nada convém precisar quem essa era "Cleópatra de Jerusalém" com a que se casou depois de Malthaké a Samaritana, com quem o tinha feito por volta do ano 21 antes de nossa era.
Necessariamente, e apesar de seu nome, Cleópatra era judia, já que nos precisa que era "de Jerusalém". Sabemos que naquela época era já antigo o costume de levar um nome grego acrescentado no nome hebreu. Sabemos deste modo que Cleópatra significa "(nascida) de um pai ilustre" (em grego Kleopâtra). Quão mesmo Clopas (em grego Klopâ). Quem podia ser, pois, essa judia "nascida de um pai ilustre", de suficiente "nobre raça" para ser tomada por esposa pelo rei Herodes, o Grande? Conhecendo as deformações fáceis utilizadas pelos monges copistas quando desejavam obscurecer um ponto da história, podemos imaginar que seu nome era, em hebreu, Bath-Clopas ("filha de Clopas"), quão mesmo essa Maria de Clopas, em grego "Maria é tou Klopâ", que os Atos apostólicos de Abdías, bispo de Babilônia, afirmam que foi a filha de Clopas, e não sua esposa, como diz João (19, 25). Dado que este evangelho apareceu por volta do ano 190 de nossa era, que ignoramos de que João se trata (em todo caso não do apóstolo), concederemos nosso voto ao Abdías. Possivelmente houve além outro motivo para o apelido helênico dado a essa filha de Clopas, uma alusão à Cleópatra rainha do Egito, e em seguida o analisaremos.
Por outra parte, Mariamna não é outra coisa, como vimos anteriormente, que uma desinência grega do hebreu Miryâm, aliás Maria. Se podemos estabelecer que Mariamna II e Cleópatra foram uma mesma e única mulher, teremos desatado completamente o nó do enigma. De sua união com Herodes, o Grande, Mariamna II tivera um filho chamado Herodes Filipo I, que se casou com Herodias, sua prima, neta de Mariamna I e de Herodes, o Grande. Cleópatra de Jerusalém, por sua parte, tivera um filho chamado Herodes Filipo II, quem se casaria com Salomé II, filha de Herodes Filipo I e de Herodias. Daniel-Rops, em Jesus em seu tempo, adere-se, evidentemente, a esta cômoda solução para afogar a verdade histórica (op. cit.; III, Um canton dans l'Empire).
"Dos quatro filhos de Herodes, todos estavam vivos quanto Jesus, mas nenhum tinha seus poderes. O maior, Herodes Filipo I, neto por parte de mãe do supremo sacerdote Simão, tinha sido explicitamente deserdado; a falta de território, esperava obter o soberano pontificado, mas a mitra branca e o peitoral sagrado, em lugar de recompensar sua espera, recaíram sobre seus tios avós, um após o outro..., deixando a ele, simples sacerdote, como presa dos sarcasmos de sua ambiciosa esposa Herodias". (Op. cit.)
E, em outro capítulo, Daniel-Rops não vacila em dar a Salomé II como esposa ao fantasma Herodes Filipo II: "E Filipo-Herodes Filipo II-, irmão do tetrarca, e tetrarca a sua vez de Gaulanítide e a Traconítide, que pouco depois se casaria com Salomé..." (Op. cit.: V, A sémence d l'Eglise).
Todas estas afirmações de Daniel-Rops constituem uma série de enganos interessados, e tudo isto é falso, contrário aos textos antigos, já que Flavio Josefo jamais deu o nome da esposa do pseudo-Herodes Filipo II. E, em primeiro lugar, Daniel-Rops reconhece que Herodes não teve mais que quatro filhos.
Nomeemo-los:
1º: Antipater, filho de Doris,
2º: Herodes Filipo I, filho de Mariamna II,
3º: Herodes Antipas, filho de Malthaké a Samaritana,
4º: Herodes Arquelao, filho da mesma.
Tendo em conta que os dois filhos de Mariamna I, Alexandre e Aristóbulo, estão já mortos, isso não dá a não ser quatro filhos, e aí estamos de acordo com Daniel-Rops. Mas como pode falar então desse Herodes Filipo II, filho de Cleópatra de Jerusalém, o que elevaria a cinco o número dos filhos de Herodes, o Grande, vivos naquele tempo? Quão mesmo os monges copistas da Idade Média, Daniel-Rops se embrulhou em seu esforço por dissimular a verdade...
E vejamos outras provas de que este Herodes Filipo II jamais existiu.
Na versão eslava da guerra dos judeus de Flavio Josefo, é Herodes Filipo I, filho de Mariamna II, o marido de Herodias, quem é o tetrarca, e isto o confirma o relato, no mesmo Flavio Josefo, da partilha do reino de Herodes, o Grande, por César Augusto, assim como um velho evangelho apócrifo copto, mais antigo que o segundo Lucas, se dermos crédito ao Orígenes, e que nós denominamos O evangelho dos Doze Apóstolos.
Aqui estão esses textos definitivos que varrem ao mesmo tempo por todas as interpretações "arrumadas" de Daniel-Rops: "Você confiscará ao Filipo, tirará sua casa, dará procuração de seus bens, de seus servidores, de seu gado, de todas suas riquezas, de tudo o que é dele; e você me enviará essas coisas à sede de meu império. Todos seus bens, você os contará para mim, e não lhe deixará nada, exceto sua vida, a de sua mulher e de sua filha. Isto é o que diz Tibério ao ímpio Herodes Antipas". (Cf. Evangelho dos Doze Apóstolos, 2º fragmento).
Trata-se, pois, sem lugar a dúvida, de Herodes Filipo I, o tetrarca, marido de Herodias e pai de Salomé II, aquele ao que Daniel-Rops converte em um pobre cohen, sem nenhuma tetrarquia. Continuemos: "Filipo, achando-se em sua província, teve um sonho: uma águia lhe tinha arrancado os dois olhos. Reuniu a seus sabios. (116) Como todos explicavam o sonho de forma diferente, esse homem que representamos antes, que ia vestido com peles de animais e que desencardia ao povo nas águas do Jordão, acudiu subitamente a seu encontro sem ser chamado, e disse: 'Escuta a palavra do Senhor. Nesse sonho que viu, a águia é seu amor ao lucro, porque esse pássaro é violento e rapace, e esse pecado te arrancará seus olhos, que são sua província e sua mulher'." (Cf. Flavio Josefo, A guerra dos judeus, II, 4, manuscrito eslavo).
Também aqui, como se vê, trata-se de Herodes Filipo I, marido de Herodias e pai de Salomé II, e que é tetrarca, como sublinha Flavio Josefo. A águia designa Roma, e neste caso concreto ao Tibério. Continuemos. À morte de Herodes, o Grande, e ao ser protestado seu testamento, a família herodiana acudiu à Roma para levar o litígio ante o imperador Augusto. Depois de ter ouvido as partes, o imperador resolveu assim o problema: "Não proclamou rei ao Arquelao, mas sim da metade do reino que antes estava submetido ao Herodes (o Grande) fez uma etnarquia que lhe concedeu, prometendo honrá-lo mais tarde com o título de rei se por sua virtude se mostrava digno disso. Depois de dividir a outra metade em duas partes, as deu aos outros dois filhos de Herodes, ao Filipo e ao Antipas... Antipas teve por sua parte a Perea e a Galiléia, que anualmente lhe rendiam duzentos talentos. A Batanea, com a Traconítide e a Auranítide, e uma parte do que se chamou o domínio de Zenodoro reportaram ao Filipo cem talentos". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVII, XI, manuscrito grego).
O quarto filho de Herodes, o Grande, tinha morrido, efetivamente, pouco antes do desaparecimento de seu pai, executado por ordem dele e com o consentimento do imperador, por complô criminal contra o rei. Era Antipater, filho de Doris. Não ficavam, pois, mais que três: Arquelao, Herodes Filipo I e Herodes Antipas.
Como se vê, este Herodes Filipo I, filho de Mariamna II, que fora deserdado pelo Herodes, o Grande, em ocasião do complô de sua mãe, foi restabelecido em seus direitos de herdeiro parcial por César Augusto, porque não participara da conjuração materna. E foi efetivamente ele o primeiro marido de Herodias, o pai de Salomé II, que mais tarde foi despojado por Tibério César de sua tetrarquia, por causa da acusação caluniosa de seu meio-irmão Herodes Antipas.
Mas, perguntará o leitor, e Herodes Filipo II, do que Daniel-Rops fazia um tetrarca e o marido de Salomé II? É, simplesmente, o mesmo personagem que Herodes Filipo I, que foi desdobrado pelos monges copistas e Daniel-Rops, para fundamentar a existência dessa Cleópatra de Jerusalém, personagem tão imaginário como ele, e duplo engano de Mariamna II, como acabamos de demonstrar. Para isso inventou um filho. Quanto ao verdadeiro personagem de tal nome, encontraremo-lo em outro lugar, no próximo capítulo.
E uma nova pergunta aflora nos lábios, ou seja, o por que dessa nova falsificação de Flavio Josefo por parte dos copistas medievais. A armadilha é muito hábil. Naquela época as fortalezas possuíam sempre vários recintos murados, ou ao menos seu torreão. O mesmo aconteceu aqui. Porque vamos descobrir a uma "filha de David", parente próxima de Maria, mãe de Jesus, e cujo comportamento, inclusive justificado por uma conjuração política, é simplesmente escandaloso. Ao criar a um dupla de tal personagem, sempre lhe poderá dissociar de Jesus e de sua mãe, e a honra davídica ficará a salvo... Se um historiador curioso consegue estabelecer que uma meio-irmã de Maria se casou com Herodes, o Grande, argumentar-se-á amplamente sobre o rigor moral de seu comportamento, muito diferente ao da outra, escandaloso, e a base estará jogada. Em montaria a isto lhe chama por parte da caça, "dar o cambalacho", e as trombas de caça o assinalam mediante uma formosa e forte fanfarra...
Recapitulemos, pois, sobre o resultado de nossas investigações:
1) Mariamna II não é outra que uma Miryâm, filha de David, esposa indiscutível de Herodes, o Grande, mãe de Herodes Filipo I, e portanto sogra de Herodias e avó de Salomé II.
2) Cleópatra de Jerusalém não tem existência histórica, quão mesmo seu pseudo-filho Herodes Filipo II, quem jamais foi, e com razão, nem tetrarca nem marido de Salomé II. O nome desta esposa imaginária deriva do apelido helênico de seu pai Clopas (em grego Klopâ) e, como ele (Kleopatrâ), ela é "de pai ilustre". Trata-se, portanto, de Mariamna II.
3) Mariamna II, aliás Miryâm, filha de David, chamar-se-á Maria em nosso idioma, e Maria em grego. Como é o mesmo personagem que a Cleópatra de Jerusalém, é efetivamente a "Maria de Cleofás" do evangelho de João (19, 25), no texto grego deste: "Marie é tou Klopâ".
4) Como Maria de Cleofás era a segunda filha de Ana, mãe de Maria, mãe de Jesus, embora de pai diferente (seu tio, segundo a lei judia), era, pois, meio-irmã de Maria I, mãe de Jesus, e tia deste último.
5) Por seu matrimônio com Herodes, o Grande, Mariamna II, aliás Maria de Cleofás, meio-irmã de Maria mãe de Jesus, fez deste último o sobrinho por aliança do rei Herodes, o Grande, e primo por aliança de seus filhos, os tetrarcas Herodes Antipas e Herodes Filipo I.
Agora, e segundo a técnica habitual de l'Ecole des chartes, método comprovadamente válido, convém controlar e delimitar cronologicamente todas essas assombrosas conclusões:
- Maria I, mãe de Jesus, teria nascido por volta do ano 30 ou 32 antes de Cristo. Sua mãe, Ana, contaria então 38 anos, segundo os textos já citados.
- Jesus nasce por volta dos anos 15 ou 17 antes de nossa era (segundo São Irineu), e morre aproximadamente aos cinqüenta anos de idade, no ano 35 de nossa era.
- Se Joaquim morreu no ano 30 ou 32 a.C., Clopas (Cleofás) teria morrido no -28.
- Ana, mãe de Maria I, nascera por volta dos anos - 68 ou -70. Herodes, o Grande, viera ao mundo no ano -73; portanto, contava mais ou menos a mesma idade que Ana, pois só era três ou quatro anos maior que ela.
- Ana teve uma segunda filha com Cleofás, aproximadamente no ano -28. Esta (aliás Mariamna II, aliás Cleópatra de Jerusalém) teria nascido, por conseguinte, por volta do ano -28.
- Em -28 Herodes, o Grande, contava com 45 anos. Casou-se com Mariamna I (filha de Hircano) no ano -37, e a mandou executar no ano -29, oito anos mais tarde. Casaria com Mariamna II no ano -13 ou -11, portanto ela contava então quinze anos de idade, conforme era costume naquelas regiões, e teria nascido nos anos -28 ou -26. Como Maria I, mãe de Jesus, tinha nascido por volta do ano -30, os dados coincidem.
- Herodes, o Grande, morre no ano -4, aos sessenta e nove anos de idade. Mariamna conta então uns vinte e dois anos. Caíra em desgraça no -5, e Antipater, filho de Doris, tinha morrido no -4.
- Herodias tinha nascido no -7 e morreu no ano 39 de nossa era; portanto contava doze anos quando se casou com Herodes Filipo I, no ano 5 ou 7 de nossa era. Ele morreu no 34 do mesmo, e tinha nascido por volta do ano -10.
- Salomé II, a filha de ambos, nasceu por volta dos anos 6 ou 8 de nossa era, e morreu em 73 desta, quando contava uns sessenta e cinco anos de idade; portanto, tinha 28 anos à morte de Jesus.
E quando teve lugar tal execução, no ano 35 de nossa era, as três Marias (117) contavam portanto:
- Maria I, mãe de Jesus, nascida por volta do ano -30 ou -32, uns sessenta e cinco anos.
- Maria II, aliás Mariamna II, aliás Cleópatra de Jerusalém, nascida por volta do ano -28, uns sessenta e três anos de idade.
- Maria III, outra meio-irmã, nascida por volta do ano -26, uns sessenta e um anos de idade. Também aqui coincide tudo.
Por outra parte, se como dizem os textos eclesiásticos, Mariamna II, aliás Maria II, é a filha de Cleofás, e se Cleofás for o irmão de José, em realidade Judas da Gamala, Mariamna II, aliás Cleópatra de Jerusalém, é nem mais nem menos que a tia de Jesus. Como foi esposa de Herodes, o Grande, dos anos -13 ou -11 ao -5, quer dizer, durante seis ou oito anos, Jesus foi o sobrinho de Herodes, o Grande, durante todo esse tempo... E foi primo de seus filhos: Antipater, Herodes Antipas, Herodes Filipo I, de suas filhas: Olympia, Roxana, Salomé III, Cypros III, Salampsio; de suas netas: as princesas Drusilla e Berenice, e, especialmente, daquela que cedeu sua cama e seu mesa: (118) a princesa Salomé II, viúva de Herodes Lysanias, ao que logo estudaremos, e futura esposa de Aristóbulo III, rei de Armênia...
Tudo isto explica muito melhor que o sonho premonitório da esposa de Pilatos o fato de que este quisesse "liberar o Jesus" (cf. Lucas, 23, 20, e João, 19, 12). Coisa que nos oculta cuidadosamente.
E tudo o que é mais ainda, esse parentesco "por aliança" (porque, apesar de tudo, não é mais que isso) estende-se de Jesus a Saulo-Paulo. Como este último era o neto de Herodes, o Grande, por parte de sua mãe Cypros II, e seu sobrinho neto por parte de seu pai Antipater II, (119) se estabelece um laço de parentesco entre ambos personagens, queira ou não. Porque a irmã de Herodes, o Grande, a vingativa e ciumenta Salomé I, converteu-se em tia de Mariamna II, aliás Cleópatra de Jerusalém, aliás Maria II, quando esta se casou com Herodes, o Grande, nos anos -13 ou -11; e Salomé não morreu até um ano mais tarde, no 10 antes de nossa era. De todo modo, se Cleofás era o pai de Mariamna II, este morreu, conforme nos dizem, antes do nascimento de sua filha. E então, como pôde Herodes, o Grande, fazer dele um pontífice de Israel quando se casou com sua filha Mariamna II doze ou quinze anos mais tarde, por volta do ano 11 antes de nossa era? E além disso, como podia chamar-se Simão?
Vejamos a explicação, que é muito singela, Cleofás, segundo marido de Ana, mãe de Maria I, realmente tinha morrido, e foi seu irmão, que por seu matrimônio com Ana se converteu no padrasto de sua filha Mariamna II, quem a deu em matrimônio ao Herodes, o Grande, e por esse fato se converteu em supremo sacerdote. É que o hebreu utiliza a mesma expressão para designar ao pai e ao padrasto.
Esta função de supremo sacerdote a recebeu necessariamente sob o nome hebreu de Simão, aliás Simão, seu nome de circuncisão, portanto ritual (e não de Salomé, que é um nome feminino, como diz equivocadamente o texto grego do livro Do nascimento da virgem). Os nomes de circuncisão iniciais às vezes eram modificados no curso da vida, em certas circunstâncias graves, e seguindo um ritual concreto. Então do que se tratava era de desviar para um nome que já não era levado por nenhum ser vivente, ameaças de ordem particular ou geral. Assim, por exemplo, Flavio Josefo nos diz que Caifás, o pontífice que julgou ao Jesus do ponto de vista religioso, chamava-se inicialmente Josefo (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII, II, 35).
Por outra parte, o leitor não deixará de assombrar-se ante essa série de mortes entre os maridos sucessivos da desafortunada Ana, condenada pelo destino a uma viuvez permanente. E a priori isso parece incrível. Primeiro nós acreditamos em uma lenda construída por contistas dotados da clássica simplicidade infantil, comum antigamente a essas regiões. Mas ante a verdade histórica tudo se explica, pelo contrário, muito bem. Se partirmos da cronologia cristã clássica, com um Jesus nascido no ano 1 de nossa era, temos uma Maria sua mãe nascida provavelmente por volta do ano 15 de nossa era. Agora bem, neste período da história judia, nada justifica a morte de seu pai, logo a de seu padrasto, em dois anos sucessivos.
Se, pelo contrário, levassemos em conta a afirmação de São Irineu, de um Jesus "morto na soleira da velhice, e próximo aos cinqüenta anos de idade", é que nascera por volta do ano 17 antes de nossa era, e sua mãe, Maria I, por volta do ano 34 ou 32 antes desta. E precisamente essa época é um período especialmente cruel para Israel, e logo vamos poder julgá-lo.
Antígono, filho de Aristóbulo, disputa com seu tio Hircano o trono da Judéia. Expulso da Galiléia por Herodes, o Grande, futuro rei dessa província, Antígono se refugia entre os partos e vai, junto com seu rei, apoderar-se de Jerusalém. Hircano e Fazael caem prisioneiros. Fazael, carregado de cadeias, se suicidará partindo o crânio contra os muros de sua cela. Em caso de necessidade, ajudaram-lhe. Ao Hircano cortaram as orelhas por ordem do Antígono, a fim de que, por tal mutilação infamante, seja indigno do supremo sacerdócio. E Antígono ocupa então o trono da Judéia. Mas Herodes, que primeiro se refugiou no Egito, vai à Roma implorar o apoio de Antonio, e este último o faz proclamar rei da Judéia pelo Senado romano. Além disso, proporciona-lhe tropas mercenárias para expulsar por sua vez ao Antígono e aos partos de seu novo reino. Achamo-nos no ano 39 antes de nossa era.
Herodes embarca então com seu exército romano e estabelece moradia em Jerusalém. Durante essa operação se casa com Mariamna I, filha de Hircano, tanto por sua beleza para legitimar com dita aliança seu acesso ao trono, já que mediante ela se converte, efetivamente, no genro do rei legítimo.
Ao cabo de seis semanas de moradia, Jerusalém cai em poder dos assediantes; todos os inimigos de Herodes caem, degolados, e apesar da intervenção do próprio Herodes saqueiam a cidade, devastam o Templo, multiplicam-se as pilhagens, as violações e os assassinatos à medida que se ocupa à Cidade Santa por parte dos mercenários. Antígono é capturado e imediatamente enviado à Roma, onde Antonio o manda executar. Mas na Judéia, Herodes enfrenta sérias oposições, sobretudo no âmbito fariseu. Então é quando manda dar morte a todos os militantes da oposição, degolar a todos os membros do Sanedrín, e afogar no Jordão a seu cunhado Aristóbulo, irmão de Mariamna I, sua própria esposa. Não lhe perdoará nada de tudo isto. Tais fatos são relatados por Flavio Josefo em sua Guerra dos judeus (manuscrito eslavo, 1, 16, e manuscrito grego, I, XII).
Encontramo-nos no ano 37 de nossa era. Avancemos sete anos e nos encontramos no ano 30 antes da mesma. Uma série de terríveis tremores de terra devasta toda Judéia, mal reposta ainda dessa desumana guerra. Contam-se mais de trinta mil mortos, e perece quase todo o gado. Por causa das dezenas de milhares de cadáveres de homens e de animais, a cólera faz sua aparição, e ipso facto a febre tifóide, devido às fontes e cisternas poluídas. Ao ver isto, os árabes nabateos, caso que o Israel se achava muito debilitada por tais desgraças, invadiram o território nacional e, como não resistiram melhor às diversas epidemias, aumentaram o número dos mortos (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XV, VII).
Tendo em conta que se produzem inexatidões em matéria cronológica (em todo esse período as datas estabelecidas o são com um ano, como mínimo, de margem de engano; o monge Denys-le-Petit se equivocou efetivamente em seus cálculos, já que nossa era teria que ter começado, em realidade, cinco anos antes), pode supor-se que as mortes dos maridos de Ana, mãe de Maria I, produziram-se nessa terrível época que vai da proclamação de Herodes como rei da Judéia, no ano 39 antes de nossa era, até a tomada de Jerusalém dois anos mais tarde (no ano -37), as matanças que a seguiram, os sismos, as epidemias, e logo a invasão árabe no ano -32.
Por conseguinte, e por muito surpreendente que pareçam por sua cercania no tempo, as viuvez sucessivas de Ana não foram inventadas pelos cronistas que redigiram o livro Do nascimento da Virgem, atribuído a São Cirilo de Alexandria e tido como válido pela Igreja do Oriente. São, como se vê por seu marco histórico geral, algo do mais plausível. E voltemos agora para Mariamna II. Fica ainda por precisar o verdadeiro rosto dessa inesperada tia. É, quando menos, estranhamente curioso, mas para compreendê-lo terá que voltá-lo para situar dentro do conjunto dos personagens desse surpreendente afresco.
Em sua Guerra dos judeus (manuscrito grego, I, XIX), Flavio Josefo mostra ao Herodes, o Grande, expulsando de sua corte a seu irmão Feroras, porque não queria repudiar a sua esposa, que tramava um complô contra o rei. Feroras morreu pouco depois em seus domínios. Herodes descobriu então que queria envenená-lo à instâncias de Antipater, filho de Doris, e repudiou esta pela segunda vez. Logo apagou de seu testamento ao Herodes Filipo I, filho de Mariamna II (Maria de Cleofás) e destituiu ao Simão, supremo sacerdote, pai desta. O manuscrito eslavo da Guerra dos judeus nos dá os mesmos detalhes, e seria uma lástima não publicá-los, e agora vai poder se ver por que: "Essas palavras foram como uma punhalada para o rei. Submeteu a tortura a todas as mulheres que estavam em sua casa. Uma delas, em meio dos torturas, exclamou: 'Deus que rege o céu e a terra, faz recair sua vingança sobre a mãe de Antipater (Doris), pois ela é a autora de todos nossos males...'. O rei recolheu estas palavras e seguiu interrogando para tentar saber a verdade. A mulher contou então quanto se amavam a mãe de Antipater (Doris) e Feroras (irmão de Herodes, o Grande) e como se reuniam às escondidas Antipater, Feroras e as damas: 'Ao voltar de sua casa bebiam durante a noite, sem admitir junto a eles a nenhum escravo nem homem livre, nem homem, nem mulher'. Depois de falar assim esta mulher, Herodes ordenou que se submetesse a tortura às escravas, mas todas em separado. E sob os golpes deram todas uma resposta unânime: quão mesma dera aquela mulher". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito eslavo, I, 12).
O texto grego das Antigüidades judaicas nos confirma a relação eslava da Guerra dos judeus, o que demonstra que a convicção do autor estava perfeitamente fundada: "As torturas dessas mulheres (faxineiras) revelaram-no tudo: as orgias, as reuniões clandestinas, e inclusive as palavras ditas em segredo pelo rei Herodes a seu filho (Antipater), e contadas às mulheres de Feroras..." (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVII, IV, manuscrito grego). Essas palavras secretas demonstram a exatidão das afirmações das serventes, e elas não inventaram nada sob a tortura, e mais tendo em conta que foram interrogadas em separado. Portanto, tratava-se de orgias sexuais e mágicas, no curso das quais se tentava enfeitiçar ao Herodes, o Grande. Há uma confirmação disso nos Salmos de Salomão, documento composto no século que coroava o início de nossa era, dado que nisso lemos o seguinte: "Em ocultos subterrâneos cometiam suas exasperantes iniqüidades; uniam-se o filho com a mãe, e o pai com a filha. Fornicavam cada um com a mulher de seu vizinho, e faziam entre eles pactos baixo juramento a este respeito..." (Cf. Salmos de Salomão, VIII, 9-11, Paris, 1911, Letouzey & Ané édit.).
Como se vê, tudo se produz do mesmo modo que nas cerimônias mágico-sexuais do tantrismo ou nos sabbats medievais: a violação dos tabus através da liberação alimentar e sexual, as conjurações, os julgamentos de obediência, etcétera.
Pois bem, Mariamna II, aliás Maria de Cleofás, meio-irmã de Maria e tia de Jesus, era membro de tal conjuração e participava de sortes orgias: "Parecia que os emane do Alexandre e de Aristóbulo120 erravam por toda parte para fazer descobrir as coisas mais ocultas, e tirar testemunhos e provas da boca daqueles que estavam mais afastados de toda suspeita. Porque ao submeter a tortura aos irmãos de Mariamna, filha de Simão, supremo sacerdote, descobriu por suas confissões que ela era culpada de tal conspiração. Herodes fez pagar aos filhos o crime de sua mãe, e apagou de seu testamento ao Herodes Filipo I, o filho que tivera dela e a quem tinha declarado seu sucessor. (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, I, XIX, manuscrito grego).
Herodes, com efeito, não podia englobar em sua vingança a seu próprio filho, já que Herodes Filipo I não contava então mais que cinco anos de idade, dado que sua mãe Mariamna II caiu em desgraça no ano 5 antes de nossa era, e ele tinha nascido no ano 10. Assim, Maria de Cleofás, tia de Jesus por ser meio-irmã de Maria sua mãe, e esposa de Herodes com o nome de Mariamna II, participara do complô encaminhado à morte deste e às orgias sexuais e mágicas celebradas com tal fim. Tendo em conta tudo que develamos em nosso primeiro volumen, (121) pode supor-se que isso o realizava em benefício da dinastia davídica em geral, e de seu sobrinho Jesus em particular. Como tinha nascido no ano -17, no ano -5, quando teve lugar o complô de sua tia, contava já doze anos, quer dizer, a maioridade civil e religiosa. E é bastante duvidoso que Maria, sua mãe, ignorasse a conspiração que se realizava em favor de seu filho primogênito. E isto confirma o que sustentamos desde o começo de nossa investigação, ou seja, que o judeu-cristianismo primitivo não foi jamais outra coisa que uma extensa empresa política, e nada mais, e em modo algum uma predicação mística, como nos tentam fazer acreditar há vinte séculos.
Convém observar a este respeito que o repúdio de Mariamna II e os motivos de tal sanção não alteraram em modo algum as relações entre ela e sua meio-irmã Maria I, mãe de Jesus. Temos a prova disso nos próprios evangelhos canônicos: "Estavam junto à cruz de Jesus sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria a de Cleofás..." (Cf. João, 19, 25).
Agora sabemos que terá que ler "filha de" Cleofás.
Não obstante, esse grupo permanecera relativamente herodiano, já que entre as mulheres que seguiram Jesus "e lhe serviam" quando estava na Galiléia, achava-se Salomé II (cf. Marcos, 15, 41), quem durante um tempo foi a concubina de Jesus (veja o capítulo 27), e "Juana, mulher de Chuza, intendente de Herodes" (cf. Lucas, 8, 3). Aqui se trata, evidentemente, de Herodes Antipas, e não de Herodes, o Grande, que morrera já fazia tempo.
A presença de Salomé II, neta de Herodes, o Grande, viúva de Lysanias, tetrarca de Abilene, a da Juana, mulher de Chuza, intendente de Antipas, junto à Maria, mãe de Jesus, e Maria, filha de Cleofás, aliás Mariamna II, esposa repudiada de Herodes, o Grande, em resumo, tudo o que se costuma chamar "ás santas mulheres" segundo a tradição cristã, situa-nos em presença de um ambiente do mais curioso. Porque sua santidade está ainda por demonstrar.
No caso da Maria II, filha de Cleofás, as orgias sexuais e mágicas nas quais participou da vida de Herodes excluem toda santidade, é bem evidente. Salomé II foi a concubina de Jesus como o demonstra o Evangelho conforme Tomás, isto não a desprestigia, já que ela foi viúva naquela época, e Jesus não estava casado, conforme se supõe. Mas esta situação, batizada pelo judeu-cristianismo com o nome de fornicação, não implica tampouco nada de santidade... Sobre a Juana, esposa de Chuza, intendente de Herodes Antipas, a gente poderia perguntar-se por que seu marido a deixava vagabundear assim desde a Galiléia, no seio de um grupo zelote, que praticava não só a comunidade de bens, mas também a de mulheres, como veremos em seguida. Possivelmente era a donzela de Salomé II, ou possivelmente fora repudiada por Chuza, por sua conduta. O que fica disso é que as "santas mulheres" como as qualifica piedosamente Daniel-Rops, não constituem a não ser uma lenda mais.
Agora bem, com sua presença em Jerusalém durante a execução de Jesus, contribuem uma explicação complementar a todos esses favores e amparos misteriosos das que ele se beneficiou até o dia em que, aos olhos de Roma e de seu procurador, a taça ficou cheia. Em uma obra cunhada com o Imprimatur (Paris, 15-1-1957) e intitulada La Date de Cène, Annie Jaubert faz alusão a isso (P. 129), e Oscar Cullmann, pastor protestante, demonstrou em seu livro Deus e César que o processo de Jesus tinha sido um processo puramente zelote. Como se vê, nossa tese se mantém.
Vamos agora abordar um tema particularmente delicado, e cujas conclusões causarão escândalo, embora não tenham escapatória possível: o da comunidade de bens que incluía... as mulheres, nos meios apostólicos primitivos.
Sabemos por Flavio Josefo, que durante três anos foi membro de sua seita, que os essênios aceitavam, não o matrimônio, a não ser simplesmente a união sexual, com vistas à procriação de filhos e a renovação de seus membros, mas com mulheres cuidadosamente escolhidas, e purificadas cada vez, antes do coito, mediante ritos bem precisos (cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, VII, IX; II, VIII, X; Antigüidades judaicas, XVIII, I, 5).
Como os essênios estavam repartidos em quatro classes separadas, é fácil compreender que unicamente os membros da classe mais baixa, por conseguinte os mais jovens, tinham a possibilidade de copular. Mas, dirão vocês, como conciliar isto com a afirmação de Filón de Alexandria, quem nos assegura, por outra parte que: "Nenhum essênio pode tomar mulher..."? (Cf. Filón, Quod omnis probus liber, XII). E tanto mais que Plinio o confirma: "...sine ulla femina, omni venere abdicata..." (cf. Plinio, Natura historiarum, V, XVII).
Captar-se-á melhor o matiz recordando que praticavam o comunismo absoluto. Qualquer que entrasse na sociedade, abandonava tudo o que possuía em mãos da comunidade, e isso é o que com toda segurança impressionou mais ao Flavio Josefo e o que possivelmente lhe moveu a sair dela (cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, VIII, 3).
Podemos, pois, concluir que os essênios efetivamente não se enredavam nos laços do matrimônio legal e segundo a tradição corrente em Israel, expressa pela lei judia, mas sim assumiam simplesmente a procriação, necessária para perpetuar sua seita, fecundando mulheres que tinham em comum, quando tinha lugar seu passo pelo grau mais baixo, umas mulheres que, entretanto, eram escolhidas e purificadas com este fim. E isso é, provavelmente, o que explica que os membros dos graus superiores da Ordem se achassem na necessidade de purificar-se por sua vez quando tinham contato material com os dos graus inferiores, aos que consideravam como impuros por causa de sua vida sexual.
Pois bem, nós sabemos agora que os zelotes procediam inicialmente dos essênios. Igual a eles, rechaçavam um bom número de tabus legais, mas, pelo contrário, observavam muitos outros costumes de maneira particularmente integral. E a comunidade de bens a encontramos entre os discípulos de Jesus: "A multidão dos que tinham acreditado tinha um coração e uma alma sozinha, e nenhum tinha por própria coisa alguma, antes o tinham tudo em comum (...) Quantos eram donos de fazendas ou casas, vendiam-nas e levavam o preço da venda, e o depositavam aos pés dos apóstolos, e a cada um lhe repartia segundo sua necessidade." (Cf. Atos dos Apóstolos, 4, 32-35).
Esta apreciação, nossos apóstolos sabiam orientá-la perfeitamente segundo seus próprios interesses, já que lemos um pouco mais adiante: "Por aqueles dias, tendo crescido o número dos discípulos, surgiu uma falação dos helênicos contra os hebreus, porque as viúvas daqueles eram mal atendidas no serviço cotidiano..." (Cf. Atos dos Apóstolos, 6, 1). (122)
E vamos agora constatar que nosso santos discípulos do Senhor não só praticavam, mas sim, além disso, exigiam, colocarem a disposição comum de suas esposas, e muito provavelmente também de suas filhas. Tomemos uma vez mais a História eclesiástica de Eusebio da Cesaréia: "Naqueles tempos nasceu também a heresia chamada dos nicolaítas, que durou muito pouco (123) e da que também faz menção o Apocalipse chamado de São João. (124) Esses hereges pretendiam que Nicolás era um dos diáconos, companheiros de Estêvão, escolhidos pelos apóstolos para o serviço dos indigentes". (Cf. Atos dos Apóstolos, 6, 5). Ao menos Clemente de Alexandria, no terceiro Stromate, conta com seus próprios termos o seguinte a respeito: "Diz-se que tinha uma mulher na flor de sua vida. Depois da ascensão do Salvador, os apóstolos lhe reprovaram que estivesse ciumento. Então conduziu a sua esposa ao centro da assembléia e a abandonou a quem queria casar-se com ela. Diz-se que essa ação se ajustava à fórmula: "Terá que fazer pouco caso da carne...". E quando imitam sua ação e suas palavras, sem exame, os que seguem sua heresia, se prostituem de maneira vergonhosa... Estando assim as coisas, o abandono em meio dos apóstolos de sua mulher, que era um objeto de ciúmes, era sinal de renúncia à paixão, e a continência frente aos prazeres procurados com mais afinco ensinava a fazer pouco caso da carne. Em meu parecer, não queria, conforme ao mandamento do Senhor, servir a dois amos: ao prazer e ao Senhor". (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, III, XXIX, 1-2, citando Clemente de Alexandria, Stromates, III, 52-53).
Este texto exige já várias observações:
a) Nicolás o diácono, que recebera o Espírito Santo (cf. Atos, 6, 5-6), estava não obstante muito ciumento de sua bonita esposa. Sem dúvida tinha razões para isso, já que via que a desejavam, conforme era costume, posto que:
b) os apóstolos, que também receberam ao Espírito Santo, o reprovam, o que demonstra que há entre eles homens que desejam possui-la por sua vez, segundo o habitual entre sua comunidade de bens. Mas isso prova deste modo que tampouco eles estão liberados dos "gozos grosseiros da carne"...
c) conforme ao uso apostólico e zelote, procedente dos essênios, Nicolás o diácono se inclina, e conduz a sua bonita esposa ao centro da assembléia apostólica e dos discípulos, abandonando-a a eles;
d) Clemente de Alexandria "pensa" que se deve interpretar sua decisão no sentido de um desprendimento das coisas carnais, mas, como se vê, não está do todo seguro, não o afirma. E, efetivamente, se Nicolás estava ciumento de sua formosa mulher, é porque a queria, e tinha boas razões para estar em guarda e passar por um ciumento. Entretanto, a execução sumária, por ordem de Simão-Pedro, de Ananías e de Saphira, sua esposa, por infração grave das regras comunitárias, fizeram-lhe reflexionar; (125)
e) a mulher de Nicolás não foi oferecida em matrimônio a quem queria tomá-la por esposa (que já era o cúmulo!), tal como diz Eusebio da Cesaréia, e seu tradutor, o cônego G. Bardy retrocedeu ante a enormidade escandalosa da frase exata, já que o texto grego desse Stromate de Clemente de Alexandria emprega o termo épétrepem, que vem de épitrepo, que significa entregar, ceder, abandonar e de maneira nenhuma casar-se. De fato a jovem foi entregue à comunidade dos "Santos homens de Deus". Rasputín existiu em todas as épocas, como se vê.
Essa comunidade das mulheres se estendia deste modo às moças, o que exclui, igual no seio dos essênios, a constituição de casais duradouros e legais. Vejamos uma vez mais o testemunho de Clemente de Alexandria, contribuído por Eusebio da Cesaréia: "Não obstante, Clemente, cujas palavras acabamos de ler, enumera a seguir do que acaba de ser dito, àqueles dos apóstolos que estiveram casados, por causa daqueles que condenam o matrimônio: "Rechaçarão também aos apóstolos? Pedro e Felipe tiveram filhos. Felipe inclusive deu suas filhas a homens. E Paulo não vacilou em saudar em uma Epístola a sua companheira, a quem não levara consigo para maior comodidade de seu ministério..." (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, III, XXX, 1, citando a Clemente da Alexandria, Stromates, III, 25-26).
Pois bem, aqui está o texto grego de Clemente: "Philippe dé kai tas Tugatéras andrasin exedoken" (op. cit.).
E exedoken vem de ekdidomi, que significa tanto entregar (um escravo ou uma mulher), como dar em matrimônio. Dado que acabamos de ter a prova de que os meios apostólicos primitivos punham em comum às esposas, não pode se ter em conta o segundo sentido de ekdidomi, a não ser só o de entregar, abandonar como foi também o caso da muito formosa esposa de Nicolás o diácono, "objeto de ciúmes" (sic), entre os discípulos. E tanto mais que uma forte corrente majoritária condenava o matrimônio. Não ficava, então, como única solução possível, mais que o concubinato sucessivo.
NOTAS COMPLEMENTARES
Um fato parece não surpreender ninguém no mundo dos historiadores do cristianismo: o fato de que Jesus, modesto carpinteiro em parada perpétua, e que dizia ser de origem muito humilde, fora julgado por Pilatos, procurador de Roma.
Em Jesus em seu tempo, Daniel-Rops escreve: "De fato, esta história não teve para o cidadão de Roma que viveu sob o Tibério mais importância da que teria para nós a aparição de qualquer obscuro profeta em Madagascar ou a Reunião" (Op. cit.: Introduction. Ce qu'en su les contemporains).
Pois bem, em Roma é o imperador, pontifex maximus (pontífice supremo) e César (sagrado), quem delega os poderes de oferecer sacrifícios aos deuses do Império, assim como de justiçar e de pronunciar sentenças; dele emanam e descendem os diversos poderes religiosos, civis e militares, até os mais humildes magistrados romanos, como uma cascata legalista. Como imaginar ao Pilatos, que representava ao César na Judéia, e que portanto constituía a máxima autoridade romana, sancionando roubos de galinhas, agressões diurnas e noturnas, e crimes diversos? Isso é algo simplesmente impensável. Em todas as cidades dependentes de Roma havia magistrados encarregados de repartir a justiça romana segundo as leis de Roma e os costumes locais, combinadas e associadas.
Se Jesus fosse um obscuro agitador, uma vez capturado podia ser executado ou crucificado sobre o terreno, por ordem de um simples centurião, por havê-lo surpreso com as mãos na massa, e sobrou exemplos disso. Em caso de ser um personagem mais importante, podia ser enviado ao magistrado romano da cidade mais próxima, para o exercício do jus gladii. Se era ainda mais importante, uma vez conduzido à Jerusalém bastava fazendo-o comparecer ante o tribuno das coortes, governador de Antonia e chefe de armas de Jerusalém. O tribuno das coortes, como magistrado militar, conservava ainda sob o Império os privilégios honoríficos que, sob a República, davam-lhe classe de cônsul, a falta dos poderes deste.
Quer dizer que, como chefe de todo o movimento zelote, e inclusive como "filho de David" e pretendente do trono de Israel, se se fazia comparecer ao Jesus ante o governador de Antonia lhe concedia, já só com isto, uma enorme importância, e a sentença do tribuno das coortes fosse deste modo igual de regular e legal que se pronunciada pelo procurador de Roma. (126)
Isso significa, pois, que Jesus era efetivamente um pouco muito distinto a um simples chefe rebelde, e por isso foi levado a comparecer ante Pilatos. Ao fazê-lo, não ignoravam que ia gozar de poderosas influências, e que unicamente o procurador imperial estava em posição de apreciar o valor e o interesse destas, para tê-las em conta ou ignora-las. (127) Coisas todas que um tribuno das coortes não podia permitir-se confrontar. E isto o que faz não é mais que vir em apoio de tudo que dissemos sobre as relações que uniam as dinastias herodiana, asmonea, davídica, ante as autoridades, tanto romanas como judeus e religiosas.

CONTINUA