FRANÇOIS CHAMPOLLEON
CHAMPOLLEON
Pelo Amado Irmão Sephariel - Hermanubis USA

CHAMPOLLION E A PEDRA DE ROSETA

Quando o famoso frenologista Dr. Gall andava de um lugar para outro a fim de popularizar a sua teoria do crânio, admirado por uns, insultado por outros, honrado, difamado, num grupo em Paris apresentaram-lhe um jovem estudante. Medindo imediatamente com os olhos o crânio do rapaz, Gall exclamou, impressionado:

- Oh! Que grande gênio lingüístico!

O jovem de dezesseis anos que Gall tinha na sua frente conhecia, já então, além do latim e do grego, meia dúzia de línguas orientais. (O frenologista não podia ter a menor idéia sobre isso... ou seria apenas uma das suas bem preparadas charlatanarias?)

No século XIX foi adotada uma modalidade de exposição biográfica que ativa-mente se dedicava a desencavar coisas assim: por exemplo, que Descartes, com três anos de idade, posto diante dum busto de Euclides, exclamara "Ah!" e que Goethe reunia as contas da lavadeira, a fim de mostrar o dedo do gênio até no agrupamento de punhos e peitilhos.

O primeiro exemplo mostra apenas um exagero de método e o segundo pode ser uma tolice. Destas fontes, porém, nascem as anedotas, e que se pode alegar contra as ane-dotas? Até a história de Descartes com três anos é digna de um folhetim, escrito no solo mole das reflexões fáceis, cuja eliminação nos deixaria apenas um grave dia de vinte e quatro horas. Depois destes exemplos, também nós não nos furtaremos a falar do nascimento maravilhoso de Champollion.

Em meados do ano de 1790 Jacques Champollion, livreiro na pequena locali-dade de Figeac, na França, mandou chamar urgentemente o "feiticeiro" Jacques para ver sua mulher, que estava presa ao leito, completamente paralítica e já desenganada pelos médicos. Figeac fica no Delfinado, ao sudeste da França, na "Província das sete maravilhas", uma das regiões mais belas do país, abençoada por Deus. É habitada por uma raça de homens rigida-mente conservadora, difícil de arrancar de sua letargia, mas, uma vez despertada, é capaz do mais exaltado fanatismo. Fora disso, é gente rigidamente católica e muito crédula.

O feiticeiro mandou deitar a doente - e isto é atestado por várias testemunhas - sobre ervas quentes, fê-la beber vinho quente, anunciou o seu convalescimento imediato e pro-fetizou (o que surpreendeu a família extraordinariamente) o nascimento de um menino que no futuro conquistaria glória imorredoura.

No terceiro dia a doente levantou-se. A 23 de dezembro de 1790, pelas duas horas da manhã, nascia Jean-Françoi Champollion, o futuro decifrador dos hieróglifos. Ambas as profecias se haviam cumprido.

Se crianças engendradas pelo diabo costumam nascer com cascos de cavalo, não é de surpreender que se encontrem marcas menores onde um feiticeiro pôs a mão. Exami-nando o menino Françoi, o médico verificou com espanto que ele tinha a córnea dos olhos amarela, coisa que só os orientais costumam ter e que num centro-europeu era uma grande curiosidade. Além disso, tinha pele escura, quase pardacenta, e todo o talhe do seu rosto era pronunciadamente oriental. Vinte anos mais tarde seria geralmente chamado "O Egípcio".
Champollion era um filho da Revolução. Em setembro de 1792 foi anunciada a proclamação da República em Figeac. A partir de abril de 1793 reinou o Terror. Sua casa fi-cava a treze passos da Place d´armes (que mais tarde deveria receber o seu nome), onde foi plantada a árvore da liberdade, e as primeiras coisas que ele aprendeu a ouvir foram a música estridente da Carmagnole e as lamentações dos que procuravam asilo na casa de seu pai, fu-gindo à plebe desencadeada. Entre esses perseguidos encontrava-se um sacerdote que foi o seu primeiro professor.

Com cinco anos de idade - conta um comovido biógrafo - realizou o seu pri-meiro trabalho de decifração, comparando coisas decoradas com a sua representação impressa e, depois, fazendo a leitura. Com sete anos ouve pela primeira vez a fascinante palavra "Egito" "no brilho ilusório de uma fada morgana", quando seu irmão mais velho, Jacques-Joseph, de doze anos, vê malogrado o seu projeto de tomar parte na expedição ao Egito.

É, segundo informam testemunhas e pessoas que ouviram dizer, um mau aluno em Figeac. Por isso, em 1801, seu irmão, que é um filólogo respeitável e muito interessado em Arqueologia, leva-o consigo para Grenoble e encarrega-se da sua educação. Como Françoi, então com 11 anos de idade, não tarde a revelar conhecimentos extraordinários de latim e grego e comece a dedicar-se ao hebraico com êxito assombroso, Jacques-Joseph, considerando o que o irmão mais jovem fará um dia pelo nome da família, decide, embora ele próprio seja brilhantemente dotado, chamar-se modestamente Champollion-Figeac. Mais tarde, usará ape-nas Figeac. No mesmo ano o jovem Françoi trava conhecimento com Fourier. Este, que havia acompanhado a expedição ao Egito, era físico e matemático notável, fora secretário do "Instituto Egípcio" no Cairo, comissário da França junto ao governo egípcio, chefe da Jurisdi-ção e a Alma da Comissão Científica. Na ocasião era prefeito dos Isère-Départaments, tendo estabelecido residência em Grenoble e atraído para si imediatamente um círculo de mentalida-des ilustres. Durante uma inspeção escolar tem um debate com Françoi. Fourier convida-o a sua casa, mostra-lhe a sua coleção egípcia, e o rapaz olha encantado os primeiros fragmentos de papiros, vê fascinado as primeiras inscrições hieroglíficas em lajes.

- Pode-se ler isso - perguntou.

Fourier abana a cabeça.

Eu os lerei! - diz o pequeno Champollion, perfeitamente convicto (mais tarde ele conta esta história com freqüência). - Dentro de alguns anos eu os lerei! Quando for grande!

Não faz lembrar aquele outro rapaz que disse a seu pai: "Eu encontrarei Tróia "... igualmente convicto, com aquela mesma segurança sonambúlica? Mas que caminhos tão diversos, que métodos basicamente tão diferentes eles utilizaram para a realização de seus so-nhos juvenis! Schliemann é um puro autodidata, Champollion jamais se aparta um segundo sequer do caminho trilhado da educação científica (percorrendo, naturalmente, esse caminho tão rapidamente que passa a dianteira a todos os colegas de estudo); Schliemann, quando inicia a sua obra, não possui o menor grau de especialização, Champollion está equipado com toda a ferramenta do saber que o seu século pode colocar à sua disposição.


O irmão cuidava da sua educação, tentando refrear a monstruosa e desgover-nada sede de saber do rapaz. Em vão. Champollion procurava os campos mais remotos da erudição e abria trincheiras em todas as montanhas da sabedoria. Com doze anos escreveu o seu primeiro livro: "História de Cães Famosos", e a carência de sinopses históricas, que dificul-tou o seu trabalho, levou-o a esboçar uma "Cronologia desde Adão a Champollion, o Jovem". (O irmão mais velho tinha desistido do nome, porque pressentia qual deles mais tarde projeta-ria maior sombra. Champollion denominou-se "o Jovem" referindo-se indiretamente ao irmão).
Com treze anos começa a aprender árabe, siríaco, caldaico e, depois, copta. E é digno de nota que tudo o que ele aprende, tudo o que faz, tudo o que procura, está dentro da jurisdição do Egito! Tudo o que interessa o conduz inesperadamente a um problema egípcio. Estuda o chinês antigo unicamente para demonstrar o seu parentesco com o antigo egípcio! Estuda espécimes de textos em zenda, pálave e parse, as línguas mais remotas, o material mais afastado, que só o nome de Fourier pode fazer chegar a Grenoble, reúne tudo o que se lhe ofe-rece, e em 1807, com dezessete anos, traça o primeiro mapa histórico do Egito, o primeiro mapa do Império dos Faraós.

Só poderemos compreender o arrojo desse empreendimento se nos lembrarmos que as únicas bases existentes eram passagens bíblicas, na maioria textos latinos, árabes e he-braicos mutilados, o confronto com o copta, a única língua que talvez pudesse realmente servir de ponte para o velho egípcio e que era conhecida, pois fora falada até ao século XVII da nossa era no Alto Egito.

Ao mesmo tempo, reúne material para um livro. E por esse tempo resolve ir para Paris. A Academia de Grenoble deseja, porém, uma obra definitiva. Os professores pensa-ram na elaboração de um discurso ordinário, numa peça de retórica. Champollion esboça o livro "O Egito sob os Faraós".

A 1º de setembro de 1807 apresenta-se perante a Academia - um jovem esguio, empertigado, com essa beleza héctica de todos os precoces - e lê a introdução. Formula teses arrojadas, expostas com uma lógica peremptória. O efeito é extraordinário. O jovem de dezes-sete anos é eleito por unanimidade membro da Academia. O presidente Renauldon levanta-se e abraça-o, dizendo: "Elegendo-vos como seu membro, apesar da vossa juventude, a Academia leva em conta o que já realizastes. Mais ainda, porém, conta com o que podereis vir a realizar! Ela está convencida de que justificareis as suas esperanças e de que um dia, quando tiverdes feito nome com vossos trabalhos, vos lembrareis de que recebestes dela o seu primeiro estí-mulo".

Assim, da noite para o dia, Champollion passa de estudante a acadêmico.

Ao sair do edifício da escola, desmaia. Por essa época ele é hipersensível, um sangüíneo de exterior melancólico, não só mentalmente muito evoluído e até já publicamente apontado por muitos como gênio, mas também fisicamente precoce. (A sua decisão de casar logo depois de deixar os bancos escolares, não passa, pois, dum primeiro entusiasmo de estu-dante). Ele sabe que tem pela frente um novo capítulo da sua vida. Vê diante de si uma cidade prodigiosa, centro da Europa, encruzilhada da inteligência, da política, da aventura. Quando a pesada carruagem, em que ele e seu irmão viajavam durante dezessete horas, se aproxima de Paris, já meditou longamente sobre as suas preocupações. Meditou, oscilando entre o sonho e a realidade, em meio a uma nuvem da papiros amarelados, ouvindo os sons de palavras de uma dúzia de línguas, oprimido sob pedras cheias de hieróglifos, entre elas aquela misteriosa pedra de basalto negro de Roseta, que ele viu há dias pela primeira vez, quando foi despedir-se de Fourier, e cujas inscrições o perseguem.

E então - e também isto é autêntico - inclina-se bruscamente para o irmão e diz em voz alta o que pensou, o que intimamente sempre anelou e de que subitamente tem a cer-teza. Em seu rosto moreno brilham os olhos pardos.

- Eu decifrarei os hieróglifos! diz. - Eu sei!
O encontro da pedra de Roseta é atribuído a Dhautpoul. Mas Dhautpoul era apenas o chefe do corpo de sábios, chefe do homem que realmente a encontrou. Outras fontes citam sempre Bouchard. Bouchard, porém, era apenas o oficial que dirigiu os trabalhos de re-construção do arruinado Fort de Rachid, já então chamado Fort Julien, situado 7,5 km ao no-roeste de Roseta, no Nilo, e que mais tarde se encarregou do transporte de pedra.
O verdadeiro descobridor é um soldado desconhecido. Nunca chegaremos a saber se foi por acaso uma pessoa com o grau de cultura necessário para reconhecer o valor do achado, quando a sua picareta bateu na pedra, ou se foi algum bronco, que, à vista daquela laje toda recoberta de sinais misteriosos, gritou aterrado com medo de feitiço.

A pedra, que tão inopinadamente surgiu das ruínas do forte, era do tamanho de um tampo de mesa, de basalto negro, com granulação fina, muito dura. Era polida de um lado. Apresentava três inscrições, em parte gastas e apagadas pela fricção da areia que repousara sobre ela durante dois milênios. Dessas três inscrições, a primeira, com quatorze linhas, era hieroglífica, a segunda, com trinta e duas linhas, demótica, e a terceira, com cinqüenta e quatro linhas, grega.

Grega! Legível! Compreensível!

Um general de Napoleão, apaixonado helenista, iniciou imediatamente a tradu-ção. Tratava-se, declarou ele com segurança, de um louvor dos sacerdotes de Menfis a Ptolo-meu V, no ano de 196 A.C., por benefícios recebidos.

A pedra, com muitos outros despojos da França, depois da capitulação de Ale-xandria foi para o "Museu Britânico" de Londres. Mas a "comissão" fizera moldagens e cópias de todas as peças, as quais foram levadas para Paris. Os sábios começaram logo a com-parar...

Começaram a comparar... pois que havia de mais razoável do que concluir, já pela simples disposição das colunas, que elas continham textos idênticos? O "Courrier de l´Egypte" já o havia sugerido, dizendo que ali se encontrava a chave para a porta do reino dos mortos, que ali estava oculta a possibilidade de "explicar o Egito pelos egípcios". Depois da tradução grega, haveria ainda grande dificuldade para estabelecer quais os sinais hieroglíficos que correspondiam às palavras, às idéias e aos nomes gregos?

As melhores cabeças daquele tempo se empenharam na decifração. Não só na França, mas também na Inglaterra (pelo original da pedra), na Alemanha, na Itália. Em vão! É que todos partiam de uma falsa hipótese. Todos tinham sobre os hieróglifos noções que em parte remontavam até Heródoto, deixando-se iludir por essa terrível persistência peculiar a tantas falsas concepções na história do espírito humano. A penetração dos hieróglifos exigia uma viravolta verdadeiramente coperniciana, uma idéia que, desviando-se de todas as vias da tradição, iluminasse a escuridão como um relâmpago.

Quando Champollion, aos dezessete anos, conduzido por seu irmão, se apresen-tou a De Sacy, seu futuro professor - homem de pequena estatura e nada imponente, mas cuja fama transpunha as fronteiras da França - não se mostrou tímido nem turbado. E da mesma forma que, aos onze anos, quando fora apresentado a Fourier em Grenoble, fascinou também De Sacy.

Mas De Sacy estava desconfiado. Ele, um homem de quarenta e nove anos, nos píncaros da ciência do seu tempo, tinha diante de si um jovenzinho que, no livro "O Egito sob os Faraós", havia encetado com prodigioso arrojo um projeto que ele próprio declarava não estar maduro para desenvolver. Mas que diz mais tarde ao recordar esse primeiro encontro? Ele, o sábio, fala da "profunda impressão" que experimentou! É de admirar? O livro do qual De Sacy apenas começara a ver a introdução, no fim do ano estava quase concluído. O jovem de dezessete anos já então tinha direito ao reconhecimento que tão amplamente lhe foi confe-rido sete anos mais tarde, depois da publicação.

Champollion atira-se ao estudo. Recusa-se terminantemente a ceder às tenta-ções da grande capital, sepulta-se nas bibliotecas, corre de instituto para instituto, tem de aten-der a centenas de incumbências dos sábios de Grenoble, que o assoberbam com cartas, estuda sânscrito, árabe e persa (o "italiano do Oriente", como o chama De Sacy), a língua-mãe de quase todos os idiomas orientais e, entrementes escreve a seu irmão sobre uma gramática chi-nesa - "para se distrair"!

Imbuiu-se de tal maneira do espírito do árabe, que chega a modificar a própria voz, e, numa reunião, um árabe, tomando-o por um compatriota, começa a fazer-lhe o salama-leque. O seu conhecimento do Egito aprofunda-se de tal maneira pelo simples estudo, que o mais famoso africanista da época, Somini de Manencourt, depois de uma palestra que tem com ele exclama surpreendido:

- Ele conhece as terras de que falamos tão bem como eu mesmo!

Um ano depois já fala e escreve tão bem o copta ("Falo copta comigo mesmo...") que, para se exercitar, escreve muitas das suas anotações nessa língua, com carac-teres demóticos. E é isso que dá motivo a que quarenta anos mais tarde ocorra o jocoso epi-sódio de um erudito publicar como original egípcio do tempo dos Antônimos, acompanhado de sagazes comentários... um traslado do livro alemão de Beringer sobre a petrificação!

Entretanto, as coisas correm mal, dolorosamente mal para Champollion. Não fosse o irmão, que desinteressadamente o auxilia, teria passado fome. Mora num quarto mise-rável perto do Louvre. Atrasa-se no pagamento dos dezoito francos do aluguel, escreve cartas ao irmão pedindo auxílio, declarando-lhe que está desnorteado, que não pode manter-se, e fica consternado quando Figeac lhe comunica que se ele não economizar, se verá forçado a empe-nhar a sua biblioteca. Economizar ainda mais? As solas dos seus sapatos estão gastas, o casaco rasgado. Por fim já se envergonha de aparecer em público. Adoece e, no frio e na umidade de um inverno parisiense anormalmente rigoroso, contrai os germes do mal de que há de morrer. Dois pequenos sucessos o sustêm.

O Imperador precisa de soldados. No ano de 1808 ocorre o recrutamento geral de todos os homens válidos desde a idade de dezessete anos. Champollion fica horrorizado. Todo o seu ser reage contra a coerção. Ele, que se submete à mais rigorosa disciplina do espí-rito, estremece quando vê os quadrados dos guardas, sujeitos a uma disciplina estúpida que nivela todos os espíritos. Não sofreu já Winckelmann sob a ameaça de um militarismo? "Há dias em que chego a perder a cabeça", escreve François a Figeac desesperadamente.

O irmão, que sempre o ajudou, ajuda-o também nessa crise. Mobiliza os ami-gos, redige petições, escreve inúmeras cartas - e Champollion pode continuar dedicando-se numa época dedicada às armas, ao estudo de línguas mortas.

A segunda coisa que o ocupa... não, a que de tal modo começa a fasciná-lo, que chega a faze-lo esquecer de vez em quando o perigo iminente da sua militarização, é o estudo da Pedra de Roseta. Pois é singular: exatamente como Schliemann posteriormente, que já fala e escreve todas as línguas européias e só continua adiando o estudo do grego antigo, para o qual, entretanto, se voltam todos os seus anseios, porque sente que uma vez iniciado esse es-tudo não mais terá tranqüilidade - assim o pensamento de Champollion gira continuamente em volta da Pedra de Roseta, volteando, por assim dizer, nas espiras de uma espiral, aproximando-se cada vez mais do objetivo de seus esforços... Mas quanto mais se aproxima do objeto, mais lento, mais hesitante se torna em seu movimento, porque nunca lhe parece estar ainda bem preparado, armado de toda a sabedoria do seu tempo para atacar o problema.

E então, subitamente, diante de uma nova cópia da Rosetana, Tirada em Lon-dres, não pode mais conter-se. É verdade que ainda desta vez tampouco começa com a deci-fração propriamente dita - limita-se a comparar a Rosetana com um papiro - mas resulta que logo à primeira tentativa consegue "estabelecer o valor exato independente de cada um dos caracteres de uma linha inteira" da pedra negra. "Submeto à tua apreciação o meu primeiro resultado!" escreve ele em 30 de agosto de 1808, então com dezoito anos, a seu irmão. E, por trás da modéstia com que explica o seu método, transparece pela primeira vez o orgulho do descobridor.

É justamente neste momento em que acaba de dar o primeiro passo, quando sabe que está no caminho certo do êxito e da fama, que recebe uma notícia que quase o ful-mina como um raio. Até esse instante não via entre si e o seu objetivo senão trabalhos, fadigas e privações. Com tudo se conformou. E então eis que recebe a notícia de que tudo o que fez, tudo aquilo em que acreditou, o que anelou e já tem como certo, se lhe apresenta insensato: os hieróglifos foram decifrados por outrem!

Em outro campo da investigação e da fadiga humanas - a luta secular pela con-quista do Pólo Sul - ocorre um episódio que reproduz de maneira mais dramática sentimento igual ao experimentado por Champollion quando sabe que outro chegou antes dele. É quando, após horríveis trabalhos, o Capitão Scott, com uns poucos homens, trenós e cães, se aproxima finalmente do Pólo. E então, meio cego pela fome e pelo cansaço, mas com o ilimitado orgulho de ser o primeiro a chegar ao Pólo, olha através da vastidão gelada, que devia ser virgem... e vê uma bandeira! A bandeira de Amundsen!

Como dissemos, este exemplo é mais dramático, porque atrás dele está a morte branca. Mas será diferente o sentimento do jovem Champollion do experimentado pelo Capitão Scott? Não é consolo algum que o que aconteceu a ele acontecesse a dúzias de outros no sé-culo das descobertas simultâneas. Todos eles devem ter experimentado o mesmo que Scott à vista da bandeira de Amundsen.

Mas se a notícia caiu sobre Champollion como um raio, o efeito foi semelhante: transitório. A bandeira de Amundsen estava firme e atestava a sua vitória. Não assim a decifra-ção dos hieróglifos.

Champollion recebeu a notícia na rua, a caminho do Collège de France. Deu-lha um amigo, ofegante, sem suspeitar aquilo por que Champollion lutava havia longo tempo, o que sonhava, no que trabalhava dia e noite, o que o fizera privar-se de tudo, passar fome, humilhar-se. Quando Champollion vacila e se apoia pesadamente a ele, fica assustado.

- Alexandre Lenoir! - diz ao amigo. - A obra dele acaba de aparecer. É apenas uma brochura. A "Nouvelle Explication", a decifração completa dos hieróglifos! Pense no que isso significa!

Que foi que ele disse?
- Lenoir? - pergunta Champollion.

Abana a cabeça. E então vislumbra um raio de esperança. Ainda ontem viu Le-noir. Conhece-o há um ano. É um cientista respeitável, mas está muito longe de ser um gê-nio.
É impossível - diz. - Ninguém falou nada sobre isso. O próprio Lenoir não me disse uma palavra a respeito.

- Você se espanta? - pergunta o amigo. - Quem trai uma descoberta assim antes do tempo?
Champollion desprende-se dele bruscamente.

Entra esbaforido na livraria, com mãos trêmulas põe as moedas de franco no balcão. Só alguns exemplares da brochura foram vendidos. Depois corre para casa, atira-se sobre o velho canapé e começa a ler...
A viuva Mécran pousa bruscamente a panela na mesa da cozinha. Do quarto de seu inquilino vem uma barulheira infernal. Escuta horrorizada, depois corre lá em cima, abre a porta! François Champollion jaz no canapé, arfando. Da sua boca saem ruídos inarticulados... mas, não há dúvida, ele está rindo! Todo o seu corpo é sacudido por uma prodigiosa garga-lhada histérica.

Na mão tem o livro de Lenoir. Decifração dos hieróglifos? Ali a bandeira foi plantada cedo demais Champollion está bem a par das possibilidades para poder ajuizar que tudo o que Lenoir defende ali é puro disparate, pura invenção, perigosa mistura de fantasia e de uma erudição mal encaminhada.

Mas o choque foi terrível. Ele não o esquecerá. O seu abalo veio mostrar-lhe quão profundamente ele já está identificado com a empresa de fazer falar as figuras mortas. Quando, esgotado, adormece, é assaltado por sonhos loucos. Das fantasmagorias criadas pela imaginação saem vozes egípcias. E o sonho torna-lhe claro o que a realidade de uma coisa pe-nosa apagava: que ele é um obcecado, um maníaco, enfeitiçado pelos hieróglifos.

Todos os seus sonhos convergem para o resultado. Esse resultado parece-lhe palpável. Mas enquanto se revolve, inquieto, no canapé não sabe o rapaz de dezoito anos que mais de uma dúzia de anos o separa da consecução do seu objetivo. Não imagina que antes disso ainda sofrerá revés após revés, e que ele, que não tem em mente outra coisa senão os hieróglifos e a Terra dos Faraós, um dia será banido como réu de alta traição.


UM RÉU DE ALTA TRAIÇÃO DECIFRA OS HIERÓGLIFOS


Com doze anos de idade, enquanto estudava o Antigo Testamento no texto original, Champollion escreveu um ensaio no qual argumentava que a república era a única forma de governo racional. Formado nas correntes intelectuais que prepararam o caminho para o século da razão e desencadearam a Revolução Francesa, ele sofreu sob o novo despotismo que se foi insinuando sob a forma de éditos e decretos e mostrou o rosto francamente com a coroação de Napoleão como imperador. Ao contrário do irmão, que se deixou vencer pelo fascínio de Napoleão, Champollion conservou o seu juízo crítico em todas as circunstâncias e nem em pensamento acompanhou o vôo triunfal da águia francesa.

Este não é lugar apropriado para acompanhar a sua carreira política. Não deve-mos, contudo, silenciar que foi o egiptólogo Champollion que, impelido por uma ânsia incon-tida de liberdade, assaltou, de bandeira em punho, a cidadela de Grenoble; que, embora tendo sofrido sob o duro regime de Napoleão, nem por isso quis os Bourbons, mas com as próprias mãos tirou a bandeira da flor-de-lis do alto da torre da cidadela e em seu lugar içou a bandeira tricolor - a mesma bandeira que por década e meia os bonapartistas desfraldaram através da toda a Europa e que então passava por símbolo da nova liberdade!

Champollion estava novamente em Grenoble. Em 10 de julho de 1809 fora no-meado, na universidade, professor de história, e assim é que, com 19 anos de idade, vamos encontrá-lo como professor onde há pouco fora aluno, lecionando a jovens entre os quais ha-via muitos que, dois anos antes, tinham compartilhado com ele os bancos escolares. É de admi-rar que fosse hostilizado, que caísse numa rede de intrigas, tecida particularmente pelos profes-sores mais antigos, que se sentiam preteridos, logrados, menoscabados?

E que idéias defendia o jovem professor de história? Proclamava a busca da verdade como o mais alto objetivo da pesquisa histórica, e entendia com isso uma verdade absoluta, não uma verdade bonapartista ou bourbônica. Para atingir esse ideal, reclamava a liberdade intelectual, e entendia com isso também a liberdade absoluta e não uma liberdade limitada por decretos e interdições. Reclamava a continuação das liberdades que tinham sido gritadas exaltadamente durante a fermentação dos primeiros tempos da Grande Revolução, mas que a partir daí vinham sendo traídas de ano para ano.

A política de Champollion devia necessariamente colocá-lo em conflito com os complacentes. Ele nunca traía as suas idéias, embora muitas vezes se mostrasse desanimado. Em tais ocasiões ele citava a seu irmão um pensamento que outro, provavelmente, tiraria do "Cândido" de Voltaire, mas que ele, o orientalista, tirava de um livro sagrado do Oriente: "Cultiva os teus campos! O Zend-Avesta diz que é melhor cultivar seis jeiras de terra árida do que ganhar vinte e quatro batalhas, e eu sou inteiramente da mesma opinião". Cada vez mais irremediavelmente envolvido em intrigas, enojado, privado de um quarto do seu ordenado pe-las maquinações de seus colegas, escreveu ele pouco tempo depois: "A minha sorte está lan-çada: pobre como Diógenes, tentarei comprar um tonel para morar e um saco para me vestir. Então talvez possa esperar a subsistência da conhecida generosidade dos atenienses".

Escreveu sátiras contra Napoleão. Mas quando Napoleão foi finalmente aba-tido, quando, a 19 de abril de 1814, os aliados entravam em Grenoble, indagou de si para con-sigo, com céptica amargura, se, eliminado o domínio do déspota, poderia começar realmente o do-mínio das idéias.

Entretanto, a sua intensa preocupação pela liberdade do povo e da ciência ja-mais limitou a sua paixão pelo estudo do Egito. Os seus estudos continuaram com uma fertili-dade verdadeiramente incrível. Dedicava-se a assuntos remotos ou sem importância, preparava um dicionário copta, escrevia ao mesmo tempo peças teatrais para serem representadas nos salões de Grenoble, entre elas um drama tendo por tema Ifigênia, e compunha "Chansons" de fundo político, que iam diretamente da sua mesa de trabalho para a boca do povo nas ruas. Isto poderá parecer incompreensível para os sábios especializados alemães, mas está perfeitamente de acordo com uma tradição francesa, iniciada no século XII por Pedro Abelardo. Não ces-sava, porém, de fazer o que continuava sendo a ocupação central da sua vida: sondar cada vez mais fundo os mistérios do Egito, que não o largava, retumbasse lá fora "Vive l´Empereur!" ou "Vive le Roi!". Escrevia inúmeros ensaios, preparava livros, auxiliava outros escritores em todo o mundo, lecionava, preocupava-se com estudantes medíocres. E tudo isto ia-lhe corro-endo e consumindo os nervos e a saúde. Em dezembro de 1816 escrevia: "O meu dicionário copta engrossa dia a dia. Com o autor dá-se justamente o contrário". E gemeu quando a obra chegou à página 1069 e ainda não podia dá-la por encerrada.

Então vieram os "Cem Dias", e de novo a Europa se estorceu sob a garra de Napoleão. Num momento ruiu por terra tudo o que acabava de ser penosamente construído, os perseguidos transformaram-se em perseguidores, os governantes em governados, o rei num fugitivo. O próprio Champollion deixou o seu gabinete de trabalho... Napoleão está de volta! Os jornais assinalaram o seu progresso com verdadeiros marcos miliários de mendacidade: "O monstro escapou! "O lobisomem desembarcou em Cannes!" "O tirano encontra-se em Lião." "O usurpador está a sessenta horas da capital!" "Bonaparte aproxima-se rapidamente!"

"Napoleão estará amanhã dentro dos nossos muros!" "Sua Majestade está em Fontainebleau!"


A 7 de março, em sua marcha para a capital, Napoleão entrou em Grenoble. Bateu à porta com a sua tabaqueira. Era de noite. A luz dos archotes iluminava-lhe o rosto. Uma cena melodramática. Durante um terrível minuto ele enfrentou sozinho os canhões asses-tados sobre os muros. Os artilheiros agitavam-se lá em cima em confusão. E então gritaram: "Viva Napoleão!" e deixaram "entrar o aventureiro, que deixou Grenoble como imperador". Pois Grenoble, o coração do "Dauphiné", era a mais importante base de operações a conquis-tar.
Figeac, irmão de Champollion, já antes entusiasta do imperador, tornou-se seu admirador incondicional. Napoleão desejava um secretário particular. O "maire" apresentou-lhe Figeac, pronunciando o nome intencionalmente errado: "Champollion".

- Que bom presságio! exclamou o imperador. Tem metade do meu nome!

Champollion também estava presente à entrevista. Napoleão interrogou-o sobre o seu trabalho, e Champollion falou-lhe da gramática copta e do dicionário. E embora o jovem professor se mantivesse frio (desde os doze anos ele estava acostumado a lidar com soberanos que eram mais como deuses do que Napoleão), o imperador ficou vivamente impressionado com o jovem sábio. Conversou com ele demoradamente e prometeu-lhe, num gesto imperial, mandar imprimir as duas obras em Paris. Não contente com isso, no dia seguinte visitou-o na biblioteca e voltou ao assunto dos estudos de lingüística do jovem professor... e isto no mo-mento em que marchava para a nova conquista do seu império mundial. Dois conquistadores do Egito se encontravam frente a frente. Um deles tinha incluído em seus projetos de conquista mundial a terra do Nilo e esperava restaurar a sua economia com a construção de um gigan-tesco sistema de irrigação. O outro nunca tinha posto os pés em solo egípcio, mas tinha visto mil vezes as suas antigas ruínas com os olhos da imaginação e acabaria por fazê-las reviver com a força da sua sabedoria e da sua inteligência. Vivamente estimulado pelas palavras de Champollion, Napoleão anunciou ali mesmo a sua decisão de elevar o copta à categoria de língua oficial do Egito.

Mas os dias de Napoleão estavam contados. A sua queda foi tão brusca como a segunda ascensão. Elba fora o exílio, Santa Helena seria o seu túmulo.

Os Bourbons voltaram a Paris. Não eram fortes nem poderosos, por isso não eram vingativos. Era inevitável, contudo, que houvesse centenas de condenações e que, quando "os castigos choviam como outrora chovera o maná entre os judeus", Figeac se encon-trasse entre os perseguidos. Ele se tinha exposto completamente seguindo Napoleão a Paris. E no sumário processo político aberto contra Figeac não se fez distinção entre os dois irmãos, que já como cientistas também haviam sido confundidos. Por sua vez, os invejosos que Cham-pollion tinha em Grenoble não se deram ao trabalho de desfazer o engano. Para agravar ainda mais a situação, nas últimas horas dos "Cem Dias" o jovem Champollion tinha inadverti-da-mente ajudado a fundar a chamada "Aliança do Delfinado", declarando-se pela causa da li-ber-dade, ao mesmo tempo que se empenhava desesperadamente em levantar mil francos para comprar um papiro egípcio, e isso o havia tornado muito mal visto aos olhos das novas autori-dades.

Quando os realistas marcharam sobre Grenoble, Champollion correu aos muros para ajudar a resistência, desconhecendo inteiramente de onde acenava a maior liberdade. Mas que aconteceu? No momento em que o general Latour começou a bombardear o interior da cidade, vendo em perigo a ciência e o fruto do seu trabalho, Champollion abandonou rapida-mente os baluartes, esquecido da polícia e da guerra, e subiu ao segundo andar do edifício da biblioteca e aí se conservou durante todo o bombardeio, apanhando água e areia para apagar as chamas, sozinho no grande edifício, arriscando a vida para salvar os seus papiros.


Foi nesse tempo que Champollion, professor destituído, banido como réu da alta traição, deu realmente início à decifração dos hieróglifos. O banimento durou ano e meio e foi seguido de incansáveis trabalhos adicionais. De novo trabalhava ora em Paris ora em Gre-noble. Então, ameaçado de novo processo por alta traição, em julho de 1821 ele abando-nou como fugitivo a cidade onde fora promovido de discípulo a professor. Um ano depois publi-cava a sua "Lettre à M. Dacier relative à l´alphabet des hiéroglyphos phonétiques", a obra que continha os fundamentos da decifração e que causou enorme sensação nos círculos inte-ressa-dos em solver os mistérios das pirâmides e dos templos.
Parece incrível que os hieróglifos, que havia séculos estavam diante dos olhos de todo o mundo, mencionados por vários autores antigos, repetida e engenhosamente inter-pretados por ocidentais na Idade Média e tendo entrado finalmente, com a expedição de Napo-leão, nos gabinetes dos sábios, sob a forma de numerosas reproduções, não tivessem sido de fato decifrados até então. A razão disso não foi apenas a incapacidade e a falta de conheci-men-tos de muitos: foi culpa e resultado da interpretação errônea de um único.

Heródoto, Estrabão e Deodoro, os quais todos haviam viajado pelo Egito, mencionaram os hieróglifos como um tipo de escritura ideográfica incompreensível. Mas só Horapolo, no século IV da nossa era, deixou uma descrição detalhada de seu significado (as alusões de Clemente de Alexandria e de Porfírio são incompreensíveis). Por falta de qualquer outra fonte melhor, os comentários de Horapolo eram geralmente tomados como ponto de partida para todas as conclusões. Horapolo, porém, sempre se referia aos hieróglifos como escritura ideográfica, e todas as interpretações no decorrer de centenas de anos procuraram sentido simbólico nas figuras hieroglíficas. Isto permitia aos não cientistas soltarem a rédea à imaginação e levava os cientistas ao desespero.

Só depois que Champollion decifrou os hieróglifos se reconheceu quão longe Horapolo estivera da verdade. A escritura egípcia tinha evoluído muito desde o puro simbo-lismo primitivo em que uma linha ondulada representava a água, o esquema duma planta repre-sentava uma casa, uma bandeira, um deus. Tal simbolismo, aplicado, segundo Horapolo, às inscrições de datas posteriores, resultava em interpretações absurdas.

O jesuíta Atanásio Kircher, Homem dotado de espírito inventivo (inventor, en-tre outras coisas, da lanterna mágica), publicou de 1650 a 1654, em Roma, quatro volumes com traduções de hieróglifos, nenhuma das quais tinha a mais remota semelhança com o texto. Por exemplo, o grupo de sinais que representava "Autocrator", título do imperador de Roma, foi traduzido por Kircher como: "O criador da fertilidade e de toda a vegetação é Osíris, cuja força geradora o santo Mufti tira do céu para o seu reino".

Contudo, Kircher reconheceu o valor do estudo do copta, última forma da lín-gua egípcia - o que uma dezena de outros sábios contestou.

Um século depois, de Guignes, falando perante a Academia de Inscrições de Paris, proclamava, baseado no estudo comparado dos hieróglifos, que os chineses eram colo-nos egípcios. Contudo (a quase todos os pesquisadores se pode aplicar este "contudo", pois cada um deles descobriu pelo menos um indício certo), de Guignes leu corretamente o nome do rei egípcio "Menés", que imediatamente um adversário transformou em "Manuph". Vol-taire, o crítico mais venenoso do seu tempo, aproveitou este fato para invectivar os etimo-logis-tas, "que tem fraca opinião das vogais e dão pouco valor às consoantes". (Aliás, estudio-sos ingleses da mesma época, invertendo a tese acima mencionada, fizeram os egípcios proce-derem da China).

Seria de esperar que a descoberta da Pedra de Roseta pusesse um fim a conjetu-ras descabeladas. Mas ocorreu justamente o contrário. Agora a solução do problema parecia tão evidente que até os leigos se lançavam a ela. Um desconhecido de Dresdem leu no frag-mentário texto hieroglífico todo o texto grego da Pedra de Roseta. Um árabe chamado Ahmed Bin Abubekr "desvendou" um texto que o orientalista Hammer-Purgstall, aliás cientista sério, se deu ao trabalho de traduzir; um anônimo parisiense reconheceu o 100º salmo numa inscrição do Templo de Dendera, e em Gênova apareceu a tradução de inscrições encontradas no cha-mado "Obelisco de Pânfilo", que seria uma "narrativa da vitória dos bons sobre os maus, es-crita quatro mil anos antes de Cristo".

Mas a imaginação excedia-se. Ela se combinou com uma extraordinária arro-gância e estupidez no conde Palin, o qual declarou ter reconhecido a substância da Pedra de Roseta num relance. Baseado em Horapolo, em doutrinas pitagóricas e na cabala, numa velada ele obteve resultados completos. Oito dias depois, dava a público a sua interpretação, decla-rando que graças a essa rapidez "evitara os erros sistemáticos que resultariam de prolongadas meditações".

No meio destes fogos de artifício de decifrações, Champollion conservava-se no seu, ordenando, comparando, experimentando, aproximando-se passo a passo da solução. Eis senão quando ouviu dizer que o Abbé Tandeau de St. Nicolas havia escrito uma brochura, na qual demonstrava com muita perspicácia que os hieróglifos não eram absolutamente uma escri-tura e sim uma espécie de decoração. Imperturbável, escrevia já em 1815 Champollion numa carta sobre Horapolo: "Esta obra intitula-se "Hieroglífica". Não obstante, ela não contém de modo algum uma interpretação daquilo que nós conhecemos como hieróglifos e sim das escul-turas sagradas simbólicas, isto é os emblemas dos egípcios, que são completamente diferentes dos hieróglifos propriamente ditos. Isso contradiz a opinião geral, mas a prova do que afirmo encontra-se nos próprios monumentos egípcios. Nas cenas simbólicas vêem-se as esculturas sagradas de que fala Horapolo, como a serpente que morde a cauda, o abutre na posição re-presentada por ele, a chuva do céu, o homem sem cabeça, a pomba com a folha de louro, mas não nos hieróglifos propriamente ditos".

Escrita ideográfica, ainda em forma de rébus, do fim do IV milênio A.C., da qual evoluíram posteriormente as diversas modalidades de hieróglifos. Só desde alguns decê-nios se sabe: É um rei, simbolizado por um gavião hórus, que segura numa corda um país sírio vencido (oval e cabeça com barba em ponta, de um sírio), portanto sob o seu domínio. Está sentado sobre seis flores de loto, isto é, sobre 6.000 prisioneiros. O arpão que aparece em baixo indica provavelmente o nome do país; o quadrado com linhas onduladas deve indicar que o país se acha à beira da água - ambos indicam a Síria.

Naqueles anos, os hieróglifos prestaram-se às mais variadas conjeturas. Viu-se neles um sistema de epicurismo místico, sugeriu-se que continham doutrinas secretas cabalísti-cas, astrológicas e gnósticas, indicações agronômicas, mercantis e técnico-administrativas para a vida prática; descobriram-se neles trechos bíblicos e até literatura antediluviana, textos cal-daicos, hebraicos e até chineses; "como se os egípcios não tivessem sua própria língua para se expressarem", observa Champollion.

Todas estas tentativas de decifração se baseavam mais ou menos em Horapolo. Só um caminho havia para a decifração e esse afastava-se de Horapolo. Foi a direção que to-mou Champollion.

As grandes descobertas do espírito raramente podem ser fixadas no tempo. São resultados de inumeráveis ocorrências intelectuais, dum treino mental de longos anos para a solução de um único problema. Constituem a encruzilhada do consciente e do inconsciente, de atenção voltada para um único objetivo e do sonho erradio. E raramente ocorre uma solução como um relâmpago.


As grandes descobertas perdem parte da sua grandeza quando dissecadas à luz dos seus antecedentes. Conhecedores do princípio em que elas se baseiam, os que vêm depois poderão achar os erros ridículos, as falsas hipóteses absurdas, os problemas simples. É difícil hoje fazer a sua própria opinião contra a opinião do mundo douto que seguia Horapolo. Não devemos esquecer que os sábios e o público talvez não se apegassem tanto a Horapolo pelo fato de o respeitarem como autoridade como seus colegas da Idade Média respeitavam Aristó-teles e os teólogos posteriores respeitavam os padres da Igreja. Apegavam-se a Horapolo principalmente porque eles mesmos não podiam ver nos hieróglifos outra coisa que uma escri-tura de figuras, e infelizmente juntava-se a opinião autorizada ao que todo o mundo podia ver: figuras, figuras e mais figuras!
No momento, que não podemos fixar exatamente, em que Champollion teve a inspiração de que as figuras hieroglíficas eram "letras" (mais precisamente: "sinais fonéticos"), ocorreu o afastamento de Horapolo e foi achado o caminho certo para a decifração. É possível falar de inspiração depois de tal vida, sobretudo depois duma obra como a de Champollion? Houve no caso um minuto de sorte? O fato é que quando este pensamento ocorreu pela pri-meira vez a Champollion, ele o rejeitou. Quando um dia identificou a serpente deitada com o "f", refugou tal conclusão como insustentável. Vários outros pesquisadores, entre eles os es-candinavos Zoega e Akerbald, o francês de Sacy e sobretudo o inglês Thomas Young, reco-nheceram a parte demótica da Pedra de Roseta como "escritura alfabética", chegando desse modo a soluções parciais. Mas não conseguiram ir mais adiante. Desistiram ou retrocederam. De Sacy anunciou sua completa capitulação diante dos escritos hieroglíficos, que segundo ele, permaneciam "invioláveis como a Santa Arca da Aliança".

E até Thomas Young, que obteve resultados notáveis na decifração da parte demótica, pois a leu "foneticamente", modificou sua própria teoria em 1818, quando, ao tentar decifrar o nome de Ptolomeu, decompôs arbitrariamente os sinais em letras, monossílabos e dissílabos.

E aqui se mostra claramente a distinção entre dois métodos e dois resultados. Young, o naturalista, indubitavelmente um homem genial, mas sem treino filológico, trabalhava por meio de esquemas, por comparações e engenhosas interpolações. Decifrou, não obstante, apenas algumas palavras, dando, assim mesmo, uma prova eloqüente da sua maravilhosa intui-ção: mais tarde, Champollion confirmou que da lista de 221 grupos simbólicos de Young 76 haviam sido interpretados corretamente. Champollion, entretanto, que dominava mais de uma dúzia de línguas antigas, que graças ao seu conhecimento do copta, se aproximara mais do que ninguém do espírito da língua do velho Egito, não conseguiu como Young decifrar apenas palavras ou letras isoladas: Champollion reconheceu o próprio sistema. Não interpretou ape-nas, tornou a escritura legível e ensinável. No momento em que reconheceu os princípios bási-cos, compreendeu que podia voltar a uma idéia que havia muito lhe ocorrera: de que a decifra-ção devia começar pelos nomes dos reis.

Por que pelos nomes dos reis? Também esta idéia era natural, também este pen-samento hoje nos parece simples. A inscrição de Roseta, como já referimos, contém a notícia de que os sacerdotes egípcios concederam honras especiais ao rei Ptolomeu Epifânio. O texto grego, que pode ser lido imediatamente, era perfeitamente claro. Mas na inscrição hieroglífica, onde talvez devesse adivinhar-se o nome do rei, encontrava-se um grupo de sinais dentro de uma cercadura ovalada, que veio a tornar-se conhecida por "cartouche".

Não era natural supor nesse "cartouche", a única coisa destacada na pedra, a única palavra digna de destaque - o nome do rei? Dir-se-ia também que qualquer pessoa inteli-gente poderia tomar as letras do nome de Ptolomeu (como está escrito na forma antiga) e identificar os oito sinais hieroglíficos com as oito letras correspondentes.

Todas as grandes idéias são simples quando consideradas retrospectivamente. O feito de Champollion foi romper com a tradição de Horapolo, que tinha alimentado a confusão durante mil e quatrocentos anos. Em nada diminuiu o seu triunfo de descobridor o fato de a sorte lhe ter oferecido imediatamente uma brilhante confirmação. No ano de 1815 foi encon-trado o chamado "Obelisco de File", que o arqueólogo Banks levou para a Inglaterra em 1821 e o qual continha igualmente (segunda Pedra de Roseta) uma inscrição em hieróglifos e outra em grego. E novamente aí se encontrava, emoldurado num "cartouche", o nome de Ptolomeu. Mas havia um segundo grupo de hieróglifos emoldurado. E Champollion, guiado pela inscrição grega ao pé do obelisco, supôs que esse grupo devia representar o nome de Cleópatra.

Mais uma vez parece extremamente simples: mas quando Champollion escreveu um sob o outro os dois grupos de acordo com os nomes, (aqui entram os "cartouches" de Ptolomeu e Cleópatra e a legenda) e o 2º, 4º e 5º sinais do nome Cleópatra coincidiram com o 4º, 3º e 1º sinais do nome Ptolomeu, estava encontrada a chave da decifração dos hieróglifos. Só a chave de uma língua estranha? Não! A chave de todas as portas fechadas do Egito.

Hoje nós sabemos que o sistema de escritura hieroglífica é infinitamente compli-cado. Hoje o estudante aprende naturalmente o que então permanecia irreconhecível, aprende o que Champollion, baseado neste primeiro conhecimento, foi deduzindo penosamente, por-que, assim mesmo, devia continuar quase impenetrável, por se haver modificado continua-mente, ao acaso, no decorrer de três milênios. Hoje conhecemos as variações das escrituras hieroglíficas, estamos a par da evolução que se operou nos primitivos hieróglifos até se trans-formarem numa letra cursiva - a chamada escritura "hierática" - e, mais tarde, numa forma mais abreviada, mais apurada, numa escrita de uso comum - o "demótico". Os eruditos do tempo de Champollion não percebiam este desenvolvimento.

Uma descoberta que ajudava a decifrar uma inscrição não servia para a se-guinte. Qual o europeu atual que é capaz de ler um manuscrito do século XII, mesmo tra-tando-se de uma das línguas modernas? E um não iniciado é incapaz de reconhecer como letra uma inicial ornamental da Idade Média. E no entanto a escrita da Idade Média pertence à nossa própria esfera cultural e menos de mil anos nos separam dela. Mas o sábio que dirigia o olhar para os hieróglifos tinha diante de si, numa cultura estranha, uma escrita em evolução três mil anos antes dele! Hoje não há mais dificuldade alguma em distinguir entre sinais fonético-ideo-gráficos e determinativos, subdivisão inicial necessária para perceber a diversidade de valores dos sinais e figuras.
Hoje não mais nos irrita que uma inscrição tenha de ser lida da direita para a esquerda, outra da esquerda para a direita, uma terceira de cima para baixo, porque sabemos que cada um desses modos foi um hábito estabelecido numa época diferente. Rossellini na Itá-lia, Leemas na Holanda, de Rougé na França, Lepsius e Brugsh na Alemanha contribuíram com descoberta após descoberta. Dez mil papiros foram levados para a Europa: continuamente chegavam novas inscrições de túmulos, monumentos, templos, que por fim eram lidas corren-temente. Postumamente apareceu a "Grammaire Egypcienne" de Champollion (Paris, 1836-1841), depois a primeira tentativa de um dicionário do egípcio antigo (a explicação da lingua-gem andou sempre de mãos dadas com a decifração da escritura), as "Notas" e os "Monumentos".
Edificando sobre estes resultados e sobre as explorações dos que vieram de-pois, os cientistas conseguiram não só decifrar, mas até escrever o antigo egípcio. No "Egyptian Court" do Palácio de Cristal, em Sydenham, estão gravados em hieróglifos os nomes da rainha Vitória e do príncipe consorte Alberto. A placa de fundação do pátio do Museu Egípcio de Berlim é gravada em caracteres hieroglíficos. E Lepsius afixou na pirâmide de Qué-ops, em Gizé, uma placa que perpetua em hieróglifos o nome de Frederico Guilherme IV, pa-trocinador da sua expedição.

Será demais que acompanhemos o homem a quem cabe a glória de tornar legí-veis os monumentos - embora até à idade de trinta e oito anos só conhecesse a terra que havia estudado pelas inscrições - que acompanhemos Champollion pelo menos em uma das suas aventuras verdadeiramente egípcias... em solo egípcio?

Nem sempre é dado ao sábio de gabinete o privilégio de ser o primeiro a com-provar as próprias teorias. Muitas vezes não se lhe oferece uma única oportunidade de ver com os olhos os lugares que percorreu durante decênios na imaginação.

Champollion não estava destinado a acrescentar à sua grande conquista teórica um feito excepcional como escavador. Teria, contudo, oportunidade de visitar o Egito, de confirmar com os próprios olhos o que pensara na clausura do seu gabinete. Quando rapaz, saindo do terreno das tentativas de decifração propriamente ditas, ele havia trabalho numa cro-nologia e numa topografia do velho Egito, depois, através dos anos, quando, baseado em frá-geis pontos de apoio, conseguira fixar alguma estátua ou inscrição no tempo e no espaço, ha-via formulado hipótese sobre hipótese. Agora, na terra que constituíra o objeto das suas pes-quisas, encontrava-se talvez na situação de um zoólogo que, tendo reconstituído um dinos-sauro baseado em restos de ossos e fósseis, subitamente se encontrasse frente a frente com o animal vivo no período Cretáceo.

A expedição de Champollion (de julho de 1828 a dezembro de 1829) foi uma marcha triunfal. Só os representantes do governo francês não tinham esquecido ainda que ele fora acusado de alta traição (o processo fora suspenso, constituindo esse ato uma da série de medidas tomadas por uma "monarquia tolerante". Faltam pormenores exatos a respeito). Os nativos acorriam para ver "o homem que é capaz de ler a escrita das velhas pedras". Champo-llion teve de expedir ordens severíssimas para fazer voltar, noite após noite, aos navios do Nilo, "Hator" e "Isis", sob a proteção "das duas benignas egípcias", os componentes da expe-dição. O entusiasmo dos nativos contagiou de tal modo os membros da expedição, que canta-ram a "Marselhesa" e a canção da liberdade da ópera "A muda de Portici" em honra de Mo-hammed Bey, governador de Girge.

Mas a expedição também trabalhava. Champollion caminhava de descoberta em descoberta e por toda parte via suas idéias confirmadas. Num relance pode classificar a arqui-te-tura das diferentes épocas nas ruínas de Mênfis. Em Mit-Rahine descobriu dois templos e uma necrópole. Em Sacara (que vários anos mais tarde deveria tornar-se um grande acha-douro para Mariette) descobriu o nome de rei "Onnos", que imediatamente datou com precisão como pertencendo aos tempos mais afastados do Egito. Em Tell-el-Amarna descobriu que a constru-ção gigantesca que Jommard havia considerado um celeiro de trigo fora, na realidade, o grande templo da cidade.

Foi então que obteve o grato triunfo de comprovar uma afirmação que seis anos antes o fizera alvo das risotas de toda a Comissão Egípcia.

Os navios estavam amarrados em Dendera. Diante dele erguia-se o templo, um dos maiores templos egípcios, em cuja construção, sabemos hoje, colaboraram os reis da XII dinastia - os mais poderosos do "Novo Império" - Tutmés II, Ramés, o Grande, e seu sucessor, e, posteriormente, os Ptolomeus e os romanos Augusto e Nerva. Por último, Domiciano e Trajano ergueram a porta e o muro circundante. Chegando aí em 25 de maio de 1799, após terrível marcha, as tropas de Napoleão haviam ficado extasiadas diante do espetáculo, e, al-guns meses antes, o general Desaix e toda a sua divisão tinham interrompido a perseguição dos ma-melucos para admirarem, fascinados, o poderio e a magnificência de um império morto (que admoestação para um general do século XX).

E ali estava finalmente Champollion, conhecendo quase todos os detalhes por desenhos, descrições, cópias de inscrições (numerosas vezes ele havia conversado sobre tudo aquilo com Denon, o companheiro do general Desaix). Era de noite, uma noite egípcia clara e de brilhante de luar. Seus companheiros insistiram, ele acabou cedendo, e os quinze cientistas da expedição lançaram-se ao assalto do templo. Uma turma "que um egípcio teria tomado por um bando de beduínos, e um europeu por um grupo de bem armados frades cartuchos!"

L´Hôte, um dos que tomaram parte na excursão, chega a gaguejar quando relata o que se passou: "Atravessamos desordenadamente um bosque de palmeiras - uma cena verda-deiramente feérica ao luar! Depois encontramos erva alta, espinhos e moitas. Voltar? Nós não queríamos. Avançar? Não sabíamos que caminho tomar. Gritamos a plenos pulmões, mas a única resposta que obtivemos foram os ladridos distantes de um cão. Então avistamos um mal-trapilho felá dormindo atrás de uma árvore. Armado de um varapau, vestindo apenas alguns trapos negros, parecia um demônio (Champollion chamou-o "uma múmia ambulante"). Ater-rado e trêmulo, ele se levantou, certo de que havia chegado o seu fim. Mais duas horas de marcha bem puxadas... e finalmente apareceu o próprio templo, banhado numa luz suave - um quadro que nos deixou embriagados de admiração... Pelo caminho havíamos cantado para ali-viar a impaciência, mas ali, diante do propileu inundado de uma luz celestial - que sensação! Sob o pórtico, sustentado por colunas gigantescas, reinava completa paz e um encanto miste-rioso, criado pelas sombras mais profundas... e fora o luar era ofuscante. Estranho e maravi-lhoso espetáculo!
Depois acendemos uma fogueira de ervas secas no interior. Novo encanto, nova explosão de entusiasmo, como um súbito delírio. Foi como uma febre, um loucura. O êxtase apoderou-se de todos... Aquele quadro encantador, cheio de magia, era uma realidade - sob o pórtico de Dendera".
E que escreve Champollion? Os outros chamavam-lhe "mestre", e o tom mode-rado da sua descrição condiz com esse título de distinção. Mas por trás da sobriedade das suas palavras percebe-se a exaltação. "Não tentarei descrever a emoção que em nós produziu o templo e particularmente o pórtico. Poderá ser medido, mas dar uma idéia dele é inteiramente impossível. Nele se combinam no mais alto grau imaginável a graça à majestade. Ficamos lá duas horas, em completo êxtase. Guiados pelo pobre diabo do felá, vagueamos pelo interior e tentamos ler as inscrições de fora sob o luar rutilante".

Era o primeiro grande templo egípcio bem conservado que ele jamais vira. E o que anotou durante a noite e depois mostra a intensidade com que aquele homem já tinha pe-ne-trado no Egito. De tal modo se havia preparado para aquilo em imaginação, em sonho e pensamento, que nada lhe parecia realmente novo, e tudo o que via confirmava apenas o que já tinha sentido. A sua inesperada penetração assombrava os seus companheiros, homens doutos, mas menos sensíveis. Para a maioria dos que acompanhavam Champollion, os templos, as por-tas, as colunas e as inscrições não passavam de pedras e monumentos mortos. Para eles o sin-gular trajo que vestiam era apenas fantasia: Champollion vivia nele. Todos tinham raspado a cabeça, na qual ostentavam gigantescos turbantes. Envergavam jaquetas de pano bordado a ouro e botas amarelas. "Vestíamos aquelas coisas elegantemente e com ar solene", diz L´hôte. Mas Champollion, que desde anos era chamado "o Egípcio", tanto em Grenoble como em Pa-ris, comportava-se - todos os amigos o testemunharam - como um verdadeiro nativo.

Não só decifrava, não interpretava apenas. Tinha súbitas inspirações. Proclamou o seu triunfo sobre a Comissão: Aquele não era o templo de Ísis, como eles afirmavam, era o templo de Hator, a deusa do amor. E era "antiquíssimo" aquele templo? Não. Tinha recebido a sua forma final sob os Ptolomeus, fora concluído pelos romanos (esta idade de dezoito séculos significava pouco diante dos três mil anos que já então tinha a história egípcia). A tremenda impressão causada pelo templo enluarado não impediu Champollion de reconhecer que, em-bora o edifício fosse uma "obra-prima de arquitetura", estava "eivado de esculturas do pior estilo". "Espero que a Comissão não tome a mal", escreve ele, mas os baixos-relevos de Den-dera são abomináveis, e não podia ser de outro modo, pois pertencem a uma época de deca-dência. Nesse período a escultura já estava corrompida, ao passo que a arquitetura, que como arte aritmética, é menos sujeita à mudança, se conservou digna dos deuses do Egito e da admi-ração dos séculos.

A morte de Champollion três anos depois ocorreu cedo demais para a recém-nascida ciência da Egiptologia e para que ele pudesse provar oficialmente as suas teorias. Imediatamente depois da sua morte as suas idéias foram objetos de libelos, sobretudo por eru-ditos ingleses e alemães, que davam os resultados evidentemente certos de seu sistema de deci-fração como produto de pura fantasia. Foi, contudo, brilhantemente justificado pelo alemão Richard Lepseus, que em 1866 descobriu o chamado "Decreto de Canopo", bilíngüe, que con-firmou sem sombra de dúvida o método de Champollion. Finalmente, num discurso perante a "Royal Society", em 1896, em Londres, o francês Le Page-Renouf prestou a Champollion a homenagem que lhe era devida... sessenta e quatro anos depois da sua morte!

Champollion havia desvendado o segredo da escrita. Podia começar o trabalho da pá!