Os últimos iniciados do velho mundo
Apolônio de Tiana, Máximo de Éfeso e Juliano. Os pagãos da revolução - um hierofante de ceres no século dezoito. O sacrifício de si mesmo pelos outros tem algo de aparentemente tão insensato, mas tão sublime em realidade, que esse antagonismo que se encontra entre a razão egoísta e o entusiasmo do devotamento justifica totalmente o Credo quia absurdum do paradoxal Tertuliano. A fé, como a antiga Minerva, nasceu armada e se apresenta inicialmente como triunfante. A própria natureza, a santa e imortal natureza, parecia vencida por um instante, porque estava superada. No dia em que o homem morreu voluntariamente para salvar os outros, o sobrenatural foi provado.
Então
os sábios deste mundo e os raciocinadores se espantaram; procuraram
no Evangelho o segredo do poder do cristianismo e não o encontraram.
Viram apenas uma compilação mística de parábolas
judaicas e de alegorias egípcias; resolveram opor um livro a esse
livro e um homem a Jesus Cristo, e assim foi escrita a vida de Apolônio
de
Tiana. Esse monumento contemporâneo dos Evangelhos não foi
suficientemente estudado: encontram-se aí histórias e símbolos;
a fábula aí obscurece a verdade, mas esta fábula é
sempre uma doutrina apresentada sob o véu da alegoria. É dessa
forma que a viagem de Apolônio à Índia e sua visita
ao rei Hiarchas no país dos Sábios epresentam todo o dogma
de Hermes e contêm todos os signos convencionados, todo o segredo
dos antigos santuários, isto é, a grande obra da ciência
e da natureza. Os dragões da montanha são os metalóides
ígneos que contêm o mercúrio filosófico; o poço
onde se encontram os reservatórios da chuva e do vento é a
adega onde fermenta o fogo eletromagnético alimentado pelo ar e excitado
pela água. O mesmo acontece com outros símbolos. O rei Hiarchas
parece enganar-se quanto ao fabuloso Hiram, do qual Salomão obtinha
os cedros do Líbano e o ouro de Ophir.
Notemos que
Jesus não pedia nada aos reis de seu tempo e que quando Herodes o
interroga ele não se dá ao trabalho de responder. Apolônio
é sóbrio; é casto como
Jesus e como ele se devota a uma vida errante e austera. A diferença
essencial entre um e outro é que Apolônio favorecia as superstições
e Jesus as destruía. Apolônio incita a derramar o sangue e
Jesus maldiz as obras do gládio. Uma cidade está afligida
pela peste; Apolônio chega, o povo, que o vê como um taumaturgo,
precipita-se em torno dele e o conjura a fazer cessar o flagelo. A peste
que vos aflige, ei-la! exclama o falso profeta mostrando um velho mendigo.
Apedrejai este homem e o contágio cessará. Sabe-se do que
é capaz uma multidão furiosa, cheia de superstição
e de medo.
O velho desapareceu
sob um monte de pedras. Filostrato acrescenta que depois desentulharam o
lugar do assassínio e que lá só encontraram o cadáver
de um grande cão
negro; e aqui o absurdo não chega a justificar a atrocidade. Jesus
não fazia apedrejar ninguém, nem mesmo a mulher adúltera;
rejeitava os flagelos públicos sobre a cabeça do pobre Lázaro,
que o mau rico repelia de sua porta e do qual os cães tinham piedade.
Para curar a miséria, esta peste aos olhos dos afortunados, oferecia
o paraíso e não o último suplício. Apolônio
aqui não é senão um miserável feiticeiro, e
Jesus é o filho de Deus. Apolônio tem visões; assiste
em espírito a morte do tirano de Roma e solta gritos de alegria.
Coragem! diz ele dirigindo-se aos assassinos; batei, imolai esse monstro!
Jesus não tem uma palavra de maldição contra Herodes
e contra Pilatos e ora mesmo por eles ao mesmo tempo que por seus algozes,
quando diz esta palavra sublime: Pai, perdoai-lhes; porque não sabem
o que fazem! O gênio de Apolônio é uma brilhante loucura
que se revolta e protesta, o de Jesus é uma razão modesta
que aceita e se submete. Com Apolônio de Tiana o velho mundo parecia
ter dito sua última palavra; mas a Providência, que é
boa jogadora, deu-lhe ainda Juliano, para que ele pudesse, mais uma vez,
tomar sua desforra. Juliano era um filósofo como Apolônio e
um imperador como Marco Aurélio.
Mas também
era um sofista à maneira de Libânio, e concedia toda sua confiança
a charlatões como Jâmblico e Máximo de Éfeso.
Jamais este espírito inflexível e elevado pôde compreender
os doces mistérios da manjedoura. Juliano não amava as mulheres
e não tinha filhos, era casto menos por sacrifício que por
menosprezo ao prazer; sua rudeza filosófica o fazia negligenciar
até os mais comuns cuidados de limpeza. Ele confessa, no Misopogon,
que seus cabelos e sua barba eram freqüentados pelos
mais sórdidos insetos e o diz quase como se fosse um mérito.
Aqui o César pediculosus torna-se verdadeiramente grotesco. Oh! o
belo queixo de bode! oh! o barbudo mal penteado!, cantavam os habitantes
de Antióquia. Juliano acredita responder exprobando aos cantores
sua debilidade e seus desregramentos. Como se os vícios de uns pudessem
autorizar a imundície de outros. Esse herói sujo, que, apesar
de tudo, havia recebido do cristianismo uma nuance indelével de filantropia,
era, por religião, amante dos sacrifícios e do sangue.
Que vítima
foi esse grande filósofo! que açougueiro esse excelente príncipe!
diziam os antepassados de Pasquino. Também o vemos sempre com as
roupas arregaçadas e as mãos repletas de vísceras fumegantes.
Não estávamos mais no tempo em que os príncipes gregos,
cantados por Homero, estrangulavam e despedaçavam, eles próprios,
as vítimas. Juliano não compreendia nem sua época nem
a dignidade de sua classe. Nero pudera fazer-se histrião porque,
segundo a bela expressão de Tácito, o terror era razão
do menosprezo; mas Juliano, bom demais para se fazer temer, muito desagradável
para se fazer amar, não podia escapar ao ridículo ao exercer
as funções repugnantes dos sacrificadores antigos. Sacrifica-se
enfim ele próprio, e o mundo cristão aplaude. Afirma-se que
após sua morte foram abertas as portas de um pequeno templo que ele
havia feito emparedar antes de partir para sua expedição à
Pérsia, e que lá foi encontrado o cadáver de uma mulher
nua pendurada pelos cabelos
e com o ventre aberto. É uma invenção do ódio
ou a revelação de um mistério? Seria essa mulher um
mártir ou uma vítima voluntária? Pendemos para essa
última idéia. Talvez se tenha encontrado uma jovem fanática
que quisera opor seu sacrifício ao do Cristo para a prosperidade
do reino de Juliano e o retorno aos velhos deuses. O imperador fechara os
olhos e só o grande pontífice assistira ao holocausto.
O templo murado,
a vítima sangrenta suspensa entre o céu e a terra como uma
prece palpitante, tudo isso parece uma paródia da crucificação.
Sabe-se que numa época
bastante próxima da nossa havia moças que se faziam crucificar
assim pelo triunfo do protesto jansenista, e, se pensarmos nos ritos bárbaros
que desonravam a religião de Juliano, não rejeitaremos imediatamente
como uma calúnia póstuma a história da mulher sangrenta
e do templo emparedado. Juliano havia sido iniciado nos grandes mistérios
por Máximo de Éfeso e acreditava na virtude onipotente do
sangue. Com efeito, fora através de um batismo de sangue que Máximo
de Éfeso o havia consagrado aos antigos deuses. Juliano, conduzido
à cripta do templo de Diana, seminu e com os olhos vendados, recebeu
das mãos de Máximo um cutelo, e uma voz misteriosa lhe
ordenou que batesse numa pálida figura humana que ele podia apenas
entrever; a venda foi recolocada nos olhos do neófito, conduziram
sua mão e o fizeram tocar numa carne quente e viva; nela ele cravou
o gládio sagrado, e depois foi forçado a se prosternar sob
a fonte que acabara de abrir. Uma aspersão quente e nauseabunda o
fez estremecer, mas guardou silêncio e recebeu até o fim a
consagração do sangue vertido. Por esse sangue, dizia Máximo,
eu te lavo da impureza do batismo.
Tu és
o filho de Mitra e cravaste o gládio no flanco do touro sagrado.
Que a purificação do taurobólio te purifique! Juliano
acabava de sacrificar um homem? não havia ele
imolado apenas um touro? é o que ele próprio então
devia ignorar; mas que esses ritos foram aqueles dos grandes mistérios
, disso não poderíamos duvidar, visto que os encontramos ainda
nas tradições do iluminismo e nos antigos rituais da maçonaria,
herdeira, como sabem todos os eruditos desta especialização,
das doturinas e das cerimônias da antiga iniciação.
Segundo o uso dos historiadores antigos, Ammien Marcellin compôs um
belo discurso que coloca na boca de Juliano agonizante, como se um homem
com o fígado atravessado por um dardo pudesse sonhar em fazer discursos.
Aqui achamos melhor acreditar na tradição cristã do
que na história sofística.
Ora, eis o que diz essa tradição: Quando foi retirado o dardo
de três gumes da ferida de Juliano, quando seu sangue corria em abundância
e ele se sentia desfalecer, ele encheu as duas mãos com esse sangue
que perdia e os ergueu em direção ao céu pronunciando
estas misteriosas palavras: Tu venceste, Galileu! Tomam-se essas palavras
por uma blasfêmia, mas não seriam antes uma retratação
tardia? O iniciado do taurobólio compreendia tarde demais que o sacrifício
de si mesmo triunfa sobre o sacrifício dos outros.
Ele sentia que dando seu próprio sangue pelos homens, o Cristo derrogou
para sempre os sacrifícios sangrentos do velho mundo. O soberano
pontífice de Júpiter concedia sua demissão oferecendo
ao céu, por um lado, seu próprio sangue ao invés daquele
dos bodes e dos touros. Sim, ele parecia dizer, tu que por desprezo eu chamava
de Galileu, tu és maior que eu e tu me venceste! Toma, eis meu sangue
que te dou como tu deste o teu. Eu morro e reconheço que tu és
meu mestre! Tu venceste, Galileu! As mãos do infeliz imperador enfraqueceram,
o sangue voltou à sua cabeça, e acredita-se que ele as quis
acenar em direção ao céu. Talvez assim ele se tenha
purificado das máculas do taurobólio e renovado os traços
apagados de seu batismo. Seu ato de arrependimento não foi reconhecido
e deixou pesar o anátema sobre sua memória. Mas ele fora bom
e justo e Deus não deixa perecer para sempre os que amaram e procuraram
o bem, mesmo nas sombras do erro. Com base na fé nos fantasmas evocados
por Máximo de Éfeso Juliano havia acreditado na existência
real de seus deuses, e esses fantasmas eram alucinações do
sangue. Afirma-se que Juliano, esgotado pelos jejuns preparatórios
e morno ainda de seu batismo de sangue, viu passar diante dele todas as
divindades do velho Olimpo. Ele não as viu tais como são representadas
pelos poetas da antigüidade, mas tais como existem na imaginação
desencantada das multidões: velhos, decrépitos, miseráveis
e abandonados. Não eram mais as grandes divindades de Homero, eram
os deuses grotescos de Luciano, tanto é verdade que os pretensos
espíritos que se evocam são miragens ou reflexos de uma imaginação
coletiva. O espiritismo visionário é a fotografia dos sonhos.
As fotografias
mentais são, aliás, mais duradouras que as fotografias solares,
porque se as primeiras se apagam podemos renová-las sempre lançando
o espírito nas mesmas aberrações. Vimos em 93 os últimos
iniciados nos grandes mistérios, os filantropos da escola de Juliano,
perseguirem através de uma nuvem de sangue o fantasma da liberdade.
Vimos de alguma forma escapar da tumba Brutus grotescos e Publícolas
sórdidas que juravam pela santa guilhotina invocando deuses. São
Justo sonhava com um mundo governado por velhos laboriosos e vitoriosos
ornados por um cinto branco. Robespierre fez de si próprio grande
pontífice, e, segundo a lei sangrenta dos antigos mistérios,
teve que perecer sob a faca daqueles que havia iniciado; todos os filósofos
e apóstatas como Juliano pereceram, como
ele, desesperados em relação ao futuro. Mas, menos generosos
que ele, talvez menos sinceros, pereceram sem presentear o céu com
a oferenda de seu próprio sangue e sem confessar que mais uma vez
Galileu havia vencido. Eis onde levam os sonhos, eis o que produz a evocação
dos mortos. Se os houvessem deixado dormir em suas tumbas, os Brutus e os
Cassius, se os espectros do areópago e do fórum não
se tivessem erigido nos cérebros excitados desses homens cuja razão
era tão bem
representada por uma mulher devassa, não se teriam lançado
aos milhares os filhos da França na goela devoradora do Moloch revolucionário.
Mas as larvas que nos vêm do além-túmulo são
sempre frias e alteradas; os fantasmas pedem sangue, e quando as cabeças
se desorganizam a ponto de criar visões, as mãos estão
bem perto de cometer crimes. - Dai-me flechas!, exclamava Quanctius Aucler,
que um débil hierofante de Ceres vinga a natureza ultrajada! Trata-se
de matar os sacerdotes; mas nosso homem, que a alucinação
revolucionária havia tornado completamente louco, queria matá-los
a golpes de flechas, para dar a seu suplício uma cor mais antiga.
Esse Quanctius Aucler, que se dizia hierofante de Ceres, deixou um livro
curioso intitulado a Treicie, onde pede seriamente a volta do culto a Júpiter,
visto que não seria possível aderir-se ao reino de Saturno.
Mas a Revolução não quis adorar nem Saturno nem Júpiter;
ela própria foi Saturno, e, segundo a sombria profecia de Vergniaud,
ela devorou todos os seus filhos.