Quanto mais o homem foge dos males como pecados, mais pratica os bens, não por si, mas pelo Senhor

Por
Emanuel Swedenborg


18. Quem não sabe e não pode saber que os males impedem o Senhor de entrar no homem? Com efeito, o mal é o inferno e o Senhor é o céu, e o inferno e o céu são opostos; assim, quanto mais o homem está em um, tanto menos pode estar no outro, porque um age contra o outro e o destrói.
19. Enquanto o homem está no mundo, está em um meio entre o inferno e o céu; abaixo está o inferno e acima está o céu, e então é mantido na liberdade de se voltar ou para o inferno ou para o céu; se volta para o inferno, desvia-se do céu; mas se volta para o céu, desvia-se do inferno. Ou, o que é a mesma coisa: enquanto o homem está no mundo, está em um meio entre o Senhor e o diabo, e é mantido na liberdade de voltar-se ou para um ou para o outro; se volta para o diabo, desvia-se do Senhor; mas se volta para o Senhor desvia-se do diabo. Ou, o que é ainda a mesma coisa: enquanto o homem está no mundo, está em um meio entre o mal e o bem, e é mantido na liberdade de voltar-se para um ou para outro; se volta para a mal, desvia-se do bem; mas se volta para o bem, desvia-se do mal.
20. Foi dito que o homem é mantido na liberdade de se voltar para um lado ou para outro. Essa liberdade cabe a cada homem, não por si mesmo, mas pelo Senhor; por isso foi dito que é aí mantido. Sobre o equilíbrio entre o céu e o inferno, e que o homem esteja nesse equilíbrio e, por conseqüência, na liberdade, veja-se a obra O Céu e o Inferno (ns. 589 a 596, e 597 a 603). Que cada homem seja mantido na liberdade e que esta não é retirada de pessoa alguma, ver-se-á em seu lugar.
21. Por aí se vê claramente que, quanto mais o homem foge dos males, mais está com o Senhor e no Senhor; e que, quanto mais está no Senhor, mais pratica os bens, não por si mesmo, mas pelo Senhor. Daí vem esta lei geral: Quanto mais alguém foge dos males, mais pratica os bens.
22. Há, porém, dois requisitos: um, que o homem deve fugir dos males porque são pecados, isto é, porque são infernais e diabólicos, assim contra o Senhor e contra as leis Divinas; o outro, que o homem deve fugir dos males porque são pecados como por si mesmo, mas que saiba e creia que é pelo Senhor. Mas, sobre esses dois requisitos, falar-se-á nos artigos seguintes.
23. Daí resultam estas três conseqüências: (i.) Se o homem quer e pratica os bens antes de fugir dos males como pecados, os bens não são bens. (ii.) Se o homem pensa e fala com piedade, e não foge dos males como pecados, a piedade não é piedade." (iii.) Se o homem tem muito conhecimento e sabe muitas coisas, e não foge dos males como pecados, não é realmente sábio.
24. (i.) Se o homem quer e pratica os bens antes de fugir dos males como pecados, os bens não são bens. É porque, antes disso, ele não está no Senhor, como foi dito acima. Por exemplo, se dá aos pobres, se presta socorro aos indigentes, se doa aos templos e hospitais, se beneficia a igreja, a pátria e os concidadãos, se ensina o evangelho e converte, se pratica a justiça nos julgamentos, a sinceridade nos negócios e a retidão nas suas obras, e, todavia, não considera os males como sendo pecados, tais como as fraudes, os adultérios, os ódios, as blasfêmias e outras coisas semelhantes, então só pode fazer bens que interiormente são males. Com efeito, ele os faz por si mesmo, e não segundo o Senhor; assim, é ele mesmo que está nesses bens e não o Senhor. E os bens nos quais está o homem mesmo são todos manchados por seus males e se referem a ele mesmo e ao mundo. Mas esses mesmos feitos que foram enumerados acima são interiormente bens se o homem foge dos males como pecados, tais como as fraudes, os adultérios, os ódios, as blasfêmias, e outras coisas semelhantes, porque as faz segundo o Senhor, e são chamadas "feitas em Deus." (João 3:19- 21).
25. (ii.) Se o homem pensa e fala com piedade, e não foge dos males como pecados, sua piedade não é piedade porque não está no Senhor. Por exemplo, se freqüenta os templos, se escuta devotamente as pregações, se lê a Palavra e os livros de piedade, se participa do sacramento da Ceia, se cada dia faz orações, se mesmo pensa muito em Deus e na salvação, e, todavia, não considera absolutamente os males como pecados (como as fraudes, os adultérios, os ódios, as blasfêmias e outros males semelhantes), então só pode pensar e pronunciar coisas piedosas que interiormente não são piedosas, porque o homem mesmo, com seus males, está nelas. Ele então o ignora, é verdade, todavia os seus males aí estão e aí ficam ocultos à sua vista; é como uma fonte cuja água é impura por sua origem. Os exercícios da sua piedade são, ou somente práticas de hábito, ou meritórios, ou hipócritas. Na verdade, sobem para o céu, mas se desviam a caminho e caem, como fumaça no ar.
26. Foi-me dado ver e ouvir muitos que, depois da morte, enumeravam suas boas obras e os exercícios de piedade, tais como os que acabam de ser referidos (ns. 24, 25), e ainda de muitos outros. Vi mesmo entre eles alguns que tinham lâmpadas, mas não óleo. Indagou se se tinham fugido dos males como pecados, e descobriu-se que não; por isso lhes foi dito que eram maus. Mais tarde, também foram vistos a entrarem em cavernas, onde estavam maus que lhes eram semelhantes.
27. (iii.) Se o homem tem muito conhecimento e sabe muitas coisas, e não foge dos males como pecados, não é realmente sábio. Isto vem da mesma razão acima dada, a saber: que ele é sábio por si mesmo e não pelo Senhor. Ainda que conheça à risca a doutrina de sua igreja e todas as coisas que a ela se referem; que saiba confirmá-las pela Palavra e pelos raciocínios; que conheça as doutrinas de todas as igrejas desde séculos e, ao mesmo tempo, os editos de todos os concílios; ainda mesmo que saiba as verdades, e mesmo as veja e as compreenda; que saiba, por exemplo, o que é a fé, o que é a caridade, o que é a piedade, o que é a penitência e a remissão dos pecados, o que é a regeneração, o que é o batismo e a santa Ceia, o que é o Senhor, e o que é a redenção e a salvação; se, todavia, não foge dos males como pecados, não sabe realmente tais coisas, porque são conhecimentos sem vida, uma vez que pertencem somente a seu entendimento e não ao mesmo tempo à sua vontade. Tais conhecimentos perecem com o tempo, pela razão de que se falou acima (n. 15). Também, depois da morte, o homem mesmo os rejeita, porque não concordam com o amor da sua vontade. Todavia esses conhecimentos são extremamente necessários, porque ensinam como o homem deve agir; e, se ele os põe em pratica, então os conhecimentos vivem com ele, porém não antes.
28. Todas essas coisas que até aqui foram ditas, a Palavra ensina em muitas passagens, entre as quais serão referidas somente as que se seguem. A Palavra ensina que ninguém pode estar no bem e ao mesmo tempo no mal, ou, o que é a mesma coisa, que ninguém pode estar, quanto à alma, no céu e ao mesmo tempo no inferno; ensina-o nestas passagens:
"Ninguém pode servir a dois senhores; pois, ou terá ódio a um e amará o outro, ou se ligará a um e desprezará o outro; não podeis servir a Deus e a mamon." (Mateus 6:24).
"Como podeis dizer boas coisas, quando sois maus? (...) a boca fala da. abundância do coração; o homem bom, do bom tesouro do seu coração tira boas coisas; e o homem mau do mau tesouro tira coisas más." (Mateus 12:34, 35).
"A árvore ... boa não dá fruto mau, nem a árvore má dá fruto bom; toda ... árvore se conhece pelo seu próprio fruto; pois não se colhem figos dos espinheiros, nem se vindima da sarça a uva." (Lucas 6:43, 44).
29. A Palavra ensina que ninguém pode fazer o bem por si mesmo, mas pelo Senhor: "Eu sou a Videira..., e meu Pai é o Vinhateiro; todo ramo que em Mim não dá fruto, a tira; mas a todo o que dá fruto, limpa, para que dê mais fruto. Permanecei em Mim, também Eu em vós; como o ramo de si mesmo não pode dar fruto, se não permanecer na videira, assim nem vós, se não permanecerdes em Mim. Eu sou a Videira, vós os ramos; quem permanece em Mim, e Eu nele, esse dá muito fruto, porque sem Mim nada podeis fazer. Se alguém não permanecer em Mim, será lançado fora, como o ramo, e se seca; e o colhem, e o lançam no fogo, e será queimado." (João 15: 1 a 6.
30. A Palavra, nas passagens seguintes, ensina que, enquanto o homem não tiver sido purificado dos males, seus bens não são bens, sua piedade não é piedade, e ele não tem sabedoria; e vice-versa.
"Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! porque vos fazeis semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora, realmente, parecem formosos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia. Assim, também vós exteriormente pareceis justos..., mas por dentro estais cheios de hipocrisia e iniqüidade. Ai de vós... porque limpais o exterior do copo e do prato, mas os interiores estão cheios de rapina e intemperança. Fariseu cego! limpa primeiro o interior do copo e do prato, para que também o exterior fique limpo." (Mat. 23:25-28).
Também por esta passagem, em Isaías:
"Ouvi a palavra de JEHOVAH, príncipes de Sodoma; ouvi a lei do nosso Deus, povo de Gomorra. Que é para Mim a multidão dos vossos sacrifícios? ... Não continueis mais a trazer minchah de vaidade; o incenso é para Mim abominação, a lua nova e o sabbath, ... não posso suportar a iniqüidade;... vossas luas novas e vossas festas solenes Minha alma odeia... Pelo que, quando estendeis as vossas mãos, escondo de vós os Meus olhos; ainda que multipliqueis a oração, Eu não ouço; as vossos mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, removei malícia de vossas obras de diante dos Meus olhos, cessai de fazer o mal. ... Ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos, se tornarão como a lã." (1:10-18).
Em suma, resulta dessas passagens que, se o homem não foge dos males, todas as coisas do seu culto não são boas; o mesmo sucede com todas as suas obras, porque foi dito:
"Não posso suportar a iniqüidade; purificai-vos, removei a malícia de vossas obras, cessai de fazer o mal."
Em Jeremias:
"Convertei-vos cada um do seu mau caminho, e fazei boas as vossas ações." (35:15). Que eles não tenham sabedoria, vê-se em Isaías: "Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, e, diante de suas próprias faces, inteligentes!." (5:21).
No mesmo:
"Perecerá a sabedoria dos sábios ... e a inteligência dos inteligentes; ai daqueles que sabem profundamente... e fazem nas trevas as suas obras." (29:14,15).
E, em outra passagem, no mesmo:
"Ai dos que descem ao Egito por auxílio, e se estribam em cavalos, e confiam em carros, porque são muitos, e nos cavaleiros, porque são fortes; ... mas não atentam para o Santo de Israel, e a JEHOVAH não buscam. ... Mas [Ele] Se levantará contra a casa dos malignos, e contra o auxílio dos que obram iniqüidade; pois o Egito não é Deus, e o seu cavalo é carne e não espírito." (31:1-3).
Assim é descrita a própria inteligência: o "Egito" é a ciência, o "cavalo" é o entendimento que dela provém; o "carro" é a doutrina que daí procede; o "cavaleiro" é a inteligência que procede daí; sobre essas coisas se diz:
"Ai daqueles que não atentam para o Santo de Israel, e a JEHOVAH não buscam!" Sua destruição pelos males é entendida por "[Ele] Se levantará contra a casa dos malignos, e contra o auxílio daqueles que obram iniqüidade";
por "o Egito é homem e não Deus, e os seus cavalos carne e não espírito", é entendido que estas coisas vêm do próprio do homem, e portanto não têm vida alguma. "Homem" e "carne" são o próprio do homem, "Deus" e "espírito" são a vida proveniente do Senhor; os "cavalos do Egito" são a própria inteligência. Há, na Palavra, sobre a inteligência que vem de si e sobre a inteligência que vem do Senhor, muitas outras passagens assim, que são desvendadas somente pelo sentido espiritual. Que ninguém seja salvo pelos bens vindos de si, porque não são bens, isso é evidente por estas passagens:
"Nem todo o que Me diz: Senhor! Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de Meu Pai... Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos pelo Teu nome? e pelo Teu nome não expulsamos demônios? e em Teu nome não fizemos muitas virtudes? Mas então lhes confessarei: Nunca vos conheci, apartai-vos de Mim, vós que obrais iniqüidade". (Mat. 7:21-23).
E em outro lugar:
"Então começareis a estar de fora, e a bater à porta, dizendo: Senhor..., abre-nos: ... e começareis a dizer: Comemos diante de Ti, e bebemos, e nas nossas praças ensinaste; mas dirá: Digo vos, não sei donde vós sois; apartai-vos de Mim, vós todos, obreiros de iniqüidade." (Luc. 13:25-27).
Com efeito, são semelhantes ao fariseu que, no templo, estando em pé, orava dizendo que não era, como o restante dos homens, roubador, injusto e devasso; que jejuava duas vezes na semana, e dava dízimos de tudo que possuía (Luc. 18:11-14). São também os que são chamados "servos inúteis." (Luc. 17:10).
31. A verdade é que nenhum homem pode, por si mesmo, fazer o bem que é realmente o bem. Mas, por causa disso, aviltar todo bem da caridade que faz o homem que foge dos males como pecados, é uma enormidade, pois que é diametralmente contra a Palavra, que manda que o homem faça. É contra os preceitos do amor a Deus e do amor ao próximo, mandamentos dos quais dependem a lei e os profetas, e é ultrajar e suprimir toda a religião. Com efeito, qualquer um sabe que a religião consiste em fazer o bem, e que cada um é julgado segundo seus feitos. Todo o homem é tal que pode fugir dos males como por si mesmo pelo poder do Senhor, se o implora; e o que ele depois faz é o bem pelo Senhor.