O amigo do Senhor
Papus
"Procurei fazer ver que, junto ao Tzar, no pequeno mundo que o rodeia, formando um total contraste com os Grã-duques cujos atos vergonhosos e cruéis têm indignado a Europa, se acham algumas suaves e simpáticas figuras de jovens príncipes do sangue, desconhecidos ainda do público, pois sua vida é discreta e silenciosa. Assinalei, entre outros, a Grã-duquesa Maria ou "Militza", e seu marido o Grã-duque Pedro. Ambos são "místicos", sinceros como a maior parte dos eslavos. Efetivamente, para compreender alguma coisa dos levantes que agitam neste momento o Império Russo, e para ver um pouco claro na história da Rússia, não se deve esquecer nunca que o misticismo é o fundamento mesmo da alma moscovita.
São popes que dirigem as sublevações; são os
membros do Santo Sínodo que se tornam conselheiros do governo. Todos
são místicos, desde o Tzar até o último mujique,
desde Tolstoi até o mais ardente do niilistas. O Tzar, esse soberano
enigmático e fatalista, esse é um místico no supremo
grau.
"Quando o Senhor quiser me chamar a si, diz ele às vezes, seja
até pela mão dos assassinos, abençoaria a sua Divina
Vontade."
Quantas vezes, à noite, no fim desses longos dias dos quais cada
minuto foi dedicado ao Estado, o Tzar, de volta aos seus apartamentos privados,
dá curso ao impulso piedoso da sua alma e, prosternado, ora em soluços
ante os Santos Ícones
Essa prece ardente, misturada às
lágrimas, pela qual o Senhor de milhões de homens suplica
ao Cristo que o assista no seu penoso labor, é um dos assombros da
Imperatriz que, nascida protestante, não pode compreender esses enlevos
do misticismo ortodoxo.
Entre as tendências místicas que se manifestaram de tempos
em tempos na Corte da Rússia e que teriam podido trazer felizes conseqüências
para o Império e o Imperador, há um particularmente curiosa,
apenas conhecida na Rússia, quase ignorada na Europa: é a
ação de um homem misterioso, voluntariamente modesto, a quem
chamam de "O Mestre desconhecido".
Há três anos, no momento da viagem do Tzar e da Tzarina à
França, quando da sua breve estada em Compiègne, no tempo
do ministério Waldeck-Rousseau, houve uma tarde de descanso durante
a qual os convidados ficaram no castelo. O Imperador e a Imperatriz, oficialmente,
deviam fazer um passeio pelo imenso parque, sem séquito, sem escolta,
sob a vigilância de reduzidíssimo número de policiais.
Na realidade, durante tal passeio o Tzar recebia, num recanto do parque,
a uma personagem cujas roupas quase plebéias e cuja singeleza devem
ter pasmado grandemente aos funcionários encarregados de introduzi-lo
junto a Sua Majestade. Era um homem de uns cinqüenta anos, de estatura
média, vestindo muito modestamente e coberto com um chapéu
de feltro. Fortes bigodes e um rosto enérgico de traços acentuados
davam-lhe o aspecto de um capitão aposentado. Porém, se os
funcionários tivessem olhado bem para essa enigmática personagem,
teriam sido tocados pela expressão dos seus olhos plenos de sorridente
bondade, e pelos quais perpassavam por momentos relâmpagos de gênio.
A sua surpresa foi extrema por verem o Tzar ir ao encontro desse burguês
, tomar-lhe a mão, falar-lhe afetuosamente, quase com deferência
e levá-lo familiarmente consigo. Depois, quando a palestra terminou,
após tempo bastante longo, durante o qual os funcionários
aguardavam discretamente, à distância, o Tzar e a Tzarina reconduziram
o estrangeiro à porta do parque, dele se despediram calorosamente
e o confiaram aos introdutores. Estes acompanharam o estranho visitante
até à estação, onde ele subiu tranqüilamente
num carro de terceira classe. Era o "Mestre Desconhecido".