Louis Claude de Saint-Martin
Homem: Sua verdadeira Natureza e Ministério
Sobre o verbo

  1. A invocação de poetas que habitam unicamente o astral
  2. O "maravilhoso" é tudo em um épico. A mais alta ordem daquilo que é admirável
  3. A poesia descritiva
  4. As evidências demonstrativas de Deus e da alma. Ateístas e materialistas
  5. Inadequação do ensino comum para a convicção dos Deístas
  6. A demonstração que a religião requer. A prova positiva
  7. A matemática intelectual
  8. Provas positivas racionais, emocionais e experimentais
  9. Provas positivas racionais, emocionais e experimentais
  10. Vemos Deus em todas as coisas
  11. Os diferentes agentes do sublime; O Cristianismo é o maior deles
  12. A simples estimativa do sublime
  13. A inconsciência dos homens de letras. A literatura humana, uma cilada quando mal aplicada
  14. O que tem feito os Ministros do Verbo? Tem, por um acaso, assegurada a chave do conhecimento?
  15. A razão mundana e a razão correta não devem ser prescritas da mesma forma
  16. A luz da Verdade é a própria evidência. A convicção em si é irrefutável. A fé cega
  17. A estimativa das Escrituras sobre a compreensão: Os Místicos.
  18. A natureza do desejo: o princípio do movimento
  19. A alma do homem receptáculo e envoltório do desejo de Deus. A alma pode conhecer todos os desejos de Deus
  20. As dificuldades de nossa reunião com Deus
  21. Mundos a serem conquistados: o específico para tal realização
  22. Auxílios dados ao homem: a grande eficácia destes auxílios
  23. O próprio Verbo está com estes auxílios
  24. Os auxílios sensíveis do Verbo levam ao "melhor estado possível" aqui embaixo
  25. Os três graus do Verbo que são dados ao Homem.
  26. O Demônio deixará de ser mau?
  27. Destino e predestinação
  28. O Poder do Homem sobre Deus
  29. Tudo o que é sensível é uma expressão do Ser.
  30. Sucessivos nomes; estados e processos na representação da Divindade
  31. A obra de santidade dentro do homem
  32. Dilúvios espirituais sobre a mente do homem. Os Noés espirituais
  33. Por que o mal ainda existe no universo?
  34. Deus tudo governa com paciência, amor e sabedoria

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A invocação de poetas que habitam unicamente o astral

O que me aflige é ver poetas tentando descrever aquilo que não conhecem e do que não poderiam falar, caso conhecessem. Sei que algumas vezes, eles sentiram a necessidade de serem guiados pela Verdade, quando se supõe terem invocado a Verdade em nome da poesia; mas será que acreditam firmemente na existência da Verdade?

Não há dúvidas que o sentimento secreto da necessidade da Verdade que fez com que Boileau afirmasse, em seu comentário "Arte Poética":
C'est en vain qu'au Parnasse un téméraire auteur, & c....
S'il ne sent par du ciel l'influence secrète,
Si son astre, en naissant, ne l'a formè poète.

O autor alemão irá dizer ao seus leitores que céu deve ser entendido por estas palavras de Boileau, nos mostrando o poder universal do mundo astral, sob o qual a humanidade caiu desde que o pecado entrou no mundo e pelo qual devemos passar e subjugar se quisermos vencer; o mais difícil é que o inimigo ocupou todas as posições e regras em todos os reinos deste mundo, como ele próprio disse ao Senhor, no Evangelho.

Podemos verificar o quão freqüentemente Milton pode ter estado sob a influência do mundo astral, já que só podia elaborar seus poemas durante certas épocas do ano. Ora, se Milton, apesar desta influência astral, também recebeu diretamente algumas luzes superiores, como indicam partes de seus escritos; se este autor foi freqüentemente vítima desta baixa influência, que é sempre cega e algumas vezes falsa e corrupta, o que devemos pensar dos outros que estavam sujeitos à influência astral, sem terem as compensações que Milton teve?

O "maravilhoso" é tudo em um épico. A mais alta ordem daquilo que é admirável

Lamento ver nosso eloqüente escritor reprovar Milton e Dante por terem feito das maravilhas o conteúdo e não o mecanismo de seus poemas; como se não houvesse nada maravilhoso senão mecanismos mágicos ou, melhor dizendo, como se tudo não fosse mágico e portanto maravilhoso, desde a eterna fonte original de todas as coisas, até seu completo desenvolvimento em cada região e retorno final ao seu princípio; e como se as maravilhas não fossem portanto, realmente o princípio, o conteúdo e o mecanismo de toda verdadeira obra épica.

Se o poeta escolher como tema, algum fato meramente histórico de ordem terrestre e desejar conectar a ele alguma espécie de maravilha, além daquelas pertencentes as fábulas e contos de fada, não teria outra escolha senão começar a elevar seus heróis ao nível de semideuses, como fazem todos os poetas épicos; então, entrando no espírito do verdadeiro Cristianismo, que faz do homem nada menos que um filho de Deus e uma imagem de Deus, ele poderia, sem antíteses, mas por necessidade, desenvolver todos os maravilhosos mecanismos que constituem a maravilhosa existência de todo ser, desde Deus até aos animais; então, através de sua ação viva e constante manteria a inefável harmonia de todas as coisas. Vendo desta forma, o que os poetas poderiam nos oferecer de mais maravilhoso do que os tesouros ativos do Verbo?

A poesia descritiva

O Cristianismo deu oportunidade ao surgimento da persuasão, como no caso de nosso eloqüente escritor, além de ter sido favorável à poesia descritiva, estendendo a harmonia da religião as coisas naturais. Penso que nisto, nosso escritor tem julgado as coisas mais como deveriam ser do que como realmente são. Os mais distintos autores da poesia descritiva, tem se apoiado mais nas ciências naturais e na preferência pelo conhecimento físico, do que nas causas religiosas.

Por essa razão, a poesia descritiva provavelmente irá contribuir mais para adiar o reino da verdade do que o sistema mitológico da antigüidade. De fato, a mitologia, ao colocar espíritos imaginários em toda a Natureza, apresentou, ao menos, uma imagem dos reais poderes pelos quais a natureza é governada, sob os olhos da Sabedoria Eterna; nossos poetas, ao contrário, pertencentes à torrente, nos oferecem apenas alguns traços do ensinamento religioso, mas não podemos ter a certeza de que isto não tenha sido problemático para eles; descrições físicas e detalhes em abundância é tudo o que nos proporcionam, assim como os especialistas em coisas materiais sempre fazem; é assim que nos aproximam das trevas ao invés da luz.

Há um outro tipo de descrição que parece ser igualmente uma injúria: aquelas dos espertos críticos literários que fazem de tudo para dissecar belas passagens de grandes autores; não posso deixar de dizer-lhes: "se estas passagens são belas em si mesmas, não é necessária a sua ajuda para que eu as aprecie; necessito menos ainda de sua minuciosa análise; teria menos prazer se conhecesse as razões pelas quais tenho tal prazer; você me trapaceia ao esfriar o meu desfrutar, assim como os poetas descritivos da natureza fazem todos os dias, ao apresentarem suas ficções pessoais para as realidades da Natureza"...

As evidências demonstrativas de Deus e da alma. Ateístas e materialistas

Mais uma vez: Antes de mostrar tão entusiasticamente, como faz nosso autor, a preeminência da religião ou do Catolicismo sobre todas as outras religiões, ele deveria começar por demonstrar o verdadeiro e primitivo Cristianismo ou o Verbo; pois me parece que, em suas respostas aos ateístas, ele omite precisamente o que é mais essencial.

A principal dificuldade, na minha opinião, é não provar aos incrédulos a existência de Deus ou da alma, especialmente se as provas são obtidas no Homem Espírito. Muitos filósofos, tomando esta luz como guia, tiveram provas destes dois fatos, com as razões que o secto de ateístas requerem; ou seja, aquelas que mentes positivas podem comparar com o que chamam de demonstrações de A+B.

Não há nada de se admirar nisto, já que, apesar de todos os devaneios de ateístas e materialistas, a única inabilidade que podemos reconhecer em Deus é que Ele é incapaz de Se anular; e a alma do homem, que é Sua imagem, se mostra continuamente em todos os nossos atos, até mesmo no próprio esforço que fazemos para negar.
Mas não são estes dois pontos que confundem o refratário, tanto quanto todo o edifício religioso que se pretendeu erguer sobre esta base; para provar estes dois pontos, não se deve provar as conseqüências positivas que se deduzem deles.

De fato, a razão e a lógica provam meramente a existência de Deus e da alma. O objetivo da religião deve ser o de provar suas relações mútuas e uní-los; esta união não pode ocorrer sem uma cooperação interna de nossa parte, e a ação voluntária de nosso ser.

A simples crença na existência de Deus e da alma não necessita desta cooperação.

Inadequação do ensino comum para a convicção dos Deístas

É mais fácil curar um materialista ou um ateísta do que um deísta. Na verdade, como pode um deísta ser persuadido pela fonte natural da religião, sua utilidade ou necessidade senão mostrando-a como fundamentada na obscura e instável condição do homem caído? Mas como podemos fazer isto, após todos os danos que a filosofia humana tem feito ao homem? Onde encontraremos homens em condições de guiar seus semelhantes desta forma?

Não é de se surpreender, que os esforços diários feitos por parte da religião gerem tão poucos frutos. Vamos confessar de uma vez que, para combater o materialismo e o ateísmo, os que ensinam a religião comum possuem frágeis armas, já que provam Deus somente pelo universo e as almas através de livros teológicos. Como poderiam então provar se não tivessem o universo e os livros?

Estes professores não estudam as coisas eternas; não estudam o Verbo; não estudam a ação universal e nem o porquê de só esta ação gerar a vida. Como então poderiam ver a Fonte Divina do pensamento e do homem imortal? Como veriam a conexão do homem com seu Princípio? Como poderiam perceber o profundo objetivo da religião e nos ensinar a admirar nosso Deus, em Sua organização restaurativa e sublimidade de Sabedoria?

A demonstração que a religião requer. A prova positiva

Resta então, demonstrar diretamente ao refratário o grande lapso ou mudança ocorrida na família humana, além da natureza desta mudança; o auxílio que a Bondade Suprema tem enviado desde o princípio e ainda envia continuamente, para o consolo dos mortais em sua miséria; o caráter deste auxílio ou da religião em geral e por fim, os direitos que os ministros desta religião reivindicam, exclusivamente para dirigirem seus semelhantes e os meios que pretendem adquirir, a fim de dar repouso as almas perturbadas e permitir que cumpram as leis do Criador.

Ora, os filósofos religiosos não tem provado estes importantes itens por A+B, como provam outros; ainda, se tudo isto é verdadeiro, eles também precisam ter suas próprias provas positivas, já que todas as coisas devem fazer suas próprias revelações.

Estas provas devem tomar um novo caráter, na medida em que o objetivo se torne mais substancial e empregue um grande número de nossas faculdades. No entanto, não devem depender mais da vontade do homem do que de Deus e da alma; nem tampouco devem se apoiar em expressões literais; menos ainda nos ensinamentos dogmáticos de terceiros; devem gerar suas próprias evidências em si mesmas.

A matemática intelectual

Nosso eloqüente escritor tinha conhecimento de que há uma geometria intelectual e qualquer coisa que possa ser dito, ainda acredito que esta geometria intelectual era mais familiar a certos filósofos da antigüidade do que a Leibnitz, Descartes, Newton ou mesmo a Pascal, que chegou mais perto dela do que os outros três.

Assim, se existe um A+B para provar a existência de Deus, e a imaterialidade do Homem Espírito, deve haver um A+B para provar nossa degradação e consequentemente a religião, que é seu remédio; da mesma forma deve haver um A+B para provar a eficácia deste remédio, que não pode deixar de ser específico; se a vontade de seres livres pode neutralizar esta degradação em relação a si próprios e evitar sua operação a favor deles, não podem evitar que opere contra eles. Ora, todos estes tipos de provas, embora diferentes umas das outras, devem ser positivas em si mesma.

Provas positivas racionais, emocionais e experimentais

A primeira destas provas, ou aquela que objetiva a existência de Deus e do Homem Espírito, pode ser chamada de prova positiva racional e intelectual; isto porque pertence, de fato, à simples reflexão e ao raciocínio.

A segunda, que se refere à nossa degradação e portanto à religião, chamaremos de prova positiva sentimental ou emocional, porque requer, necessariamente, que o homem coloque em ação uma nova faculdade, além daquela do julgamento; assim como uma faculdade médica torna um homem consciente de que está atacado por uma grave enfermidade, causando-lhe uma inquietude e um alerta sobre o perigo em que se encontra, aponta, ao mesmo tempo, o remédio que pode lhe ser útil; embora, para conhecer e possuir a ciência médica, o estudante precise apenas fazer uso de sua razão.

Finalmente, a terceira prova, cujo objetivo é demonstrar os poderes dos ministros da religião, além da superioridade e eficácia da religião em si, chamaremos de prova positiva experimental; isto porque é uma questão de fatos; também porque tendo adquirido todas as nossas faculdades, ela confirma as duas provas precedentes, a prova positiva sentimental e a prova positiva intelectual. Se invertermos estas provas ou empregarmos apenas uma onde todas são necessárias, como podemos esperar que os adversários se submetam?

Não é muito difícil, como tenho afirmado, demonstrar a necessária e exclusiva supremacia do Ser Superior, assim como nossa conexão fundamental com Ele; sem esta conexão não poderíamos mais do que questionar Sua existência e nem mesmo pensar Nele.

De fato, só podemos chamar de Ser Supremo aquele que é superior a ponto de nenhum outro poder superá-lo ou nem mesmo se igualar a ele. Ora, neste sentido não há nada mais elevado que Deus, pois Ele sendo tudo, é impossível para qualquer outro ser, não só nunca excedê-lo em grandiosidade, como nunca se igualar a Ele. Por esta razão, após Deus, toda grandiosidade é relativa; para nós, tudo é apenas proporcional; contudo, ao mesmo tempo, e pela mesma razão, precisamos ter sido contemplados com alguns meios positivos de demonstrar Sua influência generativa em todas as criaturas, e Sua influência restauradora em nós mesmos; é necessário ainda, mostrar, através do próprio fato, e não através de livros, a exclusiva supremacia do Ser dos seres e as efetivas relações que o Verbo busca continuamente estabelecer conosco.

Sublime é Deus e aquilo que nos conecta a Ele

Esta idéia foi, sem dúvida, a que me levou a dizer na obra "O Homem de Desejo" versículo 166 (pág. 164), que "o sublime é Deus e tudo o que nos põe em relação com Ele". Tive esta compreensão após ouvir um célebre Mestre dizer que o sublime era indefinível.

Desde então tenho lido as obras deste Mestre: "aquilo que é belo, grande, forte, admite ou mais ou menos; o sublime não", etc.

Percebo que nossas idéias coincidem, com exceção de que estou convencido de que aquilo que acreditamos sobre o sublime se estenda a outras qualidades, virtudes, etc.; que ele exclui; pois, em Deus só estas coisas são positivas e o Verbo é o proclamador universal destas sublimidades positivas.

Devo acrescentar aqui uma importante observação. Nada pode realmente nos parecer sublime, senão nos comunicar um extrato daquilo que se passa na região Divina superior, que é a fonte de toda a sublimidade, a fonte de tudo. Augustus nos cativou ao dizer "Cinna, vamos ser amigos, sou Eu que te peço": porque esta é a linguagem positiva e constante da Verdade Eterna para com o Homem; e o mesmo pode ser deduzido de todos os outros exemplos do sublime, tanto em palavras como em ações.

Elas nada fazem senão levantar o véu e abrir o inexaurível foco de todos os sublimes atos e pensamentos onde nosso ser possui suas raízes. Ora, se despertarmos em relação a esta região a ponto de ouvir sua linguagem falada, já que esta é a linguagem da própria natureza do Homem, não é de se surpreender que ela nos encante.

Vemos Deus em todas as coisas

Sobre este princípio, que mereceria ser tratado ad hoc e é capaz de ser estendido ad infinitum, por causa do infinito número de assuntos que envolve e de testemunhas que depõe a seu favor, podemos compreender o motivo que levou Malebranche afirmar: "vemos tudo em Deus"; contudo verificamos que sua idéia poderia ser expressada de outra forma menos gigantesca, que se não simplificasse, ao menos traria maior riqueza à nossa frágil mente e a faria brilhar com uma luz mais suave do que aquela chama ofuscante que a cega. Esta forma mais simples seria: "vemos Deus em todas as coisas". Na verdade não deveríamos ver nada em qualquer objeto que seja, se o Princípio de todas as qualidades, ou seja, Deus, não se movimentasse ativamente nele, tanto por Ele próprio ou por Seus poderes.

Assim, corpos sonoros não têm som algum, se privados de comunicação com o ar; este deve necessariamente penetrá-los a fim de que emitam um som. Pela mesma razão, podemos dizer que o som propriamente dito não seria sensível ou manifesto a nós, se não houvesse um som gerativo universal em todo som parcial; esta é a verdadeira razão pela qual a música tem tido, sempre, tanto poder sobre os homens.

Os diferentes agentes do sublime; O Cristianismo é o maior deles

Os diferentes exemplos do sublime, ou a parcial percepção do foco gerativo universal que nos atinge, nos leva muito além daquilo que nos mostra.

Portanto, de todos os meios oferecidos, a fim de apreciarmos o sublime, nenhum é mais sublime que o Verbo, ou o verdadeiro Cristianismo; o Verbo é nada menos do que nossa exata união com o Espírito e o Coração de Deus; podemos tirar dai uma prova direta de que o Cristianismo é Divino, já que se conhece a árvore pelos seus frutos.

Porém, este fruto só pode ser adquirido através da experiência, ou seja, seu A+B. Este fruto não pode ser garantido completamente pelo intelectual A+B do raciocínio.

A simples estimativa do sublime

Ao mesmo tempo, a admiração que os literários e retóricos demonstram por aquilo que consideram sublime, me confirma que estes galanteadores espíritos habitam uma região inferior e que quando se deparam com idéias ou expressões um pouco mais elevadas que o usual, experienciam uma impressão que preenche seu vazio usual e parece os elevar ao degrau mais alto do sublime; isto tudo ocorre por causa da constante privação em que se encontram nas estéreis regiões que habitam.

Se conhecessem a verdadeira região sublime, para a qual o homem foi feito, reduziriam ao seu devido valor, todos aqueles exemplos particulares do sublime, diante dos quais chegam ao êxtases e que consideram como uma brincadeira de criança; sobre este assunto, basta reportálos aos profetas.

A inconsciência dos homens de letras. A literatura humana, uma cilada quando mal aplicada

Sabemos o que podemos esperar destes homens de gênio com relação a estas provas positivas e experimentais das quais tenho falado. Colocam num mesmo nível aqueles que se dizem ateístas e aqueles que, embora à sua maneira, se tornaram iluminados, profetas, taumaturgistas a partir da vaidade, orgulho ou curiosidade. Dizem que qualquer paixão forte pode dar à mente um traço de loucura. Por um acaso, não sabemos, além disso, o que dizem sobre o espectro de Atenas e sobre o fantasma de Athenodows, duas narrativas das quais riem ao verem que são levadas a sério por Pliny? Eles acreditam que estas narrativas deveriam ser tomadas como originais de estórias de fantasmas, repetidas e forjadas muitas vezes e de diferentes formas; acreditam que ninguém mais pode relatar, com tanta fantasia, o que acreditam que nunca aconteceu.

Oh, eruditos e eloqüentes, que tomaram a posição de governantes do mundo, estou longe de pretender argumentar com vocês estas questões, mas diria que, com esta condição de instrutores de nações, comecem a aprender questões de justiça. Suas afirmações sobre fatos, a favor e contra, teriam mais peso; até lá veremos suas afirmações como meras opiniões imaturas, que podem ser tanto fantásticas como verdadeiros fantasmas; com isto podemos julgar que progresso podem ter feito no curso da filosofia divina, do verdadeiro Cristianismo, ou no Ministério do Verbo, que é a mesma coisa.

Vou repetir porque reprovo os literários, em especial os religiosos. É que se prendendo, como normalmente fazem, pelos seus dons naturais ou pelos seus esforços, à região da verdade, dissipam os tesouros que lá encontram na medida em que os aplicam numa região inferior; eles reduzem os domínios do Verbo à arte de descrever e escrever graciosamente e com regularidade. Assim, sacrificam continuamente a substância, que não conhecem, por causa da forma.

Isto é o que me leva a dizer que a literatura humana em geral é uma armadilha do inimigo; ela é usada por ele com grande propriedade a fim de atrasar os homens em sua marcha, enquanto os fazem acreditar estarem bem adiantados como de fato estão, dentro de sua arte, além dos mortais ordinários.

Os pensamentos e as palavras do homem são espadas afiadas e sucos corrosivos, dados a ele para quebrar e dissolver as substâncias infectadas à sua volta. Quando o homem falha em usar estas armas para este específico propósito, elas o corroem e o destroem, já que não podem permanecer inativas. Desta forma a ação é vital para o homem; esta ação lhe traz muitos benefícios se aplicada na obra ativa do Verbo, que é o verdadeiro Cristianismo.

Vamos agora nos remeter àqueles que por terem sido chamados, são especialmente encarregados do Ministério do Verbo.

O que tem feito os Ministros do Verbo? Tem, por um acaso, assegurada a chave do conhecimento?

Vocês ministros do Verbo, pensam que estão livres de reprovação? Vocês, que colocaram o Verbo sob tutela e que enfraqueceram sua vigilância e não enriqueceram a si próprios; não caberia aqui dizer que, se nada obténs do Verbo é porque o reivindicaram para nada? Se o reivindicou para nada é porque pensam que já têm tudo.

Será que vocês não tem degradado o Verbo, ao reduzirem a sua administração a instituições simbólicas, sermões e pompas exteriores; ao não nos oferecerem nenhum dos maravilhosos frutos de Seus férteis domínios; e ainda ao nos ensinarem que o tempo das maravilhas do Verbo já passou? Como se este Verbo fosse decrépito e como se a sua necessidade de Seus frutos não fosse tão urgente desde seu preceito, assim como era antes e como será até o fim de todas as coisas.

Não teriam vocês feito a este Verbo aquilo com que o Salvador reprovou os judeus, a saber, tomar a chave do conhecimento e não só não penetrá-lo, mas impedir aqueles que poderiam fazê-lo? Vocês nunca paralisaram a obra de Deus ao reprimirem homens de fé e de desejo, que, através de seus dons e sua luz, deveriam ter se tornado servos do Senhor?

Podemos ver o que a indústria humana produz com as matérias primas da natureza, através das esplêndidas descobertas da Ciência.

Nunca te surpreenderam o grande número de prodígios que o homem poderia ter esperado de sua alma se, ao invés de contrair seus movimentos e mantê-la amordaçada, ele tivesse seguido suas Divinas aspirações e aberto a ela as sublimes regiões da liberdade onde nasceu?

Vocês nunca forçaram, através de suas instituições, o Redentor a voltar ao templo, cuja destruição ele havia proclamado anteriormente, e onde ele nunca mais voltou depois de sua ressurreição, embora, após este evento, tenha aparecido freqüentemente aos seus discípulos?

Será que vocês nunca anularam os meios de cura para a alma humana, ao dizerem ao homem que destrua o velho homem de dentro de si, sem ensiná-lo como fazer para que o novo homem nasça? isto nada mais é do que a renovação do pacto Divino; renovação que se deve seguir efetivamente por todos os meios que estiverem em seu poder .

A razão mundana e a razão correta não devem ser prescritas da mesma forma

Vocês nunca agiram como aqueles pobres, místicos e espiritualizados instrutores, que nos proíbem de caminhar de acordo com a razão?

Mas por que nos proíbem de agirmos de acordo com a razão? É porque não perceberam que, se há uma razão humana contrária à Verdade, há uma razão humana a Seu favor; Eles são sábios e prudentes ao proibirem a primeira; de fato, é inimiga de toda Verdade; isto é facilmente verificado pelas injúrias cometidas contra a Verdade, pelos doutores nas ciências materiais; tudo isto é, ao mesmo tempo, os objetos e os resultados de uma mera razão mundana. A principal propriedade deste tipo de razão é, temer o erro e desconfiar da verdade: sempre preocupada em examinar provas, ela não dá tempo à mente de saborear as doçuras da vida e está sempre desconfiada, o que evita provar a verdade e jamais a alcança.

Isto é o que leva sociedades instruídas a desacreditarem, após terem sido mantidas por tanto tempo na dúvida.

Contudo, estes doutores deixam de ser sábios e prudentes quando nos proíbem de usar o segundo tipo de razão, pois esta, ao contrário é a defensora da Verdade. É o olho penetrante que a descobre continuamente e busca unicamente desvendar suas riquezas; seria um crime não seguí-la, já que este dom tem sido apresentado a todos os homens, com uma única intenção, que é a de que façam uso dela; o Senhor sabe que apresentar esta razão, humildemente, ao foco universal de Luz, seria o suficiente para nos instruir e nos levar a todas as coisas.

A luz da Verdade é a própria evidência. A convicção em si é irrefutável. A fé cega

Como poderia o Regente Supremo esperar que acreditássemos Nele e em todas Suas maravilhas, se não tivéssemos, essencialmente, os meios necessários para descobrir estes poderes?

Sim, a Verdade seria injusta se não fosse escrita clara e abertamente diante dos olhos da mente do homem. Se a Verdade Eterna deseja que acreditemos Nela, é porque nos é dada a fim de que tenhamos segurança, a cada passo de nossa existência; não se deve acreditar simplesmente por testemunhar as declarações dos homens, inclusive dos ministros desta mesma Verdade, mas através da evidência direta, positiva e irrefutável.

É possível, às vezes, inserir a fé nas mentes dos prosélitos, contudo, o quão útil ela será para eles, esta muito longe da certeza que repousa sobre a evidência. Não é incomum encontrar homens de fé, sobre a qual podemos exercer algum domínio; não é difícil, até mesmo, dizerem por este mundo, que nada é mais fácil do que crer; alguns homens até fingem poderem acreditar no que quiserem.

Chamo isto de fé cega, porque consiste em descartar o universal e considerar apenas um ponto. A fé cega dispensa qualquer comparação e para este tipo de crença, quanto mais entrarmos em minúcias mais prontas as pessoas estão a acreditar; isto explica o fanatismo do supersticioso, que está na exata proporção de sua ignorância.
Isto não pode ser dito com relação àquela certeza, oposta à fé cega, porque podemos chegar a esta certeza apenas na proporção em que nos elevemos em direção ao universal ou a totalidade das coisas; quando comparamos coisas em sua totalidade, e lá descobrimos a unidade ou universalidade da lei, se torna impossível não ter a certeza. De fato, esta certeza é oposta à fé cega, porque está na proporção direta de nossa elevação e conhecimento.

Assim, admito que nada é mais fácil do que acreditar, mas não é tão fácil ter a certeza! Homens do mundo, de tempos em tempos, lançam propósitos especiais que acreditam serem decisivos, porque ninguém pode respondê-los. São como reações químicas que introduzem em nome da verdade e através dos quais tentam precipitá-la ao fundo do recipiente. Contudo, vemos que não é impossível que seus subterfúgios escapem.

Em geral, os homens mergulham na fé cega, na dúvida ou até no ceticismo, apenas porque não vão além das imperiosas e obscuras opiniões dos homens, de seus sistemas incoerentes e paixões; em uma palavra, porque olham apenas para os homens onde tudo está em oposição e é diverso. Se considerassem o homem, lá encontrariam a raiz de todas as virtudes, toda luz e harmonia; lá, veriam o próprio sistema Divino e se encontrariam em tal uniformidade de princípios e certezas, que logo se tornariam uma única mente. De nossas duas razões humanas, portanto, não descartemos aquela que tem o poder de reter a Verdade.

A estimativa das Escrituras sobre a compreensão: Os Místicos.

Aqueles que lerem as Escrituras verão como valorizam a compreensão; como ameaçam negar esta compreensão àqueles que se desviam do caminho correto, prometendo esta luz somente aos que amam a verdade. É nas Escrituras que irão ver como os eleitos de Deus, encarregados de proclamar a Sua Palavra, reprovaram o povo, os ministros da religião e indivíduos que, da mesma forma, negligenciaram de fazer uso da compreensão, razão Divina ou discernimento que nos é concedido apenas para separarmos, continuamente, a luz das trevas, assim como faz o Próprio Espírito de Deus.

Aqui então, você vê, oh ministros das coisas santas, o que é a obra, cuja Verdade tem o direito de esperar de vocês. Leve em conta, se quiser, o caminho que respeitáveis místicos tem tomado. Mas não seja um daqueles tímidos beatos que nos proíbe o uso da luz que o homem tem recebido através de sua natureza. Não é difícil encontrar alguns destes místicos, homens e mulheres, que descrevem, maravilhosamente, o mais perfeito estado das almas e até mesmo as exatas regiões ou impressões através das quais o verdadeiro servo do Senhor têm que passar.

Estes místicos parecem ser chamados a estas regiões apenas para descrevê-las, sem terem a vocação ativa de verdadeiros administradores; eles vêm a terra prometida mas não a cultivam; outros a cultivam sem vê-la; estes deveriam temer o risco de distraírem suas mentes ao parar de contemplá-la; tal é a ânsia de tornar esta terra frutífera. O posto destes místicos não está em regiões parciais ou particulares. Isto se comprova levando-se em conta a natureza do desejo.

A natureza do desejo: o princípio do movimento

O Desejo resulta unicamente da separação, distinção entre duas substâncias, análogas em suas essências e propriedades; o ditado "não devemos desejar o que não conhecemos" é prova de que quando desejamos algo, é necessário que haja em nós uma porção deste algo, que portanto não pode ser considerado como desconhecido de nós. Também é certo, como sempre digo, que todo desejo se empenhe em manter aquilo que o atrai, como se pode verificar em qualquer coisa que tomemos como exemplo; o desejo, ao mesmo tempo, reprova nossa idolatria, revive nossa coragem e condena aqueles que o reprimem.

Posso acrescentar, que o desejo é o princípio de todo movimento e consequentemente é incontestável o fato de que movimento e desejo possuem uma relação de proporção; desde o Primeiro Ser, que é o primeiro desejo, o Divino Um ou desejo Universal, é também o motivo do próprio movimento. A pedra não tem movimento pois não tem desejo.

A alma do homem receptáculo e envoltório do desejo de Deus. A alma pode conhecer todos os desejos de Deus

Devo dizer também, que cada desejo atua em seu próprio envoltório ou domínio, para se manifestar; quanto mais elevado o plano mais suscetível estará o envoltório de sentir e participar do desejo, ali contido; o motivo pelo qual o homem pode ser admitido ao sentimento e conhecimento de todas as maravilhas Divinas é que sua alma é o próprio receptáculo e envoltório do desejo de Deus.

O esplêndido e natural destino do homem é somente desejar aquilo que real e radicalmente produz todas as coisas. Este é o desejo de Deus: qualquer outra coisa que atraia o homem o tornará seu joguete ou escravo, não é isto que o homem deseja. Então, a máxima de seu ministério é não agir real e radicalmente, exceto sob a autoridade que seja equilibrada, boa, consistente, efetiva, esteja em conformidade com o Desejo Eterno e que é positivamente comunicada a ele a cada momento. Todo e qualquer outro comando que receba diariamente, é provocado por ele mesmo a partir de interesses próprios e, às vezes, a partir do orgulho, muito mais como soberano do que como servo. Desta forma quase que em todo o mundo, os servos se colocam no lugar de seus mestres.

Não posso negar aqui que o desejo Divino que se faz sentir na alma do homem, tenha por objetivo estabelecer o equilíbrio entre a alma e Deus, já que o desejo surge da separação de substâncias análogas que querem estar unidas. Este equilíbrio não é uma morte ou efeito inerte, mas um desenvolvimento ativo das propriedades Divinas que constituem a alma humana, visto que é um extrato Divino universal.

Mas se estas noções foram extintas da alma humana, cabia a vocês, ministros das coisas santas, revivê-las nestas almas: se este desejo foi enfraquecido, cabia a vocês fortalecê-lo, mostrando ao homem todas as suas vantagens.

Que papel magnífico é este de vocês, trabalhar a fim de realizar, neste plano elevado, a reunião do que está separado e desejoso de si mesmo! Pode-se ver que até um mero desejo animal, como a fome, tem por objetivo estabelecer o equilíbrio entre nossos corpos elementares e a Natureza; tudo para que sejam capazes de manifestar e cumprir todas as maravilhas elementares ou propriedades corporais com os quais a natureza os fez, visto que são um extrato da Natureza. O que então não poderíamos esperar deste desejo, num outro plano, e daquela vontade sagrada da qual o Altíssimo compôs nossa essência?

Ouça, oh Homem! Seu corpo é uma contínua expressão do desejo da natureza, e sua alma é uma contínua expressão do desejo de Deus. Deus não pode estar um só instante sem desejar algo, Ele não pode ter um só desejo que você não possa conhecer, já que você é quem deve manifestá-los. Tente, então, estudar continuamente os desejos de Deus, para que um dia não seja tratado como um servo improdutivo.

As dificuldades de nossa reunião com Deus

Há uma razão mais elevada, para que nossa reunião com Deus, de quem estamos separados, se faça tão trabalhosa; esta razão, explica porque somos obrigados a agir de forma vigorosa e perseverante, a fim de alcançar a Deus, ela se baseia em duas dificuldades:

A primeira é que, desde a grande Queda estamos em uma verdadeira prisão, nosso próprio corpo, o qual deveria ter servido como proteção; além disto, a maioria dos homens ao invés de aliviarem o peso de seus impedimentos, a fim de fazer uso do melhor de suas habilidades e mecanismos, colabora para que suas almas se tornem da mesma natureza de suas prisões; para isto basta se materializarem como fazem a cada dia. Assim, se a alma humana está transformada numa prisão, podemos fazer uma idéia de sua lamentável condição.

A segunda dificuldade, possui um peso enorme, pois Deus, como todos os outros seres, se concentra em Si próprio; através de Sua própria atração central Ele tende, continuamente, a dirigir-se para Si próprio e a se separar de tudo o que não seja Ele; através deste mecanismo, Ele faz de Si próprio um mundo aparte, fechado em Seu próprio Envoltório Esférico Universal; vemos esta forma ser tomada por todos os mundos particulares e todos os corpos abaixo dos glóbulos de água e mercúrio, que também tomam esta forma de envoltório.

Mundos a serem conquistados: o específico para tal realização

Ora, como estamos confinados pelo pecado, num mundo que não é Divino; como, além do mais, através de nossas profanações, ilusões e ignorância, criamos para nós mesmos um mundo ainda menos Divino, podemos fazer uma idéia que esforços não serão necessários para cancelar estes mundos falsos, pesados e de trevas que nos circundam, para conseguir uma abertura no mundo Divino; penetrar o mundo Divino é tão maravilhoso quanto necessário. Os grandes esforços exigidos de nós para este trabalho podem ser imaginados, se pensarmos que todos estes mundos, concentrando-se em si mesmos, cada um em si próprio, tendem a se separarem um do outro continuamente.

Ainda assim, não devemos perder a coragem, pois este mundo Divino, que tende a se concentrar em si próprio, também tende a se universalizar, porque é tudo, ou ao menos, deveria ser tudo; este é o seu direito. Desta forma, nosso trabalho, bem compreendido, deveria ter por objetivo atenuar todos estes falsos mundos com os quais nos rodeamos incessantemente e permitir que se dissolvam; o universal ou o mundo Divino, tomaria então, naturalmente o lugar deles, já que todos os lugares a ele pertence; estes resultados seriam tanto imediatos como simples, já que estaríamos em conformidade com o próprio Mundo Universal.

Ora, o que seria específico para realizar esta obra maravilhosa de atenuar os falsos mundos que nos rodeiam ou que criamos para nós dia a dia e abrir o mundo Divino que de bom grado tomaria seu lugar? Pergunto mais uma vez. Não cabia a vocês, ministros das coisas sagradas, nos ensinar e provar que aquilo que é específico consiste nas virtudes do Verbo? Sim, o Verbo Eterno ergue sua voz e atua apenas para exterminar estes mundos de ilusões, estes Titãs que atacam o céu diariamente e para fazer com que o mundo real e Divino reine sobre tudo, já que o Verbo é o órgão e o princípio deste mundo real e Divino.

Auxílios dados ao homem: a grande eficácia destes auxílios

Eu sei que os obstáculos são inúmeros, as dificuldades imensas e os perigos quase que incessantes; contudo, os auxílios existem e são de todos os tipos, garantidos universalmente ao homem, a fim de que se defenda em qualquer lugar, alcance a vitória e cumpra toda a intenção de seu ser, sem que o inimigo consiga coisa alguma além da vergonha.

Embora desperdicemos nossas palavras diariamente em inúmeras ocupações secundárias e com questões inferiores que estão longe de contribuírem para nosso avanço no verdadeiro Ministério Espiritual do Homem, ainda assim, se não excedemos a medida de nossas vontades ou não nos afastamos da justiça, estas ocupações podem ser úteis a nós como protetoras.

De fato, as numerosas diversões, afeições e atrações que se apresentam diariamente na vida, seja física, social ou política, são muitos auxílios que se apresentam, a fim de nos deter à beira de nossos precipícios; sem eles nossos espíritos poderiam ali mergulharem a qualquer momento. Há tantas barreiras e estacas ao longo da margem destes precipícios, perto das quais caminhamos durante nossa passagem através deste mundo inferior.

Não há um momento da existência que não recebamos tal apoio, a fim de nos tornar capazes de atravessar as trevas infectadas sem passar pelo terrível desgosto e intolerante amargura que ela nos reserva. Assim, quando o homem se permite cair no crime, ou em meros atos de fraqueza é porque, com certeza, não fez uso adequado destes auxílios; pois na verdade, ele estava rodeado de tudo o que era necessário, se não para avançar, ao menos para não cair.

Sem atingir, aqui, estes sublimes princípios da moralidade, cujo ensinamento é, antes de nos render as ilusões devemos olhar para nós mesmos e encontrar uma obra útil a qual possamos nos dedicar; vemos, ao menos, que aquilo que advém da moralidade nos ensina a afastar a inércia, seja do corpo ou da mente; compreendemos porque geralmente há menos corrupção entre homens que trabalham do que entre os que vivem na preguiça e inatividade; vemos também, porque há menos insanos entre aqueles que se preocupam do que entre os negligentes; menos entre aqueles ocupados com assuntos materiais e naturais do que entre aqueles empregados em obras da pura imaginação; e porque, finalmente, há menos dedicados as ciências demoníacas entre os simples e trabalhadores do que entre os grandes e inativos.

Cada auxílio e suprimento além de ser uma defesa contra o inimigo, pode, ser usado zelosamente, com uma intenção pura de nos conectar, de acordo com nossa proporção, com aquele deleitável magismo que a Verdade carrega consigo e que Seu Verbo filtra em todo lugar, embora não tenhamos conhecimento disto; desta forma, ao nos impregnar com seus sumos vivificantes, por um lado, e proporcionar invisibilidade e distância do inimigo, por outro, estes auxílios nos transmitem segurança e felicidade em todo lugar, neutralizando a amargura, sempre pronta a quebrar nossas alegrias.

Não há estado ou situação na vida a que esta doutrina não se aplique. Situações dolorosas e prazeirosas podem, da mesma forma, encontrar aqui suas prescrições e o regime adequado a cada caso; pois os estados agradáveis possuem suas desvantagens, assim como os dolorosos; diria que são ainda maiores e portanto têm maior necessidade destes suprimentos e possuem maior necessidade de estar sob vigilância.

O próprio Verbo está com estes auxílios

O Verbo está, sempre unido secretamente a estes auxílios, todos devem manter uma participação em sua ação vivificante. Portanto, ao nos preservarmos da inatividade do espírito durante os estados agradáveis e da preguiça do corpo nos estados dolorosos, é provável que consigamos nos conectar com o Verbo e quem sabe nos tornarmos, naturalmente, seus ministros.

O Verbo Eterno passa incessantemente da morte à vida, para nós. De fato, este é seu modo de existência; Ele é em si, um prodígio contínuo, sempre nascendo sob nova forma; isto porque o Verbo age em todo lugar e continuamente, desta maneira e com este caráter; Ele difunde, em todo lugar, a mesma impressão ativa e característica em tudo o que faz e em tudo o que é, seja visível ou invisível.

Esta é nossa bússola, receptáculo, porto, nossa cidade de refúgio. Deixemos que Ele nos guie, em espírito e em ato; vamos nos unir a Ele e Ele nos fará nascer da morte para a vida, em todo lugar, através Dele e com Ele; o Verbo nos fará participar em Sua propriedade de ser um contínuo prodígio; então, o inimigo será obrigado a nos deixar passar sem impor nenhuma taxa, nem a nós e nem à nossa felicidade presente ou futura.

Os auxílios sensíveis do Verbo levam ao "melhor estado possível" aqui embaixo

Não precisamos mais indagar o que aguarda o homem bom, mesmo aqui na terra, quando cumpre pontualmente e com resignação os decretos que o condenam a lutar para conquistar. O que o espera é nada menos do que os auxílios do Verbo, já que isto é o que teria desfrutado se fosse fiel ao pacto Divino. É verdade que, se a conduta do homem fosse sábia não haveria dúvida da existência de um estado anterior de perfeita ordem, que poderia ser chamado de um primitivo "melhor estado possível" (otimismo). Contudo, o homem ainda pode descobrir à sua volta um "melhor estado possível" de uma ordem secundária, que o preencheria de consolo durante provas e sentimentos de dor.

Porém, se normalmente a base fundamental de nosso ser nos inclina ao desejo de crer, seja por necessidade ou convicção, num otimismo primitivo, onde tudo era bom, fica difícil acreditar num otimismo secundário, quando vemos tanto mal à nossa volta. Para que questionar sobre o que aguarda o homem bom se basta abrir os olhos para a fonte da vida e do amor que sempre nos busca em nosso abismo; somos obrigados a confessar que, se não aprendermos a conhecer este otimismo secundário nunca iremos conhecer aquele que é primitivo.

Com o desejo de distinguir entre estes dois tipos de otimismo, os racionais ou melhor, irracionais, têm-se especulado demais sobre o bem e o mal. Todos nós descendemos do otimismo primitivo; temos a tendência de voltar a ele, mas não nos damos tempo para a jornada; apesar da inconsistência, persistimos em pensar que já chegamos enquanto que na verdade estamos apenas a caminho. Apesar de termos desviado enormemente do otimismo primitivo, ainda é possível percebê-lo e vê-lo vir à luz em todo lugar, através do otimismo secundário. Acontece que o Verbo Divino ainda abre em nós o portão da Divindade, ou seja, da santidade, da Luz e da verdade. O inimigo também tem uma palavra, mas ao pronunciá-la, ele abre apenas o portão em si próprio. Quanto mais ele fala, mais se infecta e como está sempre pronunciando as palavras da falsidade está sempre se infectando. Ele nada mais faz do que derramar seu próprio sangue venenoso e bebê-lo. Este é seu trabalho perpétuo.

Os três graus do Verbo que são dados ao Homem.

Uma palavra pura foi restaurada ao primeiro homem depois do crime; uma ainda mais gloriosa e triunfante foi restaurada no curso dos tempos; qual será então aquela a ser restaurada no final dos tempos, quando o próprio Verbo se manifestará na plenitude eterna de sua ação?

Vemos aqui que tudo é amor; o Verbo é o contínuo e universal hino do amor, preenche todos os caminhos do homem com progressões suaves, apropriadas a cada grau de sua existência. É por isto que, para a alma humana, tudo começa pelo sentimento e afeição, é assim que tudo deve terminar também.

A compreensão ou inteligência só se abre depois que o ser interno tenha experimentado os primeiros sentimentos de sua própria existência. Isto ocorre na época em que o homem começa a pensar e sente que um novo centro nasce nele; esta é uma sensação moral que não se conhecia antes. A inteligência não dá muitos sinais de sua presença antes da abertura do centro moral.

Numa idade mais avançada, o fluído vital se eleva à região da compreensão, é quando o homem mais tem a necessidade de guardiões que orientem seu curso e o preserve dos perigos de sua impetuosidade; sem tomar os devidos cuidados, o centro moral pode ser rapidamente obscurecido ou deteriorado. Isto ocorre com aqueles que colocam idéias antes da moral, idéias estas dependentes totalmente deles, ou de sensações e objetos externos.

Por outro lado, se este centro moral de sentimento e afeição adquire prioridade, por direito natural, é certo que tudo deverá retornar a ele afinal. Veja como o alimento cumpre seu objetivo e como nos é útil apenas enquanto seus sumos e propriedades são conduzidos ao sangue, foco da vida.

É preciso reconhecer que todos os flashes de inteligência que o homem adquire pelo raciocínio, podem ser usados apenas até que ele penetre o foco moral, para onde traz todas as propriedades que possuí. É um tributo e uma reverência que o homem deve render à sua fonte, chegando assim, a ser a testemunha da natureza de suas relações com a fonte. Em resumo, a compreensão pode nos auxiliar a reconhecer os frutos do otimismo secundário que nos rodeiam abundantemente, mas o princípio moral nos permite alimentar os princípios do otimismo primitivo: tais são os serviços que os administradores do Verbo devem nos prestar.

O Demônio deixará de ser mau?

Os pensadores, que acreditam na fonte universal do amor, podem assim, conceber como todas as coisas devem terminar para o Homem de Desejo: no Amor e no Verbo. Verão também porquê este mundo material não pode durar para sempre: porque é apenas uma imagem, ativa, sem dúvida, mas sem amor, sem fala ou palavra; isto significa que ele um dia deve retornar ao Amor e ao Verbo, dos quais está separado pelo crime.

Se estendermos isto ao inimigo de toda verdade, a própria causa do desvio do universo e de seu ser, ficando exilado do Amor e do Verbo, é preciso observar que, infelizmente, este inimigo não está sem fala; esta é a razão pela qual ele produz seus próprios desvios e exílio.

Além disso, aqueles que pregam o retorno final deste ser culpado, não refletem sobre o quão impossível é ter alguma idéia positiva sobre estas grandes questões aqui na terra. De fato, por mais maravilhoso e profundo que seja o conhecimento que adquira a respeito das regiões Divina e infernal, ainda assim, enquanto o homem estiver sob a forma material, ele pode aderir tanto ao Princípio de Deus, ou ao que chamamos o céu dos céus, ou ao capeta, ou ao que chamamos o inferno dos demônios. O objetivo de nossos corpos é ao mesmo tempo, o de nos manter privados de Deus, e de servir como defesa contra o mal.

A verdadeira base de julgamento do homem é que, sem ser Deus ele é, no entanto, um ser universal; como conseqüência o homem não pode sentir um único ponto de seu ser sem se encontrar, como imagem e semelhança, num universal bem ou mal. Pode-se dizer também, que é esta idéia de universalidade que o induz a salvar tão prontamente todos os pecadores; o homem não percebe que, mesmo se houvesse apenas um homem salvo, a idéia de misericórdia que ele venera, ainda seria válida, porque não há um só homem que não seja uma universalidade.

Destino e predestinação

Por outro lado, o homem tem mergulhado em emaranhados labirintos quando o assunto é predestinação. Mas, vocês administradores das coisas sagradas, não deveriam salvá-lo disto, mostrando-lhe a diferença entre destino e predestinação?

Parece que o destino só é tomado num bom sentido, enquanto que predestinação tem duas faces. Deus sempre dá um destino aos homens e, neste sentido, tem havido eleitos de todos os tipos; contudo Ele não dá predestinação alguma porque, em sua aceitação mais favorável, esta palavra implica numa espécie de coação que prejudicaria a liberdade; em um sentido oposto, a palavra implica numa espécie de fatalismo, o que pareceria contrário à justiça.

Esta palavra é um abuso. Deus pode ter dito a muitos: "Eu te escolhi do ventre de tua mãe" e "antes que o mundo existisse", mas foi o espírito do homem que revestiu esta eleição com a palavra predestinação; a fraqueza alterou ainda mais o seu significado e o fanatismo a adulterou.

O Homem, desde sua origem, deveria ter afirmado estar predestinado a manifestar o Ser Divino; ele ainda não o manifestou. Desde sua queda, quando é chamado à obra, ele apenas retorna seu destino original; neste caso ele está, comparativamente, num nível mais elevado que seus semelhantes, apesar disto ele volta apenas à linha primitiva da qual nunca deveria ter se desviado; portanto não aparece sob o nome de predestinado, no sentido que normalmente sustenta, pois está muito abaixo do que estaria se permanecesse em sua glória e muito abaixo do que estará no fim dos tempos, se chegar lá regenerado.

O Poder do Homem sobre Deus

Ao invés deste desencorajador sistema de predestinação, será que vocês não poderiam ensinar que o homem pode, através de seu amor, de certa forma, governar a Deus?
O impetuoso não percebe que Deus é guiado, não só por nossas vontades, mas também por nossos desejos. Deus não é apenas como um médico astuto que segue, passo a passo, o curso de uma doença, regulando medicamentos de acordo com cada momento; é também como uma suave e atenciosa mãe, que estuda todos os nossos gostos; se nos preocuparmos em agradá-la, não haverá nada que ele seja caro demais para nós e seremos sempre o estimado objeto de sua clemência. Que mãe não é inteiramente dominada e governada por seu filho, quando este age com relação a ela, da forma que deveria?

Não é surpresa então, se longe de ser impulsivo e injusto, Deus buscasse apenas nos introduzir a todas as coisas; para tanto é preciso ser sábio; é preciso fazer com que o nosso amor impregne sobre Ele um governo poderoso e que possua uma atração mágica pela qual estará sempre disposto a fazer qualquer sacrifício, até mesmo aquele de Sua própria supremacia e glória.

Sim, esta é uma verdade positiva; poderíamos governar, Deus pelo nosso amor; Deus lamenta atribuirmos a Ele tanta autoridade, quando poderia usar, com relação ao homem, nada além do que uma amigável complacência e benevolência.

Lê Isaias XLI, a partir do 8º verso, e verás que Deus não só chama Abraão de "meu amigo" mas, por conta desta amizade derrama sobre ele todo tipo de atenção e benevolência.

Lê 2º Crônicas XX.7 e verás, na oração de Josafá, que Abraão era considerado por seu povo como o amigo de Deus. (Veja também, sobre este assunto, São Tiago II 23).
Lê o Livro da Sabedoria de Salomão (VII 27) e verás Deus fazer uso da palavra amigos ao falar das almas santas. Por fim, no Evangelho de São João XV., onde o Senhor chama seus discípulos de amigos.

Oh, ministros das coisas santas! não é seu trabalho mostrar estas verdades à mente humana?

Tudo o que é sensível é uma expressão do Ser.

A Essência Primária pode realmente habitar em nós e com satisfação, quando realmente nos tornamos Seus amigos; por esta razão, quando regenerado o homem é uma cópia, verdadeira e viva do Ser dos seres, já que é o caráter deste Ser que o afirma em nós.

Toda sensibilidade espiritual, que nada mais são do que Operações Divinas, tem por objetivo notificar Sua existência e presença; de outra forma as regiões poderiam esquecê-lo; nós também o esqueceríamos, por causa da sublimidade de Sua existência; esta verdade se aplica as sensibilidades físicas e à existência de nosso ser corporal, assim como à existência de toda Natureza, uma vez que toda sensibilidade que vemos, ouvimos e provamos são notificações e expressões do Ser. Se isto não ocorresse, poderíamos adormecer perto Dele, estar como se estivéssemos sem Ele, tão separado e distinto, embora não distante, Deus está de nós.

Que o homem não se surpreenda então, quando regenerado, ao sentir os sete princípios ou poderes, os pilares fundamentais, nascerem novamente nele; ou os sete órgãos do Espírito ali se formarem e se movimentarem; pois o Espírito deseja ser conhecido e fomos escolhidos para ser suas testemunhas vivas. Se as sensibilidades espirituais são apenas indícios das operações eternas da Essência Primária, precisamos estar espiritualmente sensibilizados antes de conhecermos esta essência.

O homem espiritualmente sensibilizado, à este nível, se cala; não tem mais nada a dizer; não há necessidade de falar, já que o Próprio Ser atua em si, por si e com tal proporção, sabedoria e poder que supera toda linguagem humana.

Neste quadro vemos como o Homem prova Deus e pode ser útil a Ele na qualidade de testemunha universal. Vemos também o quão querido deve ser o homem a Deus, já que têm um destino tão sublime. Como tenho sempre mostrado, é certo que, se não houvesse Deus algum, não teríamos nada a admirar; mas que, se não houvesse uma alma espiritual imortal, Deus não teria um objetivo permanente que pudesse ser o foco e o completo receptáculo de Seu amor.

Sucessivos nomes; estados e processos na representação da Divindade

Quanto aos diferentes nomes do Homem, já vimos que seu nome atual é dor ou sofrimento: este nome deve ressonar por todo o ser, antes que possa atingir os portões do Verbo e da Vida. Porém, o segundo nome, que o Homem encontrará nos portões da Vida é santidade, a raiz Hebraica do que significa renovar. Quando o homem tem a felicidade de fazer com que este nome nasça nele, pode então ter a esperança de entrar no Ministério Espiritual do Homem; o que o Verbo mais deseja é ter seus servos; aquele que compreender a dignidade deste nome, a pureza de seus efeitos, os deleitosos e esplêndidos serviços que permitem ao homem render à universalidade das coisas, conhecerá o que é a felicidade e a glória de ser um homem. A partir de então, ele não descansará até que esteja em condições de ser empregado: pois, para ser universal, não basta chegar a um sentimento vivo e permanente com relação à sua posição como espírito, é preciso ser empregado com tal nas regiões terrestre, celeste, espiritual e Divina. É também o caso da gramática-viva (grammatical-vil) Israelita de campos patriarcais, proféticos, etc., contra o mal, a vaidade e as trevas. O homem não irá desistir, por vergonha, de ser obrigado a ensinar as suas essências e órgãos espirituais este elemento da linguagem universal, visto que espera algum dia ensinar a todas as coisas que não o conheça, ainda que tremam por tal conhecimento.

A obra de santidade dentro do homem

Este segundo nome, santidade, engendra no homem, todos os outros nomes parciais, a necessidade e as propriedades que irá encontrar nas aptidões ocultas e empregos que o aguardam em seu caminho, de acordo com as várias funções e melhoramentos que possa vir a fazer. Quando o Homem Espírito se aplica corajosamente à sua obra de regeneração, desenvolvendo suas faculdades, agrupam-se ao redor de sua cabeça vapores ativos e vivos que surgem de diferentes pontos do horizonte espiritual, a fim de estabelecer abundantes e fertilizantes nascentes sobre ele. O fervor destas nuvens de fermentação explode, a nascente se abre e milhares de arroios de orvalho celeste descem sobre o homem e o inundam; estes arroios vivificantes penetram e saturam o homem, como faz a chuva nos campos da natureza. O ardor e o desejo são os primeiros centros e focos destas nuvens salutares; é o homem quem atrai e fixa os vapores Divinos e espirituais, pois tem o poder de convocar e comandá-los, por assim dizer, de todas as regiões onde Deus atua e dá universalidade a todas as coisas. Este é um dos mais altos privilégios do homem e o que lhe mostra, de forma mais convincente, como foi investido do direito de ser a imagem e o representante da Divindade.

Deus produz eternamente as essências destes vapores: o homem, como imagem de Deus, tem o poder de coletá-los, reproduzi-los, conscientemente e formar regiões de tamanha força que nada pode resistir. Isto significa repetir sua geração num plano visível inferior, sendo que o plano superior é reservado unicamente a Deus.

Dilúvios espirituais sobre a mente do homem. Os Noés espirituais

Quais são os obstáculos que se opõem a estes direitos do Homem de Desejo? A que desoladores limites estão confinados! Deus disse, em verdade, aos homens do tempo de Noé, que não haveriam mais dilúvios pois, segundo as leis da Natureza e da Justiça, quando o gérmen do pecado, análogo à água, invadiu as formas materiais, produziu uma explosão que atraiu a punição correspondente. Não seria possível reproduzir tal desordem da mesma forma nem tampouco a punição na forma de dilúvio pela água.

Contudo, Deus não disse que não haveria mais dilúvio espiritual; de fato, longe de acreditar-mos que este tipo de dilúvio não possa ocorrer, podemos dizer que é contínuo e universal quando observamos as enchentes de erros que cobrem a mente humana.

Os diferentes Noés nomeados para presidirem estes dilúvios precisam resistir e represar as torrentes de sofrimento que surgem sobre eles atravessando o ser em todas as direções. Eles não reclamam ao se verem assim assaltados; ficam satisfeitos por estas torrentes se acumularem sobre eles, levantando e pressionando umas as outras até provocarem erupções em todas as faculdades de seu ser.

Aguardam com uma fé viva e uma deliciosa esperança que as águas circulem através dos canais que se abrem no ser; aguardam que a terra, ao seu redor, recupere a fertilidade, através do aparecimento do ramo de oliveira, trazido pela pomba, que é o Verbo; a partir de então, poderão devolver ao deserto e as regiões estéreis, os animais recolhidos em sua arca santa, as raças que tanto desejam ver preservadas.

Por que o mal ainda existe no universo?

Entre as aflições espirituais que o Homem de Desejo experimenta no curso da obra de regeneração do seu Ministério, há um que, a princípio, lhe parece dilacerar o coração e o surpreende ao ver que não pode diminuir sua duração através da vontade. Esta aflição é saber se tudo o que pedimos ao Pai, em nome do Redentor, possa ser obtido; além disso, pelo fato do mundo não ser perfeito, a iniqüidade humana ainda não está abolida e a natureza ainda não está redimida.

Algumas vezes, este Homem de Desejo ardente se: satisfaz com o doce propósito que sua mente lhe apresenta, se convencendo de que esta grande obra é necessariamente possível segundo a promessa. Algumas vezes, ele até mesmo sente ser movido por santas aspirações, que o levam a acreditar que pela fé pode ter sucesso na realização de alguma parte desta obra sublime, então ele se enche de júbilo. Porém, quando questiona escrupulosamente este ponto, heis a resposta que recebe:

Deus tudo governa com paciência, amor e sabedoria

Todos os caminhos de Deus são caminhos de amor; os poderes de Deus são, na verdade, sem limites e podem fazer todas as coisas, exceto o que é contrário ao amor. Agora, é no amor que Deus temporiza; é porque ama todas as coisas que deseja que tudo tenha os meios e o tempo necessário para se preencher com Ele, a fim de que nada retorne a Ele vazio Dele próprio. Se forçasse violentamente o processo e o tempo Ele iria, com certeza, causar todas aparências falsas e de trevas que cativam o espírito a desaparecer; mas poderia fazer com que este espírito cativo desaparecesse, da mesma forma, se ainda não estivesse saturado com a Divina tintura. A tintura só pode penetrar aos poucos: se penetrasse de repente e de uma só vez poderia empurrar o espírito a extremos além de suas forças, aos quais não resistiria.

Assim, o longo sofrimento de Deus modera até mesmo os projetos que fazemos para o avanço de Seu reino; assim, o Homem de Desejo, qualquer que seja o seu ardor, pode trilhar os caminhos da sabedoria, apenas na medida em que é penetrado pelo sentimento daquele amor universal que dispõe todas as coisas gentilmente e quando se sente fortemente movido a "trilhar corretamente os caminhos tortos"; ele deve levar o seu desejo ao seio do Amor Eterno, pois só este Amor sabe o que é melhor para o cumprimento de Sua própria vontade Divina que é beneficente e sábia; deve se recolher ao fundo de seu coração e lá, como a pomba, desejar ardentemente e em silêncio a extensão do reino do Verbo e da Vida; deve ali lutar na dor e aguardar pacientemente, sem esquecer que se, através do homem culpado, o mal inundou o mundo, somente através do homem justo é que a região da bondade poderá recuperar seu lugar.

O homem deve, em resumo, tomar cuidado, já que só dá ouvidos à sua própria imprudência, ligada as suas próprias trevas, privações e já conhecida impotência, enquanto fantasia ouvir unicamente a justiça e ter o direito de exigir de Deus mais do que sua presente missão lhe permite implorar a Deus.

Homem, pense que a contínua ocupação de Deus é separar o puro do impuro; todo tempo está consagrado a esta grande obra. Isto é o que Ele faz conosco desde o momento de nosso nascimento, de nossa incorporação; a partir deste instante busca gradualmente libertar nossas almas de suas prisões; contudo, Ele só cumpre esta tarefa ao final de nossas vidas: mesmo assim, isto depende de como tenhamos vivido.

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