RAIMUNDO LÚLIO
UM ÚNICO PENSAMENTO E UM ÚNICO AMOR - Parte I

Fr. Zelator S:::I::: S:::I:::I::: M.: I.:


Maiorca, a maior das pequenas ilhas que constituem o arquipélago das Baleares, no Mediterrâneo, foi conquistada aos árabes em 1229 pelo rei Jaime I. O reino de Maiorca, a partir de então, passou a integrar os territórios das ilhas Baleares, junto com Roussillon e Montpellier, no Languedoc.


O pai de Lúlio tomou parte nessa brava conquista e talvez por essa razão o rei, em 1249, escolheu Lúlio, então com apenas uns quatorze anos(1), para o cargo de pajem de seu segundo filho, ainda criança, o futuro rei Jaime II. Poucos anos depois passaria a exercer a função de mordomo do príncipe. O próprio Lúlio conta-nos(2) que nessa época sua vida era frívola e dissoluta; gostava de compor trovas e poemas para as moças do lugar, e facilmente se envolvia com elas. Com vinte e dois anos, casou-se com Blanca Picany, a qual lhe deu dois filhos, Domingos e Madalena. O matrimônio, contudo, não tornou Lúlio mais sensato. "Apesar da ajuda que recebi dos anjos e das pregações dos religiosos - diz na sua autobiografia - cheguei a ser o pior dos homens e o maior pecador desta cidade e de todas as redondezas"(3).
Em 1265, aos trinta anos de idade, a vida de Lúlio sofreu uma profunda modificação. Estando uma noite entretido compondo rimas para uma dama que então - com palavras suas - amava com loucura, apareceu-lhe de repente Jesus crucificado. Durante os dias seguintes, esta aparição repetiu-se outras quatro vezes. Lúlio, que nunca duvidou da autenticidade dessa visão sobrenatural, experimentou uma súbita conversão.


Dois grandes e elevados propósitos configuraram-se então na sua alma arrependida. Dois grandes desejos, definitivos, aos quais dedicaria todas as suas forças, toda a sua vida, entregue, a partir de então, ao serviço de Cristo.
O primeiro foi aceitar e preparar-se para o martírio. Este pensamento retornará repetidas vezes ao longo de sua vida e, ao mesmo tempo, iluminará e explicará a generosa atividade de Lúlio em favor dos outros. O segundo, consistia em dedicar-se à conversão dos infiéis e incrédulos para a verdade da santa fé católica. Estes dois propósitos podem unificar-se num único: entregar-se à conversão dos infiéis, arriscando, nessa empreitada, a própria vida .


Sua intenção foi, portanto, muito clara e impregnou sua extensa obra escrita. Se levarmos em conta, além dessa determinação, o seu temperamento muito impulsivo, teremos reunidos os elementos que explicam a vida e a obra do filósofo maiorquino. Todos os seus escritos serão ação, e não pura especulação desinteressada.
Lúlio, pouco depois da conversão, repara, com grande acerto, que não possui a ciência necessária para uma empresa tão grande. Então, uma terceira inspiração preenche de repente seu coração e sua inteligência. Comporá um livro que será o mais eficaz de todos no combate aos erros dos infiéis. Mas isso ainda é pouco. Lúlio vê que, sozinho, de pouco valeriam seus esforços. Tem então a idéia de ir ao encontro do Papa, dos reis e príncipes cristãos e exortá-los até obter deles a fundação de diversos mosteiros onde religiosos e outras pessoas competentes pudessem estudar as línguas dos infiéis. Uma vez preparados, seriam enviados às terras dos descrentes para convencê-los da verdade da fé católica, mediante a pregação.


Três meses mais tarde, decide vender parte de seus bens e inicia uma série de peregrinações a diversos santuários cristãos: Nossa Senhora de Rocamador, Santiago de Compostela, na Galíza, etc. De volta, decide ir a Paris a fim de preparar-se doutrinalmente para a refutação das heresias, mas seus familiares e amigos (especialmente São Raymundo de Penhaforte, a quem encontra em Barcelona), temendo que se transformasse em um escolástico a mais como tantos de seu tempo, aconselham-no a permanecer em sua terra natal. Assim o faz Lúlio que, logo a seguir, começa a estudar a língua árabe com um escravo muçulmano - que tentará matá-lo - e a adentrar-se, de uma maneira bastante autodidata, no conhecimento da filosofia oriental árabe e judaica, buscando uma síntese com a escolástica cristã do século XII. A essa tarefa dedicará dez anos.


Por volta de 1272, Lúlio escreve, primeiro em árabe e depois em catalão, o Llibre de Contemplació, verdadeira enciclopédia de conhecimentos teológicos e naturais, de grandes proporções. Consiste num apaixonado monólogo que a criatura dirige ao seu Criador. Começa considerando o Ser eterno, seus atributos e operações, a criação e as virtudes de Cristo, entremeando todos os argumentos com sublimes trechos sobre psicologia humana, moral, teodicéia e apologética. Finalmente considera o amor, a oração e a contemplação. Toda a linguagem é fortemente expressiva e transbordante de lirismo. Esta obra, que em certo sentido foi comparada á Summa canônica de Penhaforte e à Summa Teológica do Aquinate, contém já a matriz do original pensamento Luliano.


Aos quarenta anos de idade, Lúlio, com o desejo de entregar-se completamente à contemplação, retira-se para o monte Randa, nas suas propriedades, perto da cidade de Maiorca. Passa, também, algumas temporadas no mosteiro cisterciense de Santa Maria la Real. Será lá, na solidão de Randa, que Deus iluminará poderosamente sua inteligência. Verá a síntese universal - o sistema e também o método - que depois descreverá nos seus escritos. Foi essa profunda vivência que lhe valeu o título de "Doutor Iluminado".
Na posse dessa sublime graça, Lúlio escreve Art abreujada d' atrobar veritat, a primeira versão da Ars, base de todo o seu sistema filosófico e teológico, ou melhor, método universal para todas as ciências. Nesta obra, Lúlio reduz todos os conhecimentos humanos a um pequeno número de princípios e, depois, mostra todas as relações possíveis que se podem dar entre as idéias, mediante uma combinatória sustentada em figuras geométricas. Até a sua morte, Lúlio reelaborará sua "Arte" uma e outra vez, buscando simplificá-la e torná-la acessível a todos. A verdade, porém, é que não o conseguiu. Mas seria injusto não ver nessa tentativa de síntese universal um esforço sincero - que dura uma vida inteira -, por resolver o difícil problema do conhecimento humano. Também não é exato ver nessa Ars uma obra exclusivamente lógica; a preocupação de Lúlio foi, em primeiro lugar, metafísica: deseja um conhecimento unitário da realidade. Lúlio, por essa obra, tem sido visto como um precursor longínquo da logística moderna.


No ano de 1275, mais exatamente no dia 13 de março, Lúlio, devido às insistentes queixas de sua esposa, que não se conformava com o seu estilo de vida, decide nomear um administrador de seus bens e abandona definitivamente a família.
Algum tempo depois, morto Jaime I, o Conquistador, e tendo-lhe sucedido seu segundo filho, Jaime II, Lúlio apresenta-se em Montpellier, sede da corte do rei. O soberano encarregou um frade menor de examinar as obras de seu antigo mordomo, particularmente o Llibre de Contemplació. O bom frade, diz a Vita coetanea, constatou, não sem admiração, que os escritos estavam repletos de ensinamentos e de verdadeira devoção católica. A partir deste momento, Lúlio será conhecido como "Mestre". Pouco tempo depois, obteve a fundação, em Miramar, de um colégio de línguas onde, sob sua direção, treze frades menores se preparavam, estudando línguas - sobretudo o árabe - e a sua "Arte" para a evangelização dos infiéis. Aquela instituição, de profundo intuito apostólico e num dos lugares mais belos da ilha de Maiorca, conseguiu a aprovação do Papa João XXI, o lisboeta Pedro Hispano, em 17 de outubro de 1276.
De 1276 a 1279, Lúlio dedicou-se ao ensino e ao desenvolvimento de sua "Arte" e à contemplação. Data dessa época sua Art demonstrativa. Foi lá, em Miramar, que compôs os elevados pensamentos do Livro do amigo e do Amado, ao estilo dos místicos sufis, diante das suaves colinas maiorquinas mergulhando nas águas azuis do Mediterrâneo.


Torna-se difícil determinar o que Lúlio fez nos anos que se seguiram. Em parte, porque somente em 1293 começará a definir nos seus livros o lugar e a data em que foram escritos. Alguns autores pensam que, até 1282, teria dado a volta a todo o mundo então conhecido, visitando sucessivamente Roma, Alemanha - onde teria sido acolhido com benevolência por Rodolfo I de Habsburgo -, o norte da Europa e o Oriente, até as Índias, o Egito e o Magreb, de onde teria embarcado para a Inglaterra.
Parece que entre 1283 e 1285 escreveu em Montpellier - residência habitual de seu protetor Jaime II -, a parte essencial do Blaquerna, novela autobiográfica. É uma de suas grandes obras literárias, em parte utópica, pois nela defende uma ampla e profunda reforma social. Lúlio, no Blaquerna, nos revela suas experiências de contemplativo, suas angústias de apóstolo-filosófo, e seu amor à natureza e à solidão. Traça uma reforma completa da Igreja e apresenta na pessoa de Blanquerna o ideal do matrimônio cristão, as normas de educação dos filhos e as figuras do monge, do bispo e até do papa. O capítulo 96, "De como o papa Blanquerna renunciou ao pontificado", criou um sério problema entre os críticos: até hoje não se conseguiu precisar se reflete a renúncia de Celestino V, ou se a precedeu no tempo.
Existe suficiente fundamento para pensar que em 1278 Lúlio achava-se em Roma, enquanto o Papa Nicolau III despedia uma embaixada de cinco frades menores franciscanos para o Grão Khan da Tartária. Sabe-se que, então, Lúlio propôs aos cardeais a delicada questão de "se os cristãos seriam responsáveis pela ignorância que os infiéis têm da santa fé católica"(4).


Em 1285 escreve Los cent noms de Deu e os poemas Plant de la Verge e Hores de Nostra Dona Maria. Nesse mesmo ano, vai a Bolonha e no ano seguinte a Paris, onde teve lugar a celebração do capítulo geral dos dominicanos. Em 1287, parte para Roma onde chega pouco depois da morte de Honório IV, em 3 de abril. Seu desejo de solicitar ao papa novas fundações de escolas de línguas semelhantes à de Miramar, via-se assim frustrado. Prevendo um conclave demorado, Lúlio dirige-se a Paris onde o chanceler da Universidade, Bertaut de Saint-Denis, em 1288, autoriza-o a ensinar sua "Arte" na Universidade de Paris.


No entanto, pouca acolhida tiveram as suas aulas em Paris. Por esta razão, Lúlio pouco tempo se demorará naquela cidade. É lá, todavia, que toma contato com o averroísmo latino, doutrina filosófica que, vista na sua globalidade, contrasta totalmente com a sua. Assim como Lúlio pretendia unificar todo o saber, vendo o conjunto da realidade à luz de uma única verdade, o averroísmo rasga em dois a unidade do verdadeiro, com a sua teoria da dupla verdade, uma filosófica e outra teológica. Daí em diante, Lúlio combaterá com todas as suas energias essa heresia.
É lá, em Paris, cidade em que confluem todas as correntes de pensamento do século XIII, onde Lúlio escreverá a sua segunda novela doutrinal, o Félix de les merevelles, que narra as viagens de um homem que procura ansiosamente a verdade admirando-se do que vê.
Antes de partir de Paris, Lúlio escreverá duas cartas, uma ao rei Filipe, o Belo, e outra à Universidade, solicitando a instituição naquela cidade de um colégio de línguas onde seus alunos pudessem aprender o grego, o árabe e o tártaro. Referindo-se a esses pedidos, Lúlio nos dirá no "Félix" que "desejava que tudo fosse submetido à aprovação e à confirmação do papa e, assim, a sua obra seria estável e permanente". Seus bons propósitos, todavia, não tiveram a mínima acolhida.


De volta a Montpellier, percebendo que sua "Arte" era demasiadamente complicada para os mestres e alunos da Universidade, reduziu de 4 para 3 o número de elementos de seu sistema combinatório numa nova Art inventiva. Aquele fora também um tempo de novas experiências místicas: escreve L'art amativa, o Arbre de filosofia desiderat e o Llibre de Santa Maria. Nessa cidade do sul da França, Lúlio se encontra com o novo ministro geral da ordem franciscana, Raymundo Jofré ou Gaufredi, que compartilhava o ideal de reforma da Igreja por meio da pobreza e de uma intensa vida interior, e no desejo de converter os infiéis, especialmente os muçulmanos. No dia 26 de outubro de 1290, Jofré recomendará Lúlio a todos os conventos franciscanos de Roma e da Apúlia, autorizando-o a ensinar sua "Arte".
Contudo, as ânsias de receber o martírio tornavam-se cada vez mais fortes. Lúlio quer ver transformados em realidade seus planos missionários. Durante uma rápida estada em Gênova traduz para o árabe sua Ars inventiva veritatis e, depois, vai para Roma para, uma vez mais, solicitar ao Papa Nicolau IV - o franciscano Jerônimo d'Ascoli, que fora ministro geral dos menores franciscanos na época da fundação do colégio de Miramar - a autorização para instituir novos mosteiros destinados ao estudo das línguas estrangeiras.


Lúlio pensava que esse papa seria mais favorável a suas idéias pois a Cristandade toda estava então comovida pela perda recente, em São João de Acre, dos últimos territórios cristãos na Palestina. Esperançado, dirige a Nicolau IV seu Quomodo Terra Sancta recuperari potest e o Tractatus de modo convertendi infideles. Porém, uma vez mais, nada conseguiu.
Depois de ter refletido sobre todos esses acontecimentos, conta-nos sua autobiografia que Lúlio se dirigiu a Gênova a fim de embarcar para terras sarracenas. Deseja, de uma vez por todas, experimentar se é capaz de realizar sozinho entre eles algo de bom, discutindo com seus sábios e convertendo-os à fé católica com a ajuda da "Arte" que Deus lhe havia inspirado.


Ora, é natural que um homem que luta, e que luta durante muitos anos, acumule ao longo da vida muitas vitórias, e também muitas derrotas. Será lá, em Gênova, à idade de sessenta anos, que Lúlio passará pela maior crise espiritual de sua vida. Temendo ser assassinado pelos sarracenos, ou colocado talvez na cadeia pelo resto de seus dias, obcecado pelo medo, resolve ficar em terra. A partir desse momento, cairá sobre ele um estado de escuridão interior, de dúvidas e de escrúpulos, que beira o desespero. Por fim, Lúlio supera a prova e parte sozinho para Tunis, em 1293, feliz de entregar-se ao ideal apostólico que o consome e, talvez, pela possibilidade de selar sua fé com o próprio sangue.
Em Tunis começa a discutir em plena rua com os sábios da cidade. Um deles denunciou-o rapidamente ao califa Abu-Hafs, que convoca um conselho que condenará Lúlio à pena de morte. Graças à intervenção de um chefe mouro, que possuía alguma influência sobre o califa, a pena capital é comutada pela de expulsão. Antes, porém, de ser levado ao navio, ao ser retirado da cadeia, Lúlio será vexado, escarnecido e golpeado.
Pouco tempo depois desembarca em Nápoles onde dará aulas sobre sua "Arte", até a eleição do papa Pietro di Morrone, em 5 de agosto de 1294, que adotou o nome de Celestino V. No dia 13 de dezembro do mesmo ano, contudo, Celestino V renunciará. Lúlio, antes, expôs ao papa seus planos para a conversão dos infiéis, particularmente dos tártaros, que, conforme pensava, se unidos aos cristãos, viriam a ser uma ajuda decisiva contra os muçulmanos.