Os apólogos da santa infância

ELIPHAS LÉVI


primeira parte
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I
Jesus e os passarinhos. Certo dia, o menino Jesus estava brincando com outras crianças; faziam passarinhos de argila, e cada um preferia a sua obra à dos outros. Mas Jesus, tendo abençoado os passarinhos que acabava de fazer, disse-lhes: Vão! e eles voaram. Acontece o mesmo com os sistemas religiosos nas épocas de dúvida: cada um prefere o seu, mas o melhor será aquele que viverá.


II
Jesus e a criança caída. Em outra ocasião, Jesus estava brincando num terraço com crianças de sua idade. Uma delas caiu do alto desse terraço e morreu. Vendo isso, todas as outras crianças fugiram, exceto Jesus. Então os pais da criança morta acorreram aos gritos, acusando Jesus de tê-la jogado. Jesus, sem dar atenção às palavras deles, desceu tranqüilamente, pegou a criança pela mão e a ressuscitou. É desse modo que se acusa a idéia cristã dos males que ela vem reparar.


III
Jesus e o grão de trigo. Certo dia, o menino Jesus pegou um grão de trigo e, abençoando-o, colocou-o na terra. Esse grão germinou e produziu, só ele, o trigo para alimentar todos os pobres do país, e José ainda ficou com o resto. Essa lenda, restituída por Tomás, o Israelita, parece ser a primeira idéia do milagre alegórico da multiplicação dos pães. O grão que Jesus semeou é esta palavra: Vós sois irmãos, associai-vos. A associação centuplicará os recursos da humanidade e se pode dizer, na verdade, que o pão se multiplicará.


DÉCIMA-SEGUNDA LENDA
A morte do carpinteiro José. Quando chegou o tempo em que o bom velho José deveria descansar, suas faculdades se debilitaram, sua memória obscureceu e sua inteligência diminuiu. Maria cuidou dele com ternura e paciência, como havia cuidado de seu filho. Chegou o momento da agonia e José começou a se atormentar dizendo: Ai, ai de mim! porque pequei durante minha longa vida, e que será de minha pobre alma se Deus julgá-la com rigor? Os terrores do inferno me perseguem. Ai de
mim, porque trabalhei bastante durante minha vida e minha morte está cheia de medo. Jesus, então, aproximou-se do leito do doente e lhe disse: José, meu pai, homem justo e laborioso, repousa em paz. O inferno do pobre trabalhador é na terra, e como Deus poderia, após uma vida tão penosa e laboriosa, atormentá-lo ainda após a morte? Em seguida, levantando os olhos, Jesus viu aproximar-se os fantasmas da noite eterna, os esqueletos com olhos ardentes, os demônios horríveis com os membros peludos e monstruosos, as larvas gementes e pálidas, os grifos negros com asas de morcegos e o inferno inteiro se movendo sobre ondas de sombras espessas como a
baleia de Jonas e com uma imensa boca aberta, como que para engolir o mundo. Jesus soprou essas hediondas quimeras e elas se evaporaram como a lembrança de um sonho. E José só viu perto dele Jesus e Maria, que sustentavam sua cabeça entre as mãos e enxugavam o suor frio de sua fronte, enquanto o anjo da morte tocava seus olhos com um ramo de lis, cujo perfume parecia espalhar por todos os seus traços o repouso e o sorriso eternos. Os anjos da fé, da esperança e da caridade receberam sua alma e seu corpo voltou à terra. Mas Jesus ordenou que ele fosse preservado da corrupção, porque, disse ele, sua morte é apenas um sono, à espera de que o reino dos maus tenha passado. Então virá meu reino, o da justiça e da fraternidade, e lembrar-me-ei de meu pai, o velho e corajoso trabalhador. Eu o acordarei de seu sono de morte e ele virá sentar-se junto a mim no banquete da comunhão universal. Que o sepulcro lhe seja, pois, como a crisálida para o inseto laborioso que fia seu sudário e espera uma outra vida mais livre e mais brilhante. Dorme José, dorme pobre trabalhador! Quando despertares, serás herdeiro do céu e, pelo trabalho, poderás conquistar o mundo.


DÉCIMA-TERCEIRA LENDA
O sermão na montanha.
Depois de Jesus ter repelido numa visão todas as coroas da Terra que lhe eram oferecidas pelo gênio do mal, a quem elas pertenciam, e que lhe propunha comprar a tirania ao preço de escravidão, como estava na lei do velho mundo; Depois de ter dominado a fome, o orgulho e a ambição do poder, Jesus, o conquistador pacífico, subiu a montanha, e, cercado de pastores e pecadores, começou seu primeiro discurso: Bem-aventurados aqueles que são pobres de espírito, porque a eles pertence o reino dos céus! Isso queria dizer: Infelizes os escravos da riqueza egoísta, porque só acumularão a miséria eterna! Bem-aventurados aqueles que são dóceis, porque possuirão a terra! É como se dissesse: Infelizes os que querem reinar sobre a terra pela violência, porque o poder lhes escapará! Bem-aventurados aqueles que choram, porque serão consolados! Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Pobres e deserdados, esperai pois! o cristianismo vos abre a porta de um futuro feliz. Bemaventurados os misericordiosos, porque obterão a misericórdia! Compreendemos que a frase acima quer dizer também: Infelizes os homens sem piedade, porque não haverá piedade para eles! Bemaventurados aqueles que têm o coração puro, porque verão Deus! Deus é a verdade e a justiça. Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados de filhos de Deus! Um de nossos poetas disse: o amor é mais forte do que a guerra. A força bruta passará e se consumirá, mas a razão
calma e senhora de si mesma triunfará e terá sempre um novo poder! Bem-aventurados aqueles que sofrem perseguição pela justiça, porque a eles pertence o reino do céu! É perdoando que os mártires provam sua realeza. Quem persegue, abdica, e quem sofre, resiste. Resistir é poder, e poder é reinar. Não vim para destruir, mas para realizar, dizia ainda o filho do carpinteiro, declarando-se assim o iniciador do progresso. O que dizia então ao judaísmo podemos dizê-lo ao catolicismo, nós, os homens do progresso religioso; nós, seus discípulos e continuadores de sua obra! Se vossa justiça, dizia ele, não é mais rica que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus, e podemos dizer: Se não sois melhores e mais justos que os mais ardentes do velho mundo e da Idade Média, não entrareis na associação universal do cristianismo realizado. Cristo disse: Aquele que injuriar seu irmão merecerá condenação; e nós dizemos: Aquele que não cuidar de seu irmão e que tratar como estranho um só membro da família humana, merecerá ser renegado pela família e terá lugar no julgamento dos fratricidas. Cristo disse: Perdoai sempre, e nós dizemos: Não vos ofendais mesmo com o mal que vos possam fazer. Os maus são doentes, tratai-os e não vos irriteis contra eles. Ele disse: Prestai atenção, antes do vosso sacrifício, se vosso irmão não tem alguma coisa contra vós e ide reconciliar-vos com ele antes de vossa prece. E dizemos: Antes de vos sentardes à mesa perguntei a vosso irmão se não precisa de nada; dai primeiramente uma parte de vosso pão a quem não o tem, em seguida sentai no banquete da comunhão e Deus vos reconhecerá como seus filhos. Ele disse: Aquele que abandona sua mulher é um adúltero, e aquele que rechaça sua companheira a impele à prostituição. E nós dizemos: Aquele que prostitui uma mulher, ultraja sua mãe, e aquele que casa sua filha por dinheiro, vende sua filha, e aquele que compra ou vende uma mulher, a prostitui; porque a essência do casamento é oamor e as relações conjugais sem amor são a impureza. Cristo disse: Não jureis, mas que vossa palavra seja sagrada. E nós dizemos: Para que a palavra seja sagrada é necessário que ela seja livre. Libertemos a inteligência; não fechemos a boca senão à mentira. Aquele que sufoca a palavra verdadeira é um deicida. Condenar não é responder. Perseguir uma idéia é sancioná-la. Um homem inteligente que fala fora de tempo pode não ter razão, para julgar é preciso ouvi-lo. Aquele que é forçado a se calar tem sempre razão. Quanto à perversidade e à estupidez, o próprio bom senso impõe-lhes silêncio. Ele disse: Oferece a face esquerda se te baterem na direita; e se te tomarem a túnica, abandona também teu manto. E nós dizemos a nossos irmãos: Quando vos caluniarem por ter dito a verdade ireis vos expor ainda à injustiça, e quando tiverdes sofrido a injúria e a calúnia, ireis vos expor com júbilo à miséria e à morte no desprezo. Quanto mais vossos inimigos vos batem, mais eles enfraquecem; quanto mais sofreis, mais sois fortes. Cristo disse: Não sejais hipócritas. E nós dizemos: Prestai solicitude a todos, falai menos de moral e sede menos infames. Sede francos e modestamente homens, e não procureis encobrir as torpezas da estupidez sob as asas de um anjo. Ele disse: Não se pode servir a Deus e ao dinheiro. E nós dizemos: A propriedade não se faz respeitar quando não tem por origem o trabalho e por regra a fraternidade na associação. Ele disse: Não julgueis e não sereis julgados. E nós dizemos: Operai a transformação da penalidade em higiene moral, levantai aquele que cai e não batais nele; daí às enfermidades morais tratamentos morais, e não punições ímpias; não gireis em um círculo sangrento punindo o homicídio, porque agindo dessa forma dais de algum modo razão aos assassinos e perpetuais uma guerra de canibais. Se quereis que o homicídio seja realmente um crime, fazei com que não seja jamais um direito, e lembrai-vos desse condenado que dizia: Assassinando, arrisquei minha cabeça; vós ganhais, eu pago: estamos quites. E em seu pensamento acrescentava: Somos iguais. Cristo disse: Procurai primeiramente o reino de Deus e sua justiça e o resto vos será dado por acréscimo. E nós dizemos: O reino de Deus não é o reino da fome para Lázaro e das
orgias do rico mau. O reino de Deus é o sol para todos, e a terra para todos é a fraternidade do trabalho, é a prostituição tornada impossível pelo respeito à mulher, é a escada social acessível, em todos os seus degraus, ao trabalho e mérito de todos. É o trabalho para todos; é a família para todos, é a propriedade para todos, é o reino da razão, é o sacerdócio do amor, é a comunhão de cada um em todos e de todos em cada um, é a unidade divina e humana, Deus vivo na humanidade, o Cristo ressuscitado e vivo no grande corpo do povo cristão; a liberdade progressiva e submetida à ordem, a igualdade relativa na ordem da hierarquia e a fraternidade distribuindo tudo a todos, segundo as leis da harmonia, que é a eterna sabedoria.


DÉCIMA-QUARTA LENDA
Algumas palavras de Jesus Cristo que não estão nos Evangelhos canônicos e que foram conservadas pela tradição dos primeiros séculos. Jesus estava certo dia, com seus discípulos, nos limites da Judéia, nas proximidades do deserto, e se perderam nas montanhas. Encontraram um pastor que estava deitado à sombra de um sicômoro e perguntaram-lhe o caminho. O pastor, que era preguiçoso, não se deu ao trabalho nem de levantar nem de lhes responder, mas apenas estendeu o pé na direção que deveriam seguir, e nem mesmo voltou a olhar para eles. Eles se foram e encontraram uma jovem que voltava da fonte, sustentando sobre a cabeça um cântaro de água.
Perguntaram também a ela qual o caminho, e a jovem não só lhes indicou, mas, carregada como estava, pôs-se a andar na frente deles e só os deixou após tê-los colocado em seu caminho. Mestre, disse São Pedro, qual será a recompensa dessa jovem tão diligente e tão caridosa? - Ela se casará com o pastor preguiçoso, respondeu Jesus. E, como os discípulos ficassem espantados, ele lhes disse: A felicidade da mulher é ser mãe e, quando ela salva, por seu amor, o homem com quem divide suas próprias virtudes, ela é mãe duas vezes, porque seu esposo e o filho que ele lhe dá precisam igualmente dela. Todo sacrifício feito por amor aumenta o amor, e tudo o que aumenta o amor aumenta a felicidade. Que ouça isso quem tem ouvidos para entender. Então João, o discípulo bem-amado, aproximando-se do mestre, disse-lhe: Creio em vossa palavra e sei que assim será em vosso reino. A felicidade da devoção será aqui o primeiro prêmio do sacrifício, e será recompensado aquele que fizer o bem oferecendo-lhe ocasião de fazer mais bem ainda. Mas, dizei-me, quando virá vosso reino e por que sinal os homens o reconhecerão? Jesus respondeu: Quando dois forem apenas um, quando o que está dentro estiver fora e quando o homem com a mulher não forem nem homem nem mulher; Isto é, quando tiver cessado o antagonismo entre a inteligência e o amor, entre a razão e a fé, entre a liberdade e a obediência. Quando o pensamento evangélico, que é a fraternidade, for realizado pelas formas políticas e sociais; E quando a mulher for a irmã pura e a esposa bem-amada do homem, diante da sociedade assim como diante de Deus, sem que haja antagonismo ou rivalidade entre os dois sexos. Essa palavra, citada pelo papa São Clemente, autor contemporâneo dos Apóstolos, é todo o programa da renovação social operada pelo ideal cristão. Jesus diz ainda: A vida é um banco; sede hábeis cambistas. Aquele que dá ganha mais que aquele que rebece. Se, pois, pretendeis enriquecer, dai.

DÉCIMA-QUINTA LENDA
A direita e a esquerda de Jesus, o Thabor e o deserto, o povo organizado em grupos. Jesus revela-se a seus três discípulos mais inteligentes, como o centro da humanidade, colocando-se, no passado, entre Moisés, o homem da ordem e da doutrina, e Elias, o homem do protesto e da profecia insubmissa. Tal é a significação dessa transfiguração do Thabor onde Pedro queria edificar três tabernáculos, um para Moisés, um para Cristo e o terceiro para Elias: mas o tempo da síntese não havia ainda chegado. Não esqueçamos que os evangelistas colocaram em ação toda a parte esotérica ou oculta do Evangelho, e que para dizer: Jesus elevou o espírito de seus
discípulos a uma grande altura e fez com que compreendessem toda a verdade de sua doutrina, eles dizem: Jesus os conduziu sobre uma montanha e, transfigurando-se, diante deles, apareceu a todos resplandecente de luz, de modo que seu rosto estava brilhante como o sol e suas roupas deslumbrantes como a neve. João e Tiago disseram-lhe então: Mestre, fazei-nos sentar um à vossa direita, outro à vossa esquerda, quando vosso reino tiver chegado. Jesus disse-lhes: Posso conceder-vos parte em meu cálice e em meu batismo; mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda, não cabe a mim conceder; esses lugares estão reservados àqueles que são predestinados por meu Pai. Assim Jesus esperava ainda dois homens para completar sua doutrina e concluir sua obra: o homem da direita, isto é, o homem da ordem e da organização; e o homem da esquerda, isto é, o homem da expansão, do amor e da harmonia. Quanto à organização social, Jesus indicou-a sumariamente na parábola da multiplicação dos pães, onde lemos que Jesus dividiu o povo em grupos de cem e de cinqüenta, secundum contubernia, segundo morassem ou pudessem morar juntos.
Depois repartiu, entre todos, os cinqüenta pães e os dois peixes que representavam o primeiro avanço da pobreza crente na associação, e a associação multiplicou de tal modo esses débeis recursos, que, com aquilo que sobrou, podiam-se encher doze cestos. Aqui, o que afirmamos sobre o simbolismo dos milagres evangélicos está suficientemente comprovado pelo absurdo da letra e a impossibilidade material do fato, como o doutor Strauss teve o trabalho de demonstrar. Mas o sentido da parábola é admirável, a parábola é necessária quando a verdade é perigosa ou inútil de ser revelada. Também Jesus dissera: Tenho ainda muitas coisas a vos ensinar, mas não podereis carregá-las agora. O espírito de inteligência virá e vos ensinará toda a verdade. Primeiro todo o velho mundo deveria dissolver-se e perecer, depois esse espírito deveria chegar e renovar a face da terra. Talvez estejamos na hora da dissolução universal, mas tranqüilizamos nosso coração e esperamos: porque, sobre as ruínas, já podemos ver a pomba celeste e o sopro da revelação renovada já se ergue nas nuvens do Oriente.


DÉCIMA-SEXTA LENDA
O que é a comunhão. Para mostrar que todos têm direito ao pão que alimenta e ao vinho que fortifica, Jesus, falando em nome da humanidade, disse do pão: Isto é minha carne; e do vinho: Isto é meu sangue. E o pão é verdadeiramente a carne da humanidade, como o vinho é verdadeiramente o sangue daqueles que o bebem; porque o pão renova a carne e o vinho esquenta o sangue. Ora, Jesus, falando em nome da própria humanidade, disse: O pão que conquistei por meus trabalhos e por minha morte é minha carne e eu a dou a todos a fim de que todos a comam; o vinho é meu sangue e eu o derramarei para todos a fim de que todos bebam e vivam de minha vida. É dessa maneira que Cristo constituiu a unidade divina e humana: dando-lhe por base a comunhão do pão e do vinho na qual todos são chamados por Deus, e a qual não se pode recusar a ninguém. Assim aquele que priva injustamente seu irmão de sua parte na comunhão do pão, rasga e se apropria de um pedaço da carne de Cristo; ele come assim o que deveria ser a carne de seu irmão e através dessa antropofagia deicida, ao invés de comungar com a humanidade, comunga com seus
carrascos. Mas para que a comunhão do pão seja possível na realidade e sem representações, é necessário que não mais haja preguiçosos. "Aquele que não trabalha não deve comer." E para que a comunhão do vinho não seja uma desordem é preciso que não mais existam bêbados. Advertência ao povo!


DÉCIMA-SÉTIMA LENDA
O julgamento de Jesus. Não repetiremos aqui os fatos narrados pelos quatro evangelistas pois eles são conhecidos de todo o mundo. O grande drama da paixão é, há dezoito séculos e meio, o julgamento escrito dos sacerdotes e reis, a condenação sangrenta das leis do velho mundo e o protesto imortal dos condenados contra uma sociedade deicida. Somente um dos evangelhos apócrifos ou secretos, o de Nicodemos, acrescenta à narração dos quatro algumas circunstâncias muito notáveis; são elas: Quando Pilatos fez Jesus entrar no pretório para interrogá-lo, as águias de Roma e as imagens dos deuses que portavam os estandartes inclinaram-se diante do rei
do futuro. Os judeus irritados exclamavam: César foi traído. Eis que são rendidas a este homem as honras do império. O próprio Pilatos ficou pasmado e perguntou aos vexilários o que significava aquilo que acabava de acontecer: eles protestaram dizendo que o faziam contra sua vontade e que não podiam evitá-lo. Pilatos fez vir os homens mais robustos do pretório e os mais hostis a Jesus (pois foram esses que, uma hora depois, flagelaram-no e o coroaram de espinhos); em seguida confiou-lhes as insígnias recomendando que as mantivessem firmemente; e os simulacros divinos inclinaram-se uma segunda vez diante de Jesus à vista de todo mundo e ficou provado que a força dos homens nada pode contra a mudança das idéias e que os signos religiosos mais protegidos pelo poder caem por si mesmos e se inclinam diante dos símbolos proscritos que o progresso revela, protestando contra o julgamento dos homens e simpatizando com a agonia dos mártires. Jesus foi, pois, interrogado em segredo por Pilatos, em seguida foi conduzido até os judeus, e seus acusadores foram ouvidos; eram, como se sabe, os príncipes dos sacerdotes, os anciões do povo, os fariseus, os escribas e os doutores, isto é, tudo o que havia de considerável e de respeitado na nação judaica. Pilatos perguntou se ele não tinha também algumas testemunhas que o absolvessem. Fez-se, de início, um grande silêncio porque os raros amigos de Jesus tiveram medo. Finalmente Zaqueu, o publicano, levantou timidamente a voz para dizer que Jesus bebera e comera em sua casa, e depois lhe tocara o coração pela sabedoria de seus discursos. Os risos e as algazarras da multidão não o deixaram completar, porque os publicamos eram vistos como homens infames, e os fariseus fizeram valer o testemunho de Zaqueu como uma prova a mais contra Jesus. Depois de Zaqueu, foi uma mulher toda chorosa que se lançou aos pés do procônsul; não deixaram que ela proferisse nem mesmo uma só palavra; um grito de reprovação elevou-se de toda a multidão: É Madalena, a prostituta, é esta que derrama aos pés desse vagabundo os perfumes preciosos que ela paga com sua pessoa; ela é digna dele e ele não é indigno dela! Excomunhão para os infames! Entretanto, o cego de Jericó acabava de atravessar a multidão e gritava, estendendo as mãos para se fazer escutar: Nasci cego e Jesus me devolveu a visão! - É um imbecil! gritaram os padres; não o escutem, ele não merece crédito: nós o expulsamos da Sinagoga. - Estava morto e ele me ressuscitou, disse então um homem de Betânia chamado Lázaro. Pilatos e os romanos começaram a rir: os judeus saduceus soltaram gritos selvagens; e Lázaro foi expulso pelos lictores. Então uma senhora rica e considerada adiantou-se e disse: Sou viúva, meu nome é Seraphia; afligia-me um fluxo de sangue que me fazia morrer aos poucos. Um dia Jesus estava passando, acompanhado de uma multidão de pobres que ele instruía, de mulheres do povo que consolava e de doentes que havia curado. Aproximei-me dele sem nada dizer e apenas toquei na franja de sua roupa: então fui tomada de veneração e de susto, porque me senti curada. A essas palavras os judeus começaram a murmurar; todavia continham seus clamores porque Seraphia era rica e respeitada. Pilatos então tomou a palavra e disse: Façam retirar esta senhora, ela não pode ser admitida como testemunha neste processo, porque, segundo vossas leis, que são as de todo o Oriente, o testemunho de uma mulher é nulo em justiça. Depois de Seraphia, ninguém ousou levantar a voz a favor de Jesus; os que eram considerados pessoas honestas acusavam-no e ele só tinha em sua defesa pessoas sem reconhecimento, pessoas suspeitas de lepra ou de devassidão, pessoas da populaça e mulheres. Ele foi, pois, condenado e não se encontraram expressões para resumir seus crimes; escreveram por escárnio. É o rei dos judeus. Seraphia, que foi depois chamada Verônica, vendo que seu testemunho não podia salvar seu Salvador, foi chorando esperá-lo no caminho quando ele saía da cidade carregando sua cruz, e apesar dos gritos dos algozes e das pancadas dos soldados, ela se aproximou dele e lhe enxugou o rosto com uma toalha fina, que guardou a marca de sangue dos traços de Jesus. E os mártires dos primeiros séculos não tinham outra imagem de seu mestre que não os traços de sangue que marcavam o lugar dos traços de Jesus sobre a toalha de Seraphia.


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