Princípios fundamentais do pensamento de

JACOB BOEHME


Sempre que mencionado Jacob Boehme é lembrado como sapateiro ( um artesão do século XVI ). De fato, nascido em 24 de abril de 1575, ou pouco antes desta data, em Altseidenberg, perto de Görlitz, na Alemanha Ocidental, seguindo seu aprendizado, montou seu próprio negócio como sapateiro em Görlitz onde residiu ( exceto por um período de exílio em Dresden ) até sua morte em 17 de novembro de 1624. Mas enquanto exercia ativamente sua profissão como sapateiro e, mais tarde, como comerciante, teve uma experiência mística profunda aos 25 anos de idade (1600 ) que, com o tempo, levou-o a uma marcante carreira independente de erudição e escrita. Embora censurado por heresia e silenciado por sete anos pelo Conselho da cidade de Görlitz, ele produziu cerca de 30 livros e tratados sobre Teologia Filosófica e ganhou muitos seguidores entre a nobreza e as classes profissionais.


No prefácio do livro de J.J.Stoudt, intitulado “Sunrise to Eternity : A Study of Jacob Boehme’s Life and Thoughts”, P. Tillich escreve: “Embora os pensamentos de Jacob Boehme tenham mudado durante suas escritas de um estágio nada refinado até um estágio de clareza comparativa, eles estão sempre expressados em uma linguagem que reflete visão especulativa, experiência mística, “insight” psicológico e tradição alquímica. É freqüente a dificuldade de descobrir o elemento racional nesta mistura, mas ele está lá e ele teve uma assombrosa influência sobre a história da filosofia ocidental. Necessitamos apenas mencionar o famoso livro de Schelling sobre a liberdade humana que é profundamente dependente da visão de Boehme sobre a gênesis de Deus, mundo e o homem. Daí a influência indireta de Boehme atinge Hegel e Schopenhauer, Nietzsche e Hartmann, Bergson e Heidegger.”


As idéias de Boehme do processo da Criação e Divindade pressagiou a teologia de Alfred N. Whitehead do século XX. Ele foi também freqüentemente citado por C.G.Jung nas ilustrações da dinâmica transformativa do processo individual “alquímico” da “psyche”. Boehme aparentemente tinha consciência que estava usando simbolismo alquímico de uma maneira psicológica. Cartas de Jung sugerem influências de Boehme sobre seu próprio ponto de vista religioso. Albert Schweitzer parece especialmente estar fiel ao espírito de Boehme, de seu espírito protestante independente, consistente com os conhecimentos modernos.

O desejo de saber é inato no homem, afirmou Aristóteles; manifesta-se, desde cedo, na criança, pela curiosidade natural, através dos "porquês" e dos "cornos" e continua vida afora, durante todo o período de desenvolvimento do ser humano.


Esse desejo de saber é o princípio das ciências, cujo fim primeiro não está em oferecer ao homem os meios de agir sobre a natureza, mas, inicialmente, em satisfazer sua natural curiosidade.


o conhecimento fIlosófico é a mais alta expressão da necessidade de saber. Enquanto visa conhecer as coisas por suas causas, as causas mais imediatas, é uma ciência; a fIlosofia tem por fim descobrir as causas mais universais, ou seja, as causas primeiras das coisas. Ela se serve apenas da "razão natural", distinguindo-se, por isso mesmo, da Teologia, que se apóia, em seus primeiros princípios, nas verdades reveladas, enquanto a Filosofia apela unicamente para as "luzes da razão".


Os estudantes das verdades eternas, incluindo-se os Martinistas, simbolizavam, sempre, o processo (mental) por um arqueiro disparando suas flechas sem acertar o alvo, para transmitir, claramente, a arte do controle do pensamento.


O alvo representa a essência Divina em nosso interior, ou o centro, para o qual dirigimos nossas preces. O arco representa a própria alma que deveria estender-se como a corda do arco. Nossos pensamentos são as flechas e nosso Ser exterior, o arqueiro. Como os arqueiros sabem, o tiro ao alvo requer atenção e calma.


A mesma atenção e calma são requisitos para a prática mística. Sem elas, as flechas caem perto do alvo e nossos pensamentos não alcançam seu objetivo.
A vida de Jacob Boehme revela que ele não foi um místico comum; as repetidas declarações de que não realizou estudos formais, escolásticos, que não recebeu o que sabia de nenhum mestre-escola, mas da plena natureza, da própria vida, observando o que existia e que, mercê da graça divina, foi instruído por Deus, demonstram esse fato; seus estudos foram orientados no sentido místico e sua realidade decorreu de profundas reflexões que fez, fundamentalmente, debruçado sobre a Gênesis.

Considerado um dos mais originais e grandes místicos cristãos, Boehme possuía uma forte inclinação para as coisas do espírito; revelava, ao mesmo tempo, muitas caracteristicas do clarividente e do metafísico. Suas idéias influênciaram enormemente, não só a filosofia como o misticismo religioso.


o misticismo, em seu mais simples e essencial significado. é um tipo de religião que enfatiza a atenção imediata da ligação direta e íntima com Deus, com a consciência da Divindade . É a religião em seu mais apurado e intenso estágio de vida. O iniciado que alcançou o "segredo" foi chamado um místico. Os antigos cristãos empregavam a pa.a'!fa "contemplação" para designar experiência mística.


A palavra "místico" foi empregada pela primeira vez no Mundo Ocidental, nos escritos atribuídos a "Dionisius, o Aeropagita", que apareceu no final do quinto século. "Dionysius" empregou a palavra para expressar um tipo de "Teologia", mais do que uma experiência. Para ele e para muitos intérpretes, desde então, o misticismo se baseava em uma teoria ou sistema religioso que concebe Deus como absolutamente transcendente, além da Razão, do pensamento, do intelecto e de todos os processos mentais.


A palavra, a partir de então, tem sido vagamente usada para os tipos de "conhecimento" esotérico e teosófico, não suscetíveis de verificação. A essência do misticismo é a experiência da comunicação direta com Deus.

"O místico é aquele que aspira a uma união pessoal ou à unidade com o Absoluto, que ele pode chamar Deus, Cósmico, Mente Universal, Ser Supremo, etc."

No prefácio de sua última obra, o Mysterium Magnum, escrita em 1623, declara Jacob Boehrne que recebeu, realmente, da graça divina, o poder e a capacidade de falar do Grande Mistério, ou do começo e origem de todas as coisas; e, "desde que somos capazes, pelo funcionamento da alma, de compreender o conhecimento real, a palavra inspirada da ciência divina", exporia nessa obra, até onde fosse possível, o seu fundamento ou "Grund" , não apenas para seu "Memorial", mas para o leitor se exercitar no conhecimento divino.

No livro "O Caminho para Cristo" ("The Way to Christ"), Boehne oferece a conotação de muitas expressões que empregou no decurso de seu trabalho e que julgamos conveniente transcrever aqui. Assim, centrum (centro) refere-se, em muitos casos, ao centro ou raiz de um ser; matriz, à fonte de um ser ou seres; locus, ao lugar determinado para um ser específico; separator (separador), ao poder de oposição; principium, simplesmente, a princípio, muitas vezes empregado como os três princípios; limbus (ou limus), quando aplicado ao homem, refere-se ao aspecto do homem pelo qual Cristo reside nele; turba magna refere-se ao desequilíbrio da ira despertada na queda de Adão e de Lúcifer; Verbo fiat é a palavra pela qual ocorreu a criação; paraíso éo ser da essência do primeiro ser; também tem esse sentido a palavra ens; apesar de se referir à quintessência, o ens é o elemento designado por tintura. Tintura é o poder pelo qual as coisas são modificadas, é a Palavra expressa, é a vida da sabedoria. Exteriormente, tintura é o poder pelo qual os metais-base são transformados em ouro. O spiritus mundi (O espirito do mundo) é o poder atuante nos quatro elementos: signature (marca) é a manifestação externa de uma coisa: imaginação é o aspecto do homem pelo qual ele orienta ~ consciência; magia é o que atravessa a imaginação na direção do Mysterium Magnum (o mistério do Divino) e Sophia é a Sabedoria, a "noiva da alma".

Sua obra foi acrescida, posteriormente, de um relato de sua vida e das Tábuas da Revelação Divina, E no Mysterium Magnum, escrito um ano antes de sua morte, ele estuda a cosmogonia mística, fazendo minuciosa exposição do Primeiro Livro de Moisés, a "Genesis". Expôs, então, o que pensava a respeito da revelação ou manifestação da Palavra Divina e da origem do mundo, da Criação; do reino da Natureza e do reino da Graça, auxiliando a compreensão do Velho e do Novo Testamento; quem foram Adão e Cristo; explicou como o homem deve pensar e conhecer a si mesmo, à luz da Natureza; o que ele é, em quê consiste sua vida eterna e temporal, sua bem-aventurança ou Santidade e sua perdição.


"Eu não adquiri o conhecimento através do estudo; observei a ordem e a posição dos sete planetas nos livros dos astrólogos; concordei com eles, mas não pude aprender com os homens, em profundidade, como os planetas vieram a existir, de onde vieram; os homens não souberam explicar porque, realmente, não sabiam, e eu não estava presente quando Deus criou os planetas."


Podemos considerar, sem margem de erro, que Boehne foi um iluminado, que recebeu a Sabedoria ou o Conhecimento, sem qualquer esforço. Tocado momentânea e conscientemente pelo espírito divino, cedo compreendeu que há
uma gnose vital, um Conhecimento Superior que transcende todo o conhecimento e instrução formal.


Mais de uma vez Jacob Boehme declarou que "não escrevia para os arrogantes e pretensiosos que, na verdade, nada sabem e permanecem, voluntariamente, na cegueira e na armadilha do demônio, onde os deixava, pois aqueles que se entregam a Satã, bebendo seu veneno, não são fIlhos de Deus" .


Desejava ser compreendido pelos filhos de Deus, transmitindo-lhes o conhecimento que Dele recebeu, pois acreditava que o momento para tal revelação havia chegado. Assim deixava a cargo de cada um, ver e aceitar, pois quem o fizesse, receberia sua recompensa e recomendação à gra~ do doce e eterno amor de Cristo.


A leitura das obras de Boehme levará o leitor à constatação de que a Verdade é realmente única e sempre esteve exposta à mente e ao coração dos homens; no século XVI foram revelados, pelos estudiosos da FilosofIa e ciências afins, conhecimentos que ainda hoje permanecem na rota dos modernos buscadores e que, nesse caminhar, remontam, como aparente paradoxo, aos séculos passados onde encontram redivivos, valiosos subsídios para apoiar, esclarecer e informar o que hoje, embora com rótulos diferentes, num esforço para transcender a esfera dos hábitos cegos, é divulgado nas obras filosófIcas e místicas.


Boehme era versado nas Escrituras; uma vez mais nele se confIrmou o fato de que "se a Suprema Verdade não é conhecida, o estudo das escrituras é estéril e quando a Suprema Verdade é compreendida, o estudo das Escritura se toma inútil".


O estudante Martinista verificará, pela leitura das obras do príncipe dos filósofos que a teoria exposta por Boehme e a Filosofia de Saint Martin seu mais ilustre admirador apresentam alguns denominadores comuns, princípios gerais, concepções e pontos de contato, motivo pelo qual sua figura é altamente significativa e respeitada.


Os homens, que são de Deus, têm o conhecimento de Deus, o Pai único, de onde vieram e no Qual vivem; por isso, eu não posso desdenhar todas as regras que ditaram sobre a Filosofia, Astrologia e a Teologia; pretendo proceder de acordo com tais regras, por achar que, na maior parte, elas repousam em um fundamento-verdade. Assim, minha intenção será agir de acordo com estas regras, pois eu devo dizer que elas me auxiliaram, e que foi com elas que adquiri os primeiros elementos de meus conhecimentos.


Eu não pretendo superar as bases desses estudiosos, mas quero levantar a terra, para eu poder ver a árvore desde a raiz, o tronco, os galhos, os ramos e as frutas, e a fim de que meus escritos não sejam uma coisa estranha, mas, com as filosofias, formar um só corpo, uma só árvore, que não produza senão a mesma espécie de frutos."


Escrevendo sobre assuntos vários, principalmente, os mistérios insondáveis da criação divina e humana, ou celeste e terrena, angélica e demoníaca, Boehme imprimiu-lhes tamanha profundidade, que muitos leitores, possivelmente, não os assimilarão de imediato; "é necessário fazermos uma verdadeira entrega ao espírito de Deus, até que uma luz advenha e se faça em nosso interior para que possamos compreendê-los; e isso ocorrerá àquele que for digno de receber, em sua inteligência, pois Deus não se manifesta no homem, imediatamente, ou bruscamente, segundo sua Sabedoria eterna e profundeza de Seus segredos; mas apenas, somente de tempos em tempos é que ele poderá vislumbrar um lampejo."


Em seus estudos, foi levado à busca de "uma pátria que não era simples visão, mas um lar", revelando-se, assim, um místico cabal.


Boehme compara a Filosofia, a Astrologia, a Teologia e a fonte de onde derivam, a uma bela árvore que cresce em um magnífico jardim de delícias.

A terra onde essa árvore cresce oferece-lhe continuamente seu suco , que a torna vivente e lhe permite vegetar (por si mesma), tornar-se grande e se ramificar em galhos majestosos.

Assim como a terra, por sua virtude (potencial específico) opera na árvore para que ela possa crescer e tornar-se frondosa, a árvore, com todos os seus galhos e ramos opera sem cessar, com todo o seu poder, para oferecer, de tempos em tempos, excelentes frutos.

Se, entretanto, a árvore frutificar pouco, ou se os frutos forem fracos, pequenos ou medíocres, não quer dizer que a natureza desta árvore seja destinada a produzir frutos maus, pois ela é magnífica e de excelente qualidade; isto pode ter sido causado por frio intenso, grande calor, pelas intempéries, pelas lagartas ou por insetos, pois as propriedades (ou as influências) que as estrelas espalham no espaço, corrompem-na e a impedem de produzir bons e abundantes frutos.

Não é, pois, regra geral da espécie, produzir os mais doces frutos à medida que a planta cresce e vai ficando mais vell1a. Ela pode produzir pouco quando é nova, por causa de sua abundante umidade ou da qualidade da terra (áspera, seca, fraca, pedregosa) e embora a árvore se cubra de flores, seus frutos cairão, à medida que crescerem, se ela não for plantada em terreno ou terra fértil.

Se a árvore tem em si uma qualidade doce e boa, tem, também, três outras que a combatem: a amarga, a áspera e a adstringente. O mesmo ocorre com seus frutos, até que o Sol atue neles, adoçando-os, dando-ll1es um gosto agradável, e até que eles adquiram força para resistir à chuva, ao vento e às tempestades.

Quando, porém, a árvore se toma vell1a, com os galhos secos, e seu suco não mais subir à copa, muitos brotos verdes crescem ao redor do tronco e até mesmo sobre a raiz, patenteando o envell1ecimento desta árvore que fora, outrora, um pequenino arbusto coberto de ramos soberbos; a natureza (o suco) conserva-se até que o tronco fique completamente seco; então, é cortado, vira lenha e vai para o fogo. Atente, caro leitor, para esta comparação.

O jardim onde a árvore está significa o mundo; o terreno, a natureza; o tronco da árvore, as estrelas; os galhos, os elementos; as frutas que surgem desta árvore, os homens; o suco, a pura divindade; os homens são, pois, formados da natureza, das estrelas e dos elementos. E Deus, o criador, domina todas as coisas, como o faz o suco, em relação à árvore inteira.

A natureza possui, em si mesma, duas qualidades, e isto assim será até o julgamento de Deus; uma, amável, celeste e santa e outra, áspera, infernal e voraz.


A qualidade boa atua e trabalha continuamente com grande atividade, para produzir bons frutos, nos quais o espírito santo domina; a natureza oferece, para isso, seu suco e sua vida. A qualidade má também cresce e faz grande esforço para produzir sempre frutos maus; é alimentada, para isso, com o suco e a chama infernal do demônio.


Estas duas coisas estão, agora, na árvore da natureza; os homens são formados desta árvore e vivem, no meio de uma e da outra qualidade neste mundo, neste jardim, em grande perigo, expostos tanto ao ardor do sol como à chuva, ao vento e à neve.


Quando o homem eleva seu espírito à divindade, o espírito santo penetra e opera nele; mas se ele deixar seu espírito descer a este mundo e o entregar ao império do mal, o demônio e o suco infernal nele se insinuarão e o dominarão.


Assim como a geada, o calor ou a neve magoam as frutas de uma árvore, fazendo-as murchar e estragar rapidamente, ocorre o mesmo com o homem, quando ele se deixa governar pelo demônio e seu veneno.


O mal e o bem existem, fermentando no homem, dominando-o como fazem na natureza. Mas o homem é filho de Deus, que o fez do mais perfeito fundamento para dominar o bem e subjugar o mal. O mal está ligado ao bem na natureza; é assim, também, no homem, que, entretanto, pode subjugá-la. Se elevar seu espírito para Deus, o espírito santo se aproximará dele e o auxiliará a alcançar a vitória.


Da mesma forma que a boa qualidade que vem de Deus e sobre a qual o espírito santo exerce a soberania é dotada de poder na natureza para vencer a qualidade má, a qualidade da ira tem, nas almas corrompidas, o poder de triunfar, pois o demônio é um poderoso senhor da ira e dela é o eterno príncipe. (pela palavra "ira" Boehme expressa o próprio poder eterno considerado separadamente do amor, da justiça e da luz).

Em seu primeiro livro, "Aurora Nascente", Boehme refere-se ao Grande Mistério e previne o leitor de que o que não foi escrito, nessa oportunidade, poderá ser lido em outro lugar, em escritos posteriores, quando puder falar melhor a respeito da grandiosidade do mistério, já que esse livro é o primeiro ramo do galho que emerge e cresce, verde em sua origem, exatamente como ocorre com uma criança que está aprendendo a andar e que, por isso, não anda depressa nem corre.

Aliás, é oportuno lembrar que o título original do livro "Aurora" foi: "A Raiz ou a Mãe da Filosofia, da Astrologia e da Teologia", justificado pelo autor, como se segue.


Por Filosofia, considera-se o poder divino, o que Deus é; como a natureza,-as estrelas e os elementos são criados na essência de Deus, de onde tudo se originou; como são criados o céu, a terra e o inferno, os anjos, o homem e o demônio e tudo o que existe materialmente, ou concretamente; ou ainda, o que são as duas qualidades da natureza.

Por Astrologia, considera-se as virtudes da natureza, das estrelas e dos elementos como todas as criaturas procedem desta fonte; como estas mesmas virtudes estimulam, governam e operam em todas as coisas; como, por seu intermédio, são operados o mal e o bem no homem e nos animais; como o mal e o bem se encontram neste mundo e aí dominam; e como aí subsistem os reinos do céu e do inferno.

"Meu objetivo não é expor o curso, o lugar e o nome de todos os astros; como ocorre anualmente sua conjunção, sua oposição ou sua quadratura, nem como eles operam cada ano e em cada lua. Meu objetivo é escrever segundo o espírito e o sentido, e não, depois de especulações."

Por Teologia, considera-se o reino de Cristo: o que o constitui, como ele se colocou em oposição ao reino infernal; como ele se agita e combate, na natureza, o reino infernal; como os homens podem, pela fé e pelo espírito, submeter-se a este reino infernal, triunfar na virtude divina e obter, na luta e como penhor da vitória, a eterna santidade, ou seja, como o homem se lança na perdição pela atividade da qualidade má. Na parte final do Capítulo 3, retomaremos a este assunto.

Declara ser como todos os homens que lutam pela coroa da felicidade eterna e vivem buscando a perfeição; pois já que as portas da profundeza foram-lhe abertas, pela graça divina, seu espírito não pôde deixar de olhar através delas, pura os grandes mistérios, embora se posicionando como uma criança que, ao aprender a falar, apenas consegue balbuciar.

Como há um começo no homem, e não em Deus, continua Boehme, eu devo descrever, de forma humana, os assuntos transcendentais; do contrário, o leitor não os entenderia.

Porque o conhecimento e a compreensão pertencem à luz divina, não é fácil compreender a essência divina; procurarei representar, toscamente, o sublime segredo, de forma objetiva e material, para que o leitor possa penetrar na profundeza. A essência divina não pode ser inteiramente expressa pela linguagem humana; apenas o espírito da alma, que perscruta a luz, a compreende. A alma do homem que é iluminada pelo Espírito Santo, pela luz de Deus, percebe a essência celestial. O espírito astral que reveste a alma e o espírito elementar , que governa a origem não vêem além de sua geratriz, de onde nascem e na qual vivem.

Se eu pudesse escrever sobre o que é puramente celestial, ou sobre tudo a respeito da divindade, seria considerado um tolo pelo leitor que não tivesse capacidade de me entender. Por isso, usarei ambas as formas, divina e humana, esperando estimular alguém a refletir sobre as coisas transcendentais.

o homem é feito de todos os poderes de Deus; extraídos dos seus sete-espíritos, como os anjos. Sendo, porém, matéria corruptível, nem sempre o poder divino se manifesta em todos os seus aspectos e se desenvolve operando nele.



Isto porque o Espírito Santo não se sujeita à carne pecadora, mas eclode como um relâmpago, da mesma forma que a faísca irrompe de uma pedra quando o homem a golpeia. Quando este clarão alcança a fonte do coração, o Espírito Santo se eleva nos sete espíritos-fontes até o cérebro, como o amanhecer do dia, como o rubro romper da aurora.

Nessa luz, os sete-espíritos interagem; um vê o outro, sente-o, toca-o, sente-lhe o gosto e o escuta como se a Divindade se manifestasse nele, com toda a Sua plenitude. Aqui, o espírito assoma na profundeza da Divindade, porque o Deus próximo e distante é um-todo-único, e o mesmo Deus está em seu aspecto trino tanto no céu como na alma do santo.

A alma vive um eterno perigo neste mundo, motivo pelo qual é, justamente, cognominado de um "vale de lágrimas", cheio de miséria e angústia: um desafio constante a que somos atraídos, empurrados, arrastados e levados a combater.

o corpo, frio e meio morto, nem sempre compreende esta luta da alma; não sabe o que ocorre, mas se sente pesado e ansioso; vai de uma coisa à outra e de um a outro lugar, em busca de quietude e repouso. E quando chega ao lugar que visava, não encontra o que buscava; parece-lhe que foi abandonado pela mão de Deus. Não compreende a luta do espírito, nem como este, às vezes, está caído e, noutras, exultante.

Insisto em que o leitor saiba que não escrevo isto como quem narra uma história que me tivessem contado, afirma Boehme; devo livrar-me, permanentemente, desse combate, e considero que esse esforço, que às vezes parece me derrubar, como a qualquer outro homem, é algo verdadeiramente aniquilador.

Foi exatamente por ser a luta tão violenta, em razão da seriedade com que abordo o tema, que me foi dada essa revelação bem como o veemente impulso de lançar tudo isso no papel.

Nesse combate, acrescenta ele, passei por provas terríveis que amargaram meu coração. Muitas vezes, meu Sol se eclipsou e noutras, se extinguiu, porém, sempre se reergueu, e quanto mais amiúde se eclipsava, mais resplandecente e claro se elevava de novo.

Admira-me muito que Deus tenha podido revelar-se assim, plenamente, a mim, um homem tão simples, e que me ordenasse escrever a respeito disso, sobretudo, por haver tantos homens sábios que o fariam melhor e mais corretamente do que eu, tão pequeno, neste mundo! Quanto mais a isso me opunha, mais pedras recolhia para o edifício em construção.

Agora, cheguei tão alto que não me atrevo a olhar para trás, pois receio ter uma vertigem e só me falta um pequeno trecho para chegar à meta que meu coração aspira e deseja alcançar com toda a plenitude. Enquanto subo, não sinto vertigem, porém, quando olho para trás e entrevejo a possibilidade de regressar, sinto tonteiras e medo de cair. Se tenho plena confiança em Deus, e a luz e o conhecimento de meu Deus permanecem comigo, tenho o bastante para esta vida e para a que se segue.

E, realmente, prosseguiu. Pareceu-nos, pois, que a peculiar e, por vezes, difícil doutrina de Boehme seria melhor compreendida, se fossem conhecidos alguns fatos de sua vida e as influências que recebeu.